"A busca por uma solução de dois Estados é uma fantasia", diz palestino sobre conflito no Oriente Médio
O
proeminente filósofo palestino Sari Nusseibeh acredita que é tarde
demais para uma solução de dois Estados para o conflito no Oriente
Médio. Em uma entrevista para a
“Spiegel”, ele expõe sua visão para uma confederação
israelense-palestina e por que desconfia da nova posição moderada
adotada pelo grupo militante islâmico Hamas.
Spiegel: Sr. Nusseibeh, em seu novo livro o senhor alega que é tarde demais para um Estado palestino. Por quê?
Nusseibeh:
Vocês estão sentados em meu escritório em Beit Hanina, em um lugar
chamado Jerusalém Oriental. Se vocês olharem para oeste daqui, verão
partes deste bairro
árabe que estão separadas de nós. Se olharem lá para o leste, verão
Pisgat Zeev, um enorme assentamento israelense que faz parte de
Jerusalém. Mais além há Maale Adumim, um assentamento ainda maior de
israelenses no que é chamado de Jerusalém Oriental. Não
há mais Jerusalém Oriental. Jerusalém Oriental já se tornou um termo
impróprio. Mas um Estado palestino sem Jerusalém Oriental como sua
capital é inaceitável.
Spiegel: O senhor deseja desistir das fronteiras de 1967, que foram a base de todos os planos de paz?
Nusseibeh:
É extremamente difícil até mesmo para o mais criativo entre nós
conseguir redesenhar o mapa para nos dar, os palestinos, Jerusalém
Oriental como capital. Além
disso, há os colonos israelenses. É possível remover meio milhão de
pessoas? Não, não é. Nada é impossível, matematicamente falando. Mas nós
estamos falando sobre política, e na política nem tudo é possível.
Spiegel: Então devemos admitir que a solução de dois Estados está morta?
Nusseibeh:Matematicamente
falando, uma solução de dois Estados é uma solução excelente. Ela causa
dor mínima e é aceita por uma maioria em ambos os lados. Por causa
disso,
nós deveríamos tê-la adotado há muito tempo. Mas não o fizemos.
Spiegel: E de quem é a culpa por isso?
Nusseibeh:
Primeiro, Israel demorou demais para aceitar a existência de um povo
palestino. Nós, palestinos, demoramos demais para aceitar que deveríamos
reconhecer Israel
como um Estado. O problema é que a história anda mais rapidamente do
que as ideias. Quando o mundo acordou para o fato de que a solução de
dois Estados era a melhor solução, nós já tínhamos centenas de milhares
de israelenses vivendo além da Linha Verde (nota
do editor: a Linha de Armistício de 1949, que forma a fronteira entre
Israel e a Cisjordânia). Há um crescente fanatismo em ambos os lados.
Hoje, a busca de uma solução de dois Estados parece buscar algo dentro
de uma bolha de fantasia.
Spiegel: E quais são as alternativas?
Nusseibeh:
A forma política final não importa muito. O importante é que ambos os
lados possam concordar a respeito e que os princípios básicos de
igualdade e liberdade
sejam mantidos. Eles podem ser mantidos no contexto de um Estado, de
dois Estados, de três Estados, ou no contexto de uma federação ou
confederação de Estados.
Spiegel:
Em seu livro o senhor propõe que, em um único Estado conjunto, os
palestinos devem ter direitos civis, mas não direitos políticos. “Os
judeus podem administrar
o país, enquanto os árabes poderiam ao menos desfrutar viver nele”, o
senhor escreve. Isso funcionaria?
Nusseibeh:
Sim, como uma transição. Desde o início da ocupação, nos tem sido
negados direitos civis básicos, sob a promessa de que uma solução ou
Estado estava chegando.
Isso nos foi prometido por 20 anos. Mas eles não deveriam manter os
palestinos vivendo no porão até uma solução ser encontrada. Eu sugiro
que nos deem direitos básicos, nos permitam liberdade de movimento, nos
permitam viver e trabalhar onde quisermos, nos
permitam respirar.
Spiegel: Onde o senhor deseja traçar as fronteiras? Segundo linhas étnicas?
Nusseibeh:
Sim, eu proponho uma federação entre Israel e um Estado palestino
baseada no posicionamento demográfico da população no país.
Spiegel: E o senhor acha que os israelenses aceitariam isso?
Nusseibeh:
Sim, eles adorariam. Os israelenses que desejam um Estado
predominantemente judeu poderiam muito bem considerar esta uma solução
razoável, porque mesmo se de
alguma forma conseguissem se livrar dos árabes na Cisjordânia e em
Gaza, que eles consideram um fardo demográfico, eles ainda sentem que
têm um problema a longo prazo com os árabes em Israel. O que estou
sugerindo não é totalmente insano. Essa ideia sempre
esteve presente. Se vocês voltarem na história judaica, vocês
encontrarão israelenses a sugerindo desde o início, como (o proeminente
sionista intelectual e cultural) Martin Buber.
Spiegel: Qual seria o benefício para os palestinos em uma federação com Israel?
Nusseibeh:
Eles teriam liberdade de movimento – eles poderiam se estabelecer e
trabalhar onde quisessem. Esse é um benefício imenso. E mais do que
isso: segundo a solução
clássica de dois Estados, não há retorno dos refugiados (palestinos)
para Israel, apenas para a Cisjordânia ou Gaza. Mas em um futuro mapa
traçado da forma como estou propondo, partes do que atualmente é Israel
poderiam se tornar parte de um Estado palestino.
E, portanto, muitos refugiados poderiam voltar exatamente para suas
cidades de origem.
Spiegel:
Em seu livro, o senhor descreve sua proposta como uma “terapia de
choque para acordar os israelenses” e levá-los a encontrar uma solução.
Isso significa que,
no final, o senhor realmente não acredita no que está dizendo?
Nusseibeh:
Pode ser ambos. Pode ser um alerta, um despertar. Eu quero que os
israelenses vejam que eles têm um problema e que pensem: talvez
devêssemos buscar a solução
de dois Estados. Mas pode ser um sinal do que está por vir. Se não
fizermos nada, futuramente as pessoas acordariam e descobririam que
estão vivendo em uma espécie de confederação.
Spiegel: O senhor acredita que as coisas estão se movendo nessa direção por conta própria?
Nusseibeh: Exatamente. Nós estamos constantemente deslizando nessa direção. Vejam as negociações. Elas apenas andam em círculos.
Spiegel:
Em seu livro, o senhor descreve o processo de paz entre israelenses e
palestinos mais ou menos como um jogo, “para ser jogado pelo tempo mais
longo possível”.
O senhor acredita que as negociações devem ser interrompidas?
Nusseibeh:
Eu realmente não me importo se os negociadores de ambos os lados
quiserem prosseguir conversando em Amã (a capital da Jordânia), como
fizeram recentemente.
Eles podem passar 48 horas conversando. Mas eu acredito que não
chegarão a lugar nenhum. Eles só chegarão a algum lugar se apenas
desistirem de tentar ser espertos uns com os outros. (O
primeiro-ministro de Israel, Benjamin) Netanyahu é um bom vendedor, mas
não me parece uma pessoa sábia.
Spiegel: E quanto ao presidente palestino, Mahmoud Abbas?
Nusseibeh: Bem, permita-me dizer: eu acho que é preciso ser previdente e se importar o suficiente.
Spiegel: A Autoridade Palestina (AP) deveria se dissolver em vez de continuar a administrar a ocupação?
Nusseibeh:
Não, isso seria arriscado demais. Pelo contrário, a PA deve ser
fortalecida, receber mais território e mais autoridade. E acho que a
comunidade internacional
deveria continuar a apoiá-la.
Spiegel:
Isso poderia mudar rapidamente se o Hamas, o grupo militante islâmico
que controla a Faixa de Gaza, e o movimento rival Fatah de Abbas, que
controla a Cisjordânia,
formarem um governo conjunto. O senhor acredita que a reconciliação
deles funcionará?
Nusseibeh:
É natural que o Hamas e o Fatah não lutem um contra o outro. Mas não
brigar não significa automaticamente concordar. No momento, parece que
eles estão tentando
conciliar os pontos em desacordo. E eu não gosto disso. Eu acho que as
pessoas devem ser claras a respeito de suas posições. E eu não sei ao
certo o que Khaled Mashaal (nota do editor: o líder do Hamas em exílio)
quer, para dizer a verdade.
Spiegel:
Khaled Mashaal disse recentemente que o Hamas deve se concentrar em uma
resistência não violenta. O senhor acredita nele?
Nusseibeh:
Eu me recordo de uma situação com ele, talvez há dez anos. Foi no auge
da segunda intifada, e foi a primeira vez em que fui convidado para
comentar na “Al Jazeera”.
Eu tentei explicar por que ataques suicidas não eram bons, de que eles
não conseguiriam nada. Eu inicialmente não percebi que Mashaal estava do
outro lado. Ele respondeu que eu estava falando tolices e que os
ataques suicidas eram ótimos, que atirar e matar
era ótimo. Esse é o motivo para ficar irritado quando o ouço agora
dizendo que deseja uma resistência civil. Por que está optando por isso
agora, após 10 anos nos arruinando? Todo o muro (nota do editor: a
barreira da Cisjordânia) não teria sido construído.
As coisas seriam muito diferentes hoje.
Spiegel: O senhor acredita que haverá eleições na Cisjordânia e em Gaza em breve?
Nusseibeh:
Eu não acho que eleições possam acontecer tão cedo. E para dizer a
verdade, eu não sei ao certo se sou favorável a eleições no contexto
atual. Eleições são
uma coisa boa em certas circunstâncias, por exemplo, quando seu país é
livre e as pessoas que você elege podem tomar as decisões a seu favor.
Mas em nosso caso isso é uma fantasia. O que as pessoas que elegemos
fizeram por nós? Nada. Se o próprio Abu Mazen
(Mahmoud Abbas), o presidente deste país, quiser ir de um lugar para
outro, ele precisa obter uma permissão.
Spiegel:
Como poderia funcionar o tipo de federação que o senhor está propondo,
se ao mesmo tempo a maioria dos palestinos votou no Hamas, cuja meta
declarada é um Estado
religioso?
Nusseibeh:
Se você olhar para Gaza de cima a baixo, você vê o Hamas. Eu não vejo o
Hamas em Gaza, pessoalmente. Eu vejo seres humanos normais: meus
parentes, meus amigos,
meus alunos. Eles não votaram no Hamas porque repentinamente acordaram e
se transformaram em muçulmanos extremistas. Não, eles votaram no Hamas
porque o processo de paz fracassou. Se o governo israelense abrisse hoje
as fronteiras, o Hamas ficaria no caminho?
E se ficasse no caminho, as pessoas dariam ouvido ao Hamas? Não, eu
acredito que não. As pessoas querem vidas normais.
Spiegel:
Nós estamos sentados aqui no campus da Universidade Al Quds. O que seus
estudantes pensam a respeito de política –eles tendem a apoiar o Hamas
ou o Fatah?
Nusseibeh:
Os estudantes no campus são seres humanos individuais; eles não são
ideologias ambulantes. Permitam-me contar uma história. Foi em 2003,
quando os israelenses
queriam construir o muro de separação, bem no meio de nosso campus. O
que ocorreu imediatamente aos estudantes foi –e isso independia de serem
a favor do Hamas, Fatah ou da Jihad Islâmica– vamos até lá atirar
pedras contra os soldados israelenses. Mas eu lhes
disse: ouçam, se fizerem isso, então um de vocês será morto. A
universidade terá um mártir, mas será fechada no dia seguinte. E então
permaneceram não violentos. No final, nós vencemos. Israel não construiu
o muro no campus. O que quero dizer com esta história?
Independente de como vocês os veem, independente da ideologia deles, os
seres humanos são pessoas razoáveis.
Spiegel:
Seus alunos ainda acreditam que este conflito pode ser resolvido? E o
que pensam a respeito de uma federação entre Israel e Palestina?
Nusseibeh:
Primeiro, eles acreditam que não há solução. Mas o que posso dizer é
que as pessoas não têm mais convicção na ideia de dois Estados. Apenas
alguns poucos ainda
estão presos na ideia de identidade nacional, mas eles não acreditam
que conseguirão o Estado que desejam. Outras pessoas estão se voltando
para a religião. Ideias religiosas são o que importa agora.
Spiegel: O senhor é um professor de filosofia islâmica. O que o senhor pensa a respeito do papel da religião neste conflito?
Nusseibeh:
Eu cresci com a ideia de um Islã muito tolerante. Minha família teve as
chaves da Igreja do Santo Sepulcro (na Cidade Velha de Jerusalém) por
centenas de anos
e temos orgulho disso. Essa é nossa ligação com o cristianismo. Nossa
reverência por Jesus é algo inerente em mim como muçulmano. Minha
reverência pelos profetas judeus é inerente em mim como muçulmano.
Spiegel: Mas esse não é o Islã reverenciado por todos os muçulmanos.
Nusseibeh:
No sentido verdadeiro, as religiões são na teoria formas de apoiar os
valores humanos. Na medida em que as religiões passam a interferir no
valores humanos,
então elas se desviam na direção errada. E, infelizmente, é isso o que
está acontecendo em muitas religiões, incluindo o Islã. Há alguns
clérigos islâmicos de que gosto, mas eu desconfio de pessoas que se
consideram guardiãs da religião.
Spiegel: O senhor frequenta a mesquita regularmente?
Nusseibeh:
Não, eu quase nunca vou. Certa vez eu levei meus filhos à mesquita, mas
o homem que conduzia a oração me fez ir embora. Ele falava sobre coisas
totalmente insanas.
Mesmo se você ignorar o conteúdo, é a forma como eles gritam. Você
sente como se eles estivessem segurando um chicote e assustando as
pessoas a aceitarem a verdade do Islã. Isso não é o Islã. Isso é meio
que terrorismo. No meu entender, o Islã é uma religião
dócil. E a mensagem do Islã é uma mensagem dócil.
Spiegel:
O conflito entre israelenses e palestinos realmente parece menor em
comparação a uma possível guerra com o Irã. O que acontecerá se Israel
atacar o Irã?
Nusseibeh:
Isso seria um grande erro. Tudo o que Israel faz para se afirmar por
meio do uso de mais força é um passo para sua própria destruição. Há o
ditado: “Aqueles
que vivem pela espada morrerão pela espada”.
Spiegel: Uma escalada militar com o Irã poderia pressionar israelenses e palestinos a finalmente chegarem a uma solução?
Nusseibeh:
Israel não nos leva a sério no momento. Eles nos manterão sob a tampa
por um longo período. Se atacarem o Irã, eu não acho que isso os
deixaria mais abertos
em relação a nós. Eu certamente acredito que não nos deixaria mais
abertos em relação a eles. E, sem dúvida, eu não acho que o mundo árabe
estaria mais aberto em relação a eles.
Spiegel: Isso soa como um cenário bastante sombrio.
Nusseibeh: É o motivo para estar propondo este plano. Quantas pessoas vivem entre a Jordânia e o Mediterrâneo?
Spiegel: Aproximadamente 11 milhões.
Nusseibeh:
Há cerca de 4 milhões de palestinos na Cisjordânia e Gaza, e 1 milhão
em Israel, e há aproximadamente 6 milhões de judeus israelenses. Mas
este é um lugar pequeno.
Nós estamos dentro um do outro. Cedo ou tarde, nós teremos que
encontrar um modo de convivermos uns com os outros. Meu filho vive em um
subúrbio judeu de Jerusalém. Minha nora disse à professora de música
judia que não quer que o filho dela cante canções religiosas
judaicas. E a professora judia disse que tudo bem –quando fizermos
isso, ele não precisa participar. Mas, fora isso, ele pode participar da
festa.
Spiegel:
É assim que seu Estado proposto poderia funcionar? Quando for uma
questão judaica, então os palestinos ficariam de lado, mas, fora isso,
participariam?
Nusseibeh:
E vice-versa, porque não se pode esperar que os judeus apreciem canções
palestinas. Mas convenhamos, muçulmanos e judeus conviveram
amigavelmente por longos
períodos de tempo. Nem tudo foi um mar de rosas, mas na verdade foi
melhor do que na Europa por grande parte do tempo. Nós temos amizades
entre judeus e árabes que são muito fortes e às vezes remontam gerações.
Não é impossível.
Spiegel: Sr. Nusseibeh, obrigado pela entrevista.
Entrevista conduzida por Martin Doerry e Juliane von Mittelstaedt. (Tradução: George El Khouri Andolfato)
Der Spiegel, no UOL.
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