domingo, 7 de julho de 2024

Separação entre drogas lícitas e ilícitas é linha imaginária que não leva em conta efeitos reais das substâncias


Definitivamente não sou a pessoa mais experiente do mundo quando o assunto são "entorpecentes" (leia a palavra entre aspas com voz de apresentador de programa sensacionalista, por gentileza). Não bebo álcool. Não fumo cigarros, cachimbos ou charutos de qualquer natureza. Cogumelos? Só os que podem ser colocados na pizza ou no estrogonofe. No ramo dos estados alterados de consciência, as únicas coisas que consumo são chocolate, catolicismo e romances de fantasia.

Não escrevo isso para me vangloriar. É bastante possível que alguém tenha esquecido de instalar o aplicativo da busca por sensações insólitas no meu cérebro antes de ele sair da fábrica, e pronto. Só resolvi listar de antemão todas as substâncias psicoativas que não aprecio porque sou incapaz de compreender, mesmo assim, por que tanta gente se descabela diante da tímida decisão do STF sobre o consumo de maconha, ou sobre o tema da descriminalização do consumo de drogas, de forma mais geral.

É, eu sei que estamos diante do Congresso mais conservador a ser eleito no país desde o Segundo Reinado (para não falar da população que o escolheu). Mas tentemos raciocinar juntos.

O que todas as drogas têm em comum é, conforme mencionei no primeiro parágrafo, a capacidade de produzir estados alterados de consciência por meio de seus efeitos no cérebro. É por isso que todas as culturas humanas sempre usaram substâncias desse tipo, pelo que sabemos. Acho que ninguém vai discordar disso, certo?

O próximo passo lógico é o seguinte: não existe nenhuma razão objetiva para supor que drogas de consumo legalizado (e tributado), como o álcool e o tabaco, sejam intrinsecamente "mais seguras" para consumo do que todas as demais. Não foi esse o critério que fez delas drogas "lícitas", enquanto todas as demais seriam ilícitas por natureza, por decreto divino concedido no monte Sinai ou coisa que o valha. O critério foi pura e simplesmente cultural e histórico.

É possível que o álcool, digamos, cause menos dependência, menos danos aos neurônios e menos risco de desencadear doenças mentais do que drogas proibidas por lei? Talvez, mas isso é algo a ser determinado caso a caso, por uma comparação criteriosa, e não por um tabu cultural que traça uma linha imaginária entre um tipo de droga e o outro.

Uma vez feita essa comparação, é um bocado provável que a droga "lícita" exceda, em seus efeitos nocivos, ao menos algumas substâncias hoje proibidas. Basta pensar na letalidade da mistura álcool + veículos automotivos.

A pergunta inevitável que viria depois disso é: e aí? Algum congressista teria coragem de defender a proibição completa da venda de bebidas alcoólicas em território nacional, como os EUA tentaram fazer no começo do século 20? Se a resposta for "não", o que impede que drogas de "periculosidade" similar à do álcool sejam igualmente legalizadas além de, mais uma vez, mero tabu?

Note que eu nem toquei nos dilemas sobre liberdades individuais versus custos sobre o sistema de saúde, a viabilidade de barrar venda e consumo por meio da repressão etc. –até porque tem gente muito mais qualificada para abordar essas variáveis.

Mesmo sem levar tudo isso em conta, o fato é que a legislação brasileira de hoje divide os tipos de drogas com base em pouco mais do que pensamento mágico. Se a intenção é realmente proteger a saúde pública, os direitos dos cidadãos e evitar injustiças, trata-se de uma base extremamente frágil, que precisa ser substituída pelo que realmente sabemos a respeito dos efeitos de cada substância.


Texto de Reinaldo José Lopes na Folha de São Paulo.

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