Acordou com o barulho de alguém esmurrando a porta do apartamento. Sua mãe não veio despertá-lo, como de costume, para se certificar de que ele não se atrasaria para a aula. Ele havia passado mais uma madrugada criando e consumindo conteúdo misógino nos fóruns online que frequenta.
Da rua, ouvem-se sirenes, helicópteros e o burburinho abafado de vozes masculinas. Ele se levanta para abrir a porta. Estranha a aflição de Apolo, o cão, que não foi levado para dar seu primeiro passeio matinal e mijou no corredor.
É o vizinho, com um bebê aos berros no colo. No hall, ecoa o choro de outras crianças do prédio. "Sua mãe está aí?", pergunta o vizinho, como se soubesse a resposta. "Mãe!", grita o adolescente, como se fosse perguntar onde está o par de seu tênis. É o silêncio inabitual do apartamento que o responde.
"Ela também desapareceu", presume o vizinho. "Todas elas desapareceram. Tem leite?" O adolescente suspeita que está sonhando. O vizinho entra, sem pedir licença, abre a geladeira. "Acho que ele está com fome", não sei o que fazer, desabafa o pai. Apolo não para de latir.
O jovem vai atrás de seu celular e descobre que os serviços essenciais —saúde, educação, creches, assistência social etc.— entraram em colapso, assim como os serviços emergenciais, que agora dependem exclusivamente do trabalho de homens em estado de choque.
Ao redor do mundo, são bilhões de empregos vagos de uma hora para a outra e diversos setores paralisados. Nos poucos países com uma mulher à frente da Presidência —entre eles México, Peru, Grécia, Suíça, Índia, Etiópia— interinos assumem o comando. O vácuo de poder deixado pela ausência feminina desestabiliza governos, empresas, instituições.
Na televisão, o âncora do jornal, com uma cadeira vazia ao seu lado, chora, ao vivo, enquanto transmite a orientação para que as pessoas não entrem em pânico.
O adolescente não sabe a quem recorrer. Sua mãe, sua meia-irmã, sua avó, sua diarista? Lembra que o pai, doente, vive sob os cuidados da madrasta e de uma enfermeira. Se não se deu ao trabalho de ligar, é porque talvez esteja morto por dentro, ou por fora.
Sozinho, loga no fórum, certo de que encontrará algum consolo, quem sabe um oásis de celebração em meio ao caos. Nenhuma mensagem. Nenhum usuário online. Escreveria algo, se pudesse. Mas não tem mais assunto, nem inspiração.
Manuela Cantuária na Folha de São Paulo - https://www1.folha.uol.com.br/colunas/manuela-cantuaria/2024/07/seu-desejo-e-uma-ordem.shtml
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