quarta-feira, 24 de julho de 2024

Terra prometida, terra sem paz


O Parlamento de Israel rejeitou a criação de um Estado palestino na quinta-feira (18). No dia seguinte, a Corte Internacional de Justiça, em Haia, julgou que a ocupação israelense nos territórios palestinos da Cisjordânia, do Golã e de parte de Jerusalém é ilegal e deve ser encerrada.

E nada aconteceu. Nem palestinos nem israelenses comemoraram ou protestaram. Faz 47 anos que a ocupação da Cisjordânia é considerada ilegal pela Assembleia e pelo Conselho de Segurança da ONU e pelos últimos seis presidentes dos EUA. Mas Israel sempre foi (e vai) em frente: criou 144 colônias nos territórios ocupados em 1967, na Guerra dos Seis Dias, e nelas vivem hoje 500 mil colonos —e mais 220 mil em Jerusalém Oriental. Ainda sobra espaço para um Estado palestino? Não.

O primeiro-ministro, Binyamin Netanyahu, respondeu à Corte de Haia no domingo (21): "O povo de Israel não é um ocupante em sua própria terra e em sua capital eterna, Jerusalém". É a terra prometida por Deus a Abraão, a Judeia e Samaria bíblicas.

A terra prometida foi parcialmente ressuscitada em 1948, pela ONU. Prometida, mas não protegida e imune a ataques desde o primeiro dia de independência —Israel consolidou uma política de ocupação que considera essencial à sua segurança. E que, na prática, inviabiliza um Estado palestino.

A conquista do deserto do Sinai, da Cisjordânia e de Jerusalém Oriental, de Gaza e do Golã, na guerra contra o Egito, Síria e Jordânia, era para ser provisória. Eu vivia ao lado de Gaza, como voluntário, no kibutz Reim, devastado no ataque do Hamas de 7 de outubro de 2023. Arava o deserto à noite, com a escolta de um árabe druso armado, porque o farol aceso do trator poderia atrair atacantes palestinos. Era a época em que o Partido Trabalhista estava no poder, com Levi Eshkol. Foi ele quem criou a primeira colônia nos territórios conquistados, Kfar Etzion, ao sul da Cisjordânia, em setembro de 1967.

A base dos trabalhistas para a colonização foi o Plano Alon, de Yigal Alon, que chegou a ser primeiro-ministro interino. Ele previa a anexação de Jerusalém Oriental, de Gush Etzion e do Vale do Jordão, e funcionou até o governo de Yitzhak Rabin.

Muitas colônias nasceram como Nahal, ou postos militares, e depois foram entregues a civis. Isso porque, para uso militar, as terras podem ser confiscadas.

Com o primeiro-ministro Menachem Begin, em 1977, a colonização deu um salto. Os religiosos e nacionalistas o saudaram como aquele que resgataria toda a "terra prometida" — um novo "messias". Ele só devolveu o Sinai, em troca da paz com o Egito, e a colônia de Yamit, a "nascida do mar".

Acusado de criar "obstáculos à paz", com as colônias que brotavam por todos os territórios sob negociação, com status a definir, o premiê Begin nunca se intimidou. "Provisório", era a sua justificativa, sempre. Israel anexou Jerusalém Oriental e o Golã, da Síria, por leis aprovadas pelo Parlamento, e saiu em 2005 de Gaza, que agora está destruindo em represália ao massacre do Hamas, com mais de 1.500 israelenses e 38 mil palestinos mortos.

O governo atual de Netanyahu está sob pressão do acordo de coalizão feito em 1º de dezembro de 2022, com o partido de extrema direita e ultranacionalista Sionismo Religioso, para estender a soberania israelense sobre a Judeia e Samaria —ou a Cisjordânia, a "terra prometida" pelo presidente Joe Biden aos palestinos.

O ex-presidente Donald Trump transferiu a embaixada dos EUA de Tel-Aviv para Jerusalém e reconheceu a soberania de Israel sobre as colinas sírias do Golã. Lá, desde 2019, ele ganhou, em gratidão, uma comunidade batizada de Ramat Trump, ou Colina de Trump, numa altitude maior que o prédio Trump Tower, em Nova York. O ex-presidente pode ser eleito neste fim de ano, para alegria de Netanyahu, que tem um discurso previsto para as duas Casas do Congresso, em Washington, nesta quarta-feira (24).

Sem Biden e sem os democratas na Casa Branca, o projeto da Palestina pode desaparecer, no Oriente Médio sem paz.


Reprodução de texto de Moises Rabinovici na Folha de São Paulo

domingo, 7 de julho de 2024

Biografia


meu pai apostava o feijão no futebol

tinha drible ligeiro, batia forte na bola


eu apostei a vida no poema

nas promessas que ele inventava


cada um escolhe o deus 

que nos salva e condena


nunca acertamos um milhar

nenhuma pule premiada


não houve livro na lista dos mais

vendidos nada no jogo do bicho


no fim sobramos dois vagabundos

esperando explodir o fim do mundo


ele cansou, partiu primeiro, enquanto

eu vou indo, de domingo a domingo


pagando o preço do precipício que

é viver sem ter mais nada a perder



Poema de Jorge Augusto publicado na revista piauí de novembro de 2023, edição 206.

Separação entre drogas lícitas e ilícitas é linha imaginária que não leva em conta efeitos reais das substâncias


Definitivamente não sou a pessoa mais experiente do mundo quando o assunto são "entorpecentes" (leia a palavra entre aspas com voz de apresentador de programa sensacionalista, por gentileza). Não bebo álcool. Não fumo cigarros, cachimbos ou charutos de qualquer natureza. Cogumelos? Só os que podem ser colocados na pizza ou no estrogonofe. No ramo dos estados alterados de consciência, as únicas coisas que consumo são chocolate, catolicismo e romances de fantasia.

Não escrevo isso para me vangloriar. É bastante possível que alguém tenha esquecido de instalar o aplicativo da busca por sensações insólitas no meu cérebro antes de ele sair da fábrica, e pronto. Só resolvi listar de antemão todas as substâncias psicoativas que não aprecio porque sou incapaz de compreender, mesmo assim, por que tanta gente se descabela diante da tímida decisão do STF sobre o consumo de maconha, ou sobre o tema da descriminalização do consumo de drogas, de forma mais geral.

É, eu sei que estamos diante do Congresso mais conservador a ser eleito no país desde o Segundo Reinado (para não falar da população que o escolheu). Mas tentemos raciocinar juntos.

O que todas as drogas têm em comum é, conforme mencionei no primeiro parágrafo, a capacidade de produzir estados alterados de consciência por meio de seus efeitos no cérebro. É por isso que todas as culturas humanas sempre usaram substâncias desse tipo, pelo que sabemos. Acho que ninguém vai discordar disso, certo?

O próximo passo lógico é o seguinte: não existe nenhuma razão objetiva para supor que drogas de consumo legalizado (e tributado), como o álcool e o tabaco, sejam intrinsecamente "mais seguras" para consumo do que todas as demais. Não foi esse o critério que fez delas drogas "lícitas", enquanto todas as demais seriam ilícitas por natureza, por decreto divino concedido no monte Sinai ou coisa que o valha. O critério foi pura e simplesmente cultural e histórico.

É possível que o álcool, digamos, cause menos dependência, menos danos aos neurônios e menos risco de desencadear doenças mentais do que drogas proibidas por lei? Talvez, mas isso é algo a ser determinado caso a caso, por uma comparação criteriosa, e não por um tabu cultural que traça uma linha imaginária entre um tipo de droga e o outro.

Uma vez feita essa comparação, é um bocado provável que a droga "lícita" exceda, em seus efeitos nocivos, ao menos algumas substâncias hoje proibidas. Basta pensar na letalidade da mistura álcool + veículos automotivos.

A pergunta inevitável que viria depois disso é: e aí? Algum congressista teria coragem de defender a proibição completa da venda de bebidas alcoólicas em território nacional, como os EUA tentaram fazer no começo do século 20? Se a resposta for "não", o que impede que drogas de "periculosidade" similar à do álcool sejam igualmente legalizadas além de, mais uma vez, mero tabu?

Note que eu nem toquei nos dilemas sobre liberdades individuais versus custos sobre o sistema de saúde, a viabilidade de barrar venda e consumo por meio da repressão etc. –até porque tem gente muito mais qualificada para abordar essas variáveis.

Mesmo sem levar tudo isso em conta, o fato é que a legislação brasileira de hoje divide os tipos de drogas com base em pouco mais do que pensamento mágico. Se a intenção é realmente proteger a saúde pública, os direitos dos cidadãos e evitar injustiças, trata-se de uma base extremamente frágil, que precisa ser substituída pelo que realmente sabemos a respeito dos efeitos de cada substância.


Texto de Reinaldo José Lopes na Folha de São Paulo.

sábado, 6 de julho de 2024

EUA ameaçam liberdade de imprensa com perseguição a Assange


Ver Julian Assange deixar a prisão e sair do Reino Unido como um homem livre foi uma das cenas mais gratificantes que já tive a chance de presenciar. Já que Assange é um amigo, um aliado e um colega de longa data, foi difícil fazer qualquer coisa além de comemorar sua liberdade.

Assange foi finalmente libertado porque a opinião pública australiana passou a cobrar que seu governo deixasse de ser tão subserviente aos EUA e trabalhasse mais pela liberdade do fundador do WikiLeaks (Assange é cidadão australiano). O primeiro-ministro do país, Anthony Albanese, finalmente exerceu pressão —em público e em particular— sobre o governo de Joe Biden.

Assange passou os últimos cinco anos na prisão de Belmarsh, em Londres, uma penitenciária de segurança máxima tão repressiva que foi apelidada pela BBC de "Guantánamo inglesa". Ao lado dos detentos mais perigosos do país e dos considerados terroristas, Assange foi mantido o tempo todo confinado sozinho em uma cela mínima, com exceção de uma hora de banho de sol por dia.

Antes de ser mandado para Belmarsh, Assange já estava confinado havia sete anos. Em 2012, ele foi intimado pelas autoridades suecas a se submeter a um interrogatório no âmbito de uma acusação de estupro.

Defendendo sua inocência, o fundador do WikiLeaks deixou claro que estaria disposto a pegar um avião para Estocolmo para responder às acusações, desde que o governo sueco oferecesse garantias de que ele, uma vez no país, não seria entregue ao governo americano —que, se sabia, buscava prendê-lo.

Depois de a Suécia negar essa proteção, Assange solicitou e recebeu asilo político do Equador. O então presidente Rafael Correa prometeu que o fundador do WikiLeaks poderia ficar na embaixada do país em Londres enquanto permanecessem as ameaças dos EUA. Mas, em 2019, os EUA e o Reino Unido conseguiram pressionar o sucessor enfraquecido de Correa, Lenín Moreno, a retirar o asilo político concedido a Assange e permitir que a polícia de Londres ingressasse na embaixada para prendê-lo.

Os sete anos que Assange passou naquela embaixada pouco diferem de uma prisão. Quando o visitei em 2017, junto com meu marido David Miranda, ficamos chocados ao ver seu evidente declínio físico.

Seu lar na embaixada era pouco mais que um pequeno apartamento conjugado, sem nenhuma área ao ar livre. Policiais eram mantidos de plantão em frente à embaixada 24 horas por dia. A única razão pela qual existe um vídeo que documenta essa visita é porque a CIA —ilegalmente— monitorou e espionou Assange, incluindo as visitas que recebeu, durante os sete anos que ele passou lá.

Talvez o mais notável de tudo isso seja o fato de Assange nunca ter sido condenado por nenhum crime, exceto violação de liberdade condicional por não ter comparecido ao tribunal, em 2012, quando obteve asilo do Equador. Essa sentença foi de apenas 12 meses, que ele cumpriu integralmente em 2020. No entanto, os EUA e o Reino Unido conspiraram para mantê-lo preso por anos, sem condenação.

A enorme alegria —e alívio— com a libertação de Assange não pode minimizar a gravidade e o perigo representados por essa tentativa de criminalização do fundador do WikiLeaks pelos EUA. Como alertei em um artigo no Washington Post publicado quando os EUA o indiciaram pela primeira vez, a teoria usada para criminalizar Assange pode ser igualmente empregada para criminalizar a prática de jornalismo investigativo como um todo.

Isso porque seus supostos crimes —"conspirar com a fonte" para evitar que ela seja identificada e incentivá-la a obter informações— é a base do trabalho de qualquer jornalista investigativo. Não por acaso, quando o Ministério Público do Brasil tentou, em 2020, me processar criminalmente pela Vaza Jato, as teorias usadas foram exatamente as mesmas usadas pelos EUA para criminalizar Assange, como alertou o Comitê para a Proteção dos Jornalistas.

Como condição para sua libertação, Assange foi obrigado a se declarar culpado do crime de espionagem. Isso não teve efeito sobre Assange, que acabou libertado pelo mesmo acordo, mas significa que agora há o precedente de que o governo dos EUA e, presumivelmente de qualquer outro país, pode transformar qualquer jornalista em criminoso.

O governo americano exigiu essa confissão de culpa por um único motivo: embora o acordo de Assange não tenha força como precedente legal, ele sinaliza a todos os jornalistas investigativos do mundo democrático que suas reportagens também podem levá-los à prisão se seu trabalho constranger interesses poderosos.

Como essa é a atribuição mais nobre do jornalismo, para além da tragédia humana que foi manter Assange enjaulado por 12 anos, esse caso representa uma ameaça maior que nunca à liberdade de imprensa em todo o mundo.


Texto de Glenn Greenwald na Folha de São Paulo

As crises se acumulam, a direita boçal avança e a esquerda trololó tergiversa


Uma frase apócrifa, erroneamente atribuída a Lênin, pode ser aplicada aos tempos que correm: "Há décadas em que nada acontece, e há semanas em que décadas acontecem."

Macron dissolveu a Assembleia Nacional em 9 de junho para revigorar seu poder. Um mês depois, a ultradireita periga eleger o primeiro-ministro. Com ou sem sua vitória no domingo, a França está fadada a um grande tumulto.

Na última quarta-feira, Biden entrou confiante no debate eleitoral. Afinal, foram ele e os democratas que o propuseram aos republicanos. Saiu da refrega de maca e sua campanha entrou em coma.

Trump ganhou pontos preciosos nas pesquisas de opinião, aplainou a trilha para tomar o poder. Indagado duas vezes no debate, deixou evidente que não aceitará uma eventual derrota nas urnas. Como no 8 de janeiro de 2021, mobilizará seus fanáticos e tentará um golpe.

Na Casa Branca, o protofascista terá os poderes incontrastáveis que lhe foram concedidos pela Corte Suprema dias depois do haraquiri de Biden. A saída —digamos otimista— para a crise é ter as mãos trêmulas de um vovozinho senil em torno do botão que detona a hecatombe atômica.

As panes em dois pilares da ordem internacional, Washington e Paris, obliterou o que era o acontecimento central de nosso tempo, o massacre de 35 mil palestinos em Gaza.

Com o beneplácito dos grandes deste mundo, Israel mata metodicamente crianças e mulheres; deixa milhares sem teto nem comida; explode hospitais e escolas. Em nome de quê? De um apartheid mais cruel que o da África do Sul até 1994.

A chacina em Gaza, por sua vez, pôs em segundo plano a carnificina cujo desenlace definirá o destino da Europa por anos: a invasão da Ucrânia. Putin, à la Netanyahu, trata como segredo de Estado o número de suas vítimas.

Porém, estimativas independentes atestam que, entre ucranianos e russos, civis e soldados, lá morreram cerca de 500 mil até agora. É meio milhão de pessoas como você, sua família, amigos, colegas.

Por fim, não passa mês sem que cataclismas naturais se abatam em algum canto do globo. São enxurradas no Rio Grande do Sul, ondas letais de calor em Meca e Nova Déli, furacões no Caribe, incêndios no Pantanal. Impávida, a crise climática se alastra.

Não é de hoje que certas épocas imaginam estar no limiar do fim dos tempos. A própria Bíblia se encerra com os quatro cavaleiros escatológicos do apocalipse —peste, fome, guerra e morte. Em termos contemporâneos, são Covid, Gaza, Ucrânia e o risco de uma terceira guerra mundial.

A sobreposição de desgraças, até há pouco impensáveis, mostra que a experiência do tempo se acelerou. Realmente, vivemos semanas que equivalem a décadas. E as notícias vão sempre no sentido da deterioração da humanidade e da Terra. Como se chegou a isso?

Dois dados estão presentes em todas as respostas à questão: a desigualdade e a superexploração. Segundo a Oxfam, a fortuna dos cinco homens mais ricos do planeta dobrou desde 2020, ao passo que as cinco bilhões de pessoas mais pobres tiveram sua renda reduzida.

A miséria crescente provoca êxodos emigratórios —da África e do Oriente Médio para a Europa; da América Latina para a do Norte. A disputa encarniçada por empregos explica os votos no chauvinismo de Trump e do Reagrupamento Nacional, o partido da ultradireita francesa.

Como não há trabalho para todos, há jovens que vão para a bandidagem. Governos fascistizantes reforçam a polícia, defendem o armamento dos "cidadãos de bem" e discriminam os imigrantes racialmente. A direita boçal avança e a esquerda trololó tergiversa.

A desigualdade aguda se apoia num sistema econômico que, a pretexto de incitar o progresso, depreda a natureza. No Brasil, por exemplo, acha-se vital a exploração do petróleo, e que se dane a foz do rio Amazonas. No plano global, igualmente, prefere-se destruir a enfrentar a crise climática.

Que mundo surgirá dessas tensões? O historiador Cristopher Clark arrisca um prognóstico em "Revolutionary Spring", um estudo de 900 páginas da vaga revolucionária de 1848. Iniciada na Sicília, ela logo conflagrou a Europa —em semanas que equivaleram a décadas de lero-lero.

Ao comparar o hoje ao ontem, Clark, liberal de boa cepa, diz: "Se uma revolução vem vindo (e parece que estamos bem longe de uma solução não revolucionária para a ‘policrise’ que enfrentamos), ela poderá ser como a de 1848 —mal planejada, dispersa, acidentada e cheia de contradições."

Dias de ira voraz virão, quem viver verá.


Texto de Mario Sergio Conti na Folha de São Paulo

sexta-feira, 5 de julho de 2024

O privatismo sem critério de Tarcísio de Freitas


Depois do escândalo da privatização da Eletrobras, a Sabesp é a bola da vez.

A venda de participação acionária da empresa teve a ampla concorrência... de uma empresa interessada. Indagado a este respeito, o governo Tarcísio reagiu com a novilíngua privatista: "Não é falta de concorrência, é uma aderência ao que a gente vem colocando desde o início".

Especializada em energia elétrica, a Equatorial conta com uma "vasta experiência" de dois anos no setor de saneamento, "conquistada" com a privatização do serviço no Amapá, feita pelo governo Bolsonaro em 2021, sob a batuta do atual governador carioca de São Paulo.

Se efetivada a operação, a Equatorial deterá 15% das ações da Sabesp, adquiridas a preços abaixo dos vigentes no mercado (R$ 67 contra R$ 75). Sim, a privatização do ativo público, subsidiada com o dinheiro do contribuinte, é vista com naturalidade pela patrulha liberal.

Reportagens da Folha fizeram uma radiografia picotada da privataria tarcisiana. Deixe-me organizar os dados para o leitor. Ao se tornar "acionista de referência", a empresa terá participação acionária de 15% e o poder desproporcional de indicar o CEO da Sabesp, o presidente e três membros do conselho de administração.

Os principais acionistas da Equatorial são "o Opportunity, do banqueiro Daniel Dantas, as gestoras Atmos, Capital World Investors, Squadra Capital e o fundo americano de investimentos Blackrock". Com efeito, o "futuro plano de eficiência" da Sabesp prevê "redefinir a relação com sindicatos, otimizar benefícios e políticas de remuneração". E, claro, a governança da Sabesp seguirá a "cultura de dono", isto é, o "alinhamento de incentivos por performance". Traduzindo: corte no quadro de funcionários e elevação da remuneração da diretoria executiva. Este arranjo tem dado certo com a Enel em São Paulo, não?

A otimização de custos operacionais e da estrutura de capital da Sabesp visa aumentar o endividamento da empresa para fazer caixa e, assim, aumentar a distribuição de lucros aos acionistas. Com este nível da taxa de juros brasileira, o acionista ganha o retorno hoje e o usuário paulista paga os juros com tarifa mais alta no futuro.

Neste ponto, a racionalidade técnica do exterminador de estatais tem uma solução: utilizar os ganhos com a privatização para subsidiar, nos primeiros anos, as tarifas pagas pelo consumidor paulista. Sim, o governo vai usar o ganho com a venda da casa para financiar o aluguel da casa. "Imprecionante"!

Diferentemente do Amapá, onde a cobertura de serviços de saneamento é muito baixa —apenas metade da população tinha acesso a água tratada e meros 4,5% da população contava com coleta de esgoto—, a situação da cobertura no estado de São Paulo é próxima de total. Em 2022, os índices de cobertura de água (98%), de esgoto (92%) e de tratamento de esgoto coletado (85%) deixam nítido que o contribuinte paulistano já amortizou o investimento na estatal paulista desde 1973, quando foi fundada.

A Sabesp é uma empresa altamente lucrativa e com capital aberto em Bolsa. Mesmo assim, o governo Tarcísio não conseguiu gerar concorrência para privatizar a maior empresa de saneamento do país. É um feito e tanto!

Com controle da Sabesp, a Equatorial se consolidará como "empresa multiutilidades"; em 2023, sua margem de lucro foi de 77%. A ironia desta história é que um governo bolsonarista está subsidiando, à custa do contribuinte paulista, uma nova campeã nacional.

A reestatização do saneamento em Paris e Berlim —dentre dezenas de cidades mundo afora— questiona a fé inabalável na gestão privada dos recursos hídricos. É imperativo evitar este retrocesso no estado mais rico do Brasil.


Texto de André Roncaglia na Folha de São Paulo.

terça-feira, 2 de julho de 2024

Seu desejo é uma ordem


Acordou com o barulho de alguém esmurrando a porta do apartamento. Sua mãe não veio despertá-lo, como de costume, para se certificar de que ele não se atrasaria para a aula. Ele havia passado mais uma madrugada criando e consumindo conteúdo misógino nos fóruns online que frequenta.


Da rua, ouvem-se sirenes, helicópteros e o burburinho abafado de vozes masculinas. Ele se levanta para abrir a porta. Estranha a aflição de Apolo, o cão, que não foi levado para dar seu primeiro passeio matinal e mijou no corredor.


É o vizinho, com um bebê aos berros no colo. No hall, ecoa o choro de outras crianças do prédio. "Sua mãe está aí?", pergunta o vizinho, como se soubesse a resposta. "Mãe!", grita o adolescente, como se fosse perguntar onde está o par de seu tênis. É o silêncio inabitual do apartamento que o responde.


"Ela também desapareceu", presume o vizinho. "Todas elas desapareceram. Tem leite?" O adolescente suspeita que está sonhando. O vizinho entra, sem pedir licença, abre a geladeira. "Acho que ele está com fome", não sei o que fazer, desabafa o pai. Apolo não para de latir.


O jovem vai atrás de seu celular e descobre que os serviços essenciais —saúde, educação, creches, assistência social etc.— entraram em colapso, assim como os serviços emergenciais, que agora dependem exclusivamente do trabalho de homens em estado de choque.


Ao redor do mundo, são bilhões de empregos vagos de uma hora para a outra e diversos setores paralisados. Nos poucos países com uma mulher à frente da Presidência —entre eles México, Peru, Grécia, Suíça, Índia, Etiópia— interinos assumem o comando. O vácuo de poder deixado pela ausência feminina desestabiliza governos, empresas, instituições.


Na televisão, o âncora do jornal, com uma cadeira vazia ao seu lado, chora, ao vivo, enquanto transmite a orientação para que as pessoas não entrem em pânico.


O adolescente não sabe a quem recorrer. Sua mãe, sua meia-irmã, sua avó, sua diarista? Lembra que o pai, doente, vive sob os cuidados da madrasta e de uma enfermeira. Se não se deu ao trabalho de ligar, é porque talvez esteja morto por dentro, ou por fora.


Sozinho, loga no fórum, certo de que encontrará algum consolo, quem sabe um oásis de celebração em meio ao caos. Nenhuma mensagem. Nenhum usuário online. Escreveria algo, se pudesse. Mas não tem mais assunto, nem inspiração.



Manuela Cantuária na Folha de São Paulo - https://www1.folha.uol.com.br/colunas/manuela-cantuaria/2024/07/seu-desejo-e-uma-ordem.shtml


segunda-feira, 1 de julho de 2024

O apocalipse do século 21 não inspira graça para os que têm filhos e netos


Deu na New Yorker.

Numa série de debates intitulada "Are We Doomed?" —estamos perdidos?—, organizada pela Universidade de Chicago, sobre o risco da inteligência artificial para o futuro da humanidade, o cientista da computação Geoffrey Hinton abriu sua palestra prevendo um horizonte de trevas para os estudantes que o ouviam.

Do alto dos seus 76 anos, o padrinho da IA gabou-se de ter vindo ao mundo num momento propício. "Nasci logo após o fim da Segunda Guerra Mundial, fui adolescente antes do advento da Aids e morrerei sem testemunhar o fim de tudo", concluiu ele, arrancando risos nervosos da plateia.

Hinton trabalhou para o Google por dez anos, até pedir demissão em 2023, preocupado com a falta de segurança dos algoritmos que ajudou a desenvolver. A julgar pelo senso de humor enviesado, ele não deve ter filhos e muito menos netos.

Para os que os têm, como eu, o apocalipse do século 21 não inspira graça. O misto de "Exterminador do Futuro" com Santa Inquisição, de segunda queda do Império Romano com nova Guerra Fria, coroado pelo cataclismo climático. É como estar no jardim de Herculano cinco minutos antes do Vesúvio cuspir lava, sem a bênção da ignorância.

Minha mãe, quase duas décadas mais velha do que Hinton, volta e meia extravasa a revolta de ter vivido 94 anos para encarar essa desgraça.

Não somos a primeira nem a última geração a experimentar o revés do que críamos ser um futuro próspero. A história está repleta de reviravoltas parecidas. É o que nos ensina um podcast fabuloso chamado "Agora, Agora e Mais Agora", do historiador, político e escritor português Rui Tavares.

"Agora, Agora e Mais Agora" foi gravado nos Açores, durante a pandemia de Covid, onde Tavares se viu confinado, com toda a pesquisa do livro homônimo que pretendia escrever presa na Universidade Columbia, em Nova York.

Como no "Decamerão" —reunião de histórias contadas por dez jovens que se isolam num castelo próximo a Florença para fugir da peste negra —, de Boccaccio, Tavares aproveitou o hiato para narrar, por meio do lado B do último milênio, o tortuoso caminho que nos fez chegar à ideia dos direitos humanos universais.

As memórias começam por volta do ano 900 da era cristã, com a chegada à cidade de Bagdá de Al-Farabi —filósofo muçulmano a quem devemos a palavra "alfarrábio"—, e termina no pós-Guerra do século 20. Impossível resumir em poucas linhas tão longa curva, mas destaco um capítulo, o nono, que Tavares dedica aos jovens admiradores dos humanistas Thomas More e Erasmo de Roterdã.

Criados na cosmopolita Europa do início do século 16, em plena era das navegações e da descoberta de novos mundos, esses moços de mente aberta enfrentaram, no terço final de suas vidas, uma marcha a ré sombria da história, comparável à que atravessamos agora.

O herói desse capítulo é o diplomata Damião de Góis, alto funcionário da corte portuguesa, falante do francês, do italiano e do alemão. Autor das crônicas do rei dom Manuel 1º, ele percorreu o continente europeu e trocou ideias com Martinho Lutero e o cartógrafo Sebastian Münster, com "musas, príncipes e varões doutos", como afirma seu epitáfio.

Em 1530, aos 20 e poucos anos, Góis dividiu um quarto em Pádua com outro estudante, Simon Rodrigues, um dos fundadores da Companhia de Jesus. Décadas depois, Rodrigues denunciaria o colega como herege, tendo como base as conversas trocadas na famigerada pensão estudantil. Em 1571, já sexagenário, Góis foi condenado à prisão perpétua, sem direito a julgamento público, pelo livre pensar da mocidade.

Era reta final do Renascimento. A reforma luterana despontava e a Igreja Católica dava início às perseguições do Santo Ofício. Henrique 8º rompeu com o papa e Thomas More, autor de "Utopia", foi decapitado como traidor, por não aceitar a anulação do casamento do monarca com Catarina de Aragão.

A política do medo, do ódio e do cancelamento se consolidou, a ponto de o filósofo e teólogo Erasmo de Roterdã ter se privado de publicar uma elegia em homenagem ao amigo More, pelo pânico da retaliação.
Os avanços científicos, artísticos, morais e sociais seguidos de retrocesso são mais regra do que exceção. Nós é que nos acostumamos mal, acreditando na falácia do fim da história. A humanidade sempre andou para frente, para o lado e, o mais das vezes, para trás.

Tavares define a Idade Média como "os mil anos em que tivemos certeza de que o mundo iria acabar". De volta para o futuro, vivemos tempos parecidos. O escritor está escalado para duas mesas de debate da Feira do Livro de São Paulo e lança edição impressa do seu "Agora, Agora e Mais Agora". Vale a pena lê-lo e ouvi-lo.


Texto de Fernanda Torres na Folha de São Paulo