segunda-feira, 1 de julho de 2024

O apocalipse do século 21 não inspira graça para os que têm filhos e netos


Deu na New Yorker.

Numa série de debates intitulada "Are We Doomed?" —estamos perdidos?—, organizada pela Universidade de Chicago, sobre o risco da inteligência artificial para o futuro da humanidade, o cientista da computação Geoffrey Hinton abriu sua palestra prevendo um horizonte de trevas para os estudantes que o ouviam.

Do alto dos seus 76 anos, o padrinho da IA gabou-se de ter vindo ao mundo num momento propício. "Nasci logo após o fim da Segunda Guerra Mundial, fui adolescente antes do advento da Aids e morrerei sem testemunhar o fim de tudo", concluiu ele, arrancando risos nervosos da plateia.

Hinton trabalhou para o Google por dez anos, até pedir demissão em 2023, preocupado com a falta de segurança dos algoritmos que ajudou a desenvolver. A julgar pelo senso de humor enviesado, ele não deve ter filhos e muito menos netos.

Para os que os têm, como eu, o apocalipse do século 21 não inspira graça. O misto de "Exterminador do Futuro" com Santa Inquisição, de segunda queda do Império Romano com nova Guerra Fria, coroado pelo cataclismo climático. É como estar no jardim de Herculano cinco minutos antes do Vesúvio cuspir lava, sem a bênção da ignorância.

Minha mãe, quase duas décadas mais velha do que Hinton, volta e meia extravasa a revolta de ter vivido 94 anos para encarar essa desgraça.

Não somos a primeira nem a última geração a experimentar o revés do que críamos ser um futuro próspero. A história está repleta de reviravoltas parecidas. É o que nos ensina um podcast fabuloso chamado "Agora, Agora e Mais Agora", do historiador, político e escritor português Rui Tavares.

"Agora, Agora e Mais Agora" foi gravado nos Açores, durante a pandemia de Covid, onde Tavares se viu confinado, com toda a pesquisa do livro homônimo que pretendia escrever presa na Universidade Columbia, em Nova York.

Como no "Decamerão" —reunião de histórias contadas por dez jovens que se isolam num castelo próximo a Florença para fugir da peste negra —, de Boccaccio, Tavares aproveitou o hiato para narrar, por meio do lado B do último milênio, o tortuoso caminho que nos fez chegar à ideia dos direitos humanos universais.

As memórias começam por volta do ano 900 da era cristã, com a chegada à cidade de Bagdá de Al-Farabi —filósofo muçulmano a quem devemos a palavra "alfarrábio"—, e termina no pós-Guerra do século 20. Impossível resumir em poucas linhas tão longa curva, mas destaco um capítulo, o nono, que Tavares dedica aos jovens admiradores dos humanistas Thomas More e Erasmo de Roterdã.

Criados na cosmopolita Europa do início do século 16, em plena era das navegações e da descoberta de novos mundos, esses moços de mente aberta enfrentaram, no terço final de suas vidas, uma marcha a ré sombria da história, comparável à que atravessamos agora.

O herói desse capítulo é o diplomata Damião de Góis, alto funcionário da corte portuguesa, falante do francês, do italiano e do alemão. Autor das crônicas do rei dom Manuel 1º, ele percorreu o continente europeu e trocou ideias com Martinho Lutero e o cartógrafo Sebastian Münster, com "musas, príncipes e varões doutos", como afirma seu epitáfio.

Em 1530, aos 20 e poucos anos, Góis dividiu um quarto em Pádua com outro estudante, Simon Rodrigues, um dos fundadores da Companhia de Jesus. Décadas depois, Rodrigues denunciaria o colega como herege, tendo como base as conversas trocadas na famigerada pensão estudantil. Em 1571, já sexagenário, Góis foi condenado à prisão perpétua, sem direito a julgamento público, pelo livre pensar da mocidade.

Era reta final do Renascimento. A reforma luterana despontava e a Igreja Católica dava início às perseguições do Santo Ofício. Henrique 8º rompeu com o papa e Thomas More, autor de "Utopia", foi decapitado como traidor, por não aceitar a anulação do casamento do monarca com Catarina de Aragão.

A política do medo, do ódio e do cancelamento se consolidou, a ponto de o filósofo e teólogo Erasmo de Roterdã ter se privado de publicar uma elegia em homenagem ao amigo More, pelo pânico da retaliação.
Os avanços científicos, artísticos, morais e sociais seguidos de retrocesso são mais regra do que exceção. Nós é que nos acostumamos mal, acreditando na falácia do fim da história. A humanidade sempre andou para frente, para o lado e, o mais das vezes, para trás.

Tavares define a Idade Média como "os mil anos em que tivemos certeza de que o mundo iria acabar". De volta para o futuro, vivemos tempos parecidos. O escritor está escalado para duas mesas de debate da Feira do Livro de São Paulo e lança edição impressa do seu "Agora, Agora e Mais Agora". Vale a pena lê-lo e ouvi-lo.


Texto de Fernanda Torres na Folha de São Paulo

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