sábado, 23 de abril de 2022

A água que nos mata a sede hoje pode ter banhado os genitais de Napoleão


Escutem o que diz Giulio Boccaletti, da Universidade de Oxford, e depois digam que é má vontade minha. O autor do livro "Água: Uma Biografia", afirma: a água que hoje bebemos já passou pelos rins de um dinossauro.

É isto, amantes da natureza, o que a natureza tem para nos oferecer. Sempre a mesma água, do início dos tempos até hoje. Evapora, condensa, precipita. Evapora, condensa, precipita. Às vezes a gente protesta num bar se nos dão um copo sujo. A natureza anda a servir a mesma água há milênios e ai de quem a critique, porque a natureza é muito bela.

Será, mas asseada não é. Estamos a beber águas que se evaporaram no passado. O copo de água fresquinho que nos mata a sede hoje pode ter banhado os genitais de Napoleão há 250 anos. A linda cascata que nos encanta agora foi, muito provavelmente, urina de uma vaca do século 19, e já tinha sido um charco fétido na Idade Média.

Eu não acredito na reencarnação, exceto na da água. É reenaguação. E pedem-me que ame a natureza. Ninguém que eu amo me ofereceria um coquetel de esgoto antigo, urina velha e riacho sujo.

Devemos respeitar a natureza, não há dúvida. Mas também não custava que a natureza nos respeitasse de volta.

E não me façam falar sobre o movimento de rotação da Terra. A translação ainda se tolera. A rotação parece-me um excesso de ornamento brega. Sempre a andar à roda. Para quê? É um planeta ou um carrossel?

Outra: certas tartarugas respiram pela bunda. Que interesse tem isso? Terá valido a pena aplicar complexos recursos de engenharia biológica para obter esse efeito? Essa espécie particular de tartaruga está em vias de extinção. As que respiram pelo nariz, curiosamente, vivem bastante.

Nós também temos culpa, claro. Não sabemos interpretar as idiossincrasias da natureza. Sabem quantas pessoas morrem por ano por causa de veados? Cerca de 200. Eles vêem um carro e param, provocando acidentes mortais.

Quantas pessoas morrem por ano por causa de cobras? Cinco e meia. Devíamos ter pesadelos com o Bambi, não com os animais responsáveis pela morte de apenas cinco pessoas e meia. Àquela meia pessoa que elas matam, provavelmente as cobras estão fazendo um favor. Sobretudo se ela for só a metade de baixo.

Tudo isto me deixa tão enervado que eu deveria beber um chá, para acalmar. Mas, tendo em conta o que a água é, só me irritaria mais.


Texto de Ricardo Araújo Pereira, na Folha de São Paulo

O mau maluco


Hoje faz exatamente seis meses que desisti de um amigo louco. O motivo não foi a loucura —além de preferir os doidos, estou bem ciente de que faço parte da mesma farmácia—, mas sim o fato de ele ser um mau maluco.

Assim como há limite para aturar gente muito equilibrada ou solar —e o meu costuma ser minúsculo—, há um limiar para suportar os doidos. Nesse caso específico, porque firmo uma espécie de contrato cósmico com gente fora da casinha, topando passar por todo tipo de provação em nome de alguma magia, demorou pelo menos duas décadas.

Conheci meu ex-amigo louco quando ainda trabalhava como redatora publicitária. Éramos estagiários e dividíamos a mesma mesa. Na primeira semana de convívio, já fui tragada para um vórtex frenético e obscuro de pedidos de demissão (ele avisava que ia se demitir sete vezes por dia e depois pedia, na mesma tarde, para que a gente não contasse isso a ninguém), rompimentos com uma pobre noiva (ele terminava e voltava a cada cinco dias) e promessas de suicídio (me ligava dizendo que estava dirigindo em alta velocidade na marginal Pinheiros, esperando a hora que fosse bater em uma árvore; eu ficava tentando me lembrar onde ele poderia achar uma árvore). Mas essa era a parte chique. Aos 20 e poucos eu usava esse amigo louco como usava calças skinny com a barra dobrada. Era cool.

O doido tinha um negócio que era uma cara arrogante de merda. Contava que, quando ele tinha sete anos, a sua mãe francesa não lhe deixava brincar de Fofão nem de Comandos em Ação e metia um Godard ou um Buñuel no aparelho de VHS da sala. A mulher, deprimidíssima, em uma casa que vivia na escuridão, dizia que toda criança era burra. E ele, forçado a ver "O Anjo Exterminador" pela centésima vez, começou a arrancar a carne ao redor das unhas. Como um rato velho obsessivo procurando uma infância no lixo, as feridas começavam na ponta dos dedos e subiam até o meio das mãos. A gente ouvia isso e pensava: "Ah, tudo bem que ele nos trate feito imbecis, é o mínimo que ele pode fazer contra a nossa esperança".

Anos depois, a cada vez que eu lançava um livro, lá estava o insano. Chegava cedo, indecentemente odioso à minha pessoa. Em uma das vezes comentou, rindo apenas com aquela empáfia de narinas, como se a soberba do seu estado maníaco tivesse o poder de inflar de forma sobre-humana seus pulmões: "Também estou escrevendo uma parada, mas você sabe: é livro de verdade".

Acompanhava cada apresentação de meus novos amores desejando que eu falecesse enquanto sentia a paixão aquiescer meu peito. O amor possível entres pessoas lhe fazia sentir tão diminuto que o atormentado começava a vozear elevadamente. Formulava com brilhantismo, com uma perspicácia invejável, sentenças que nos desnudavam por completo, na expectativa de que também caíssemos. E a gente perdoava porque pensava: "O louco quer companhia em sua tacanhez". Eu via. Todos viam. Mas de repente ele começava a chorar e a dizer que não aguentava mais. A verdade é que tínhamos muita saudade. Saudade de ele ser internado.

Ao longo de duas décadas, todas as pessoas que eu conheci em comum com o demente desapareceram da sua vida. E preferiram a vergonha atroz de admitir o que mais temiam (e o que nem de longe era real): não deram conta de suportar um doente. Mas ninguém tinha coragem de dizer a verdade: o louco era um mau louco. Esse era o quinhão que a gente não conseguia admitir. A fração mais importante e que acabava diferida tamanha a inflamação que a loucura do louco nos causava.


Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo

terça-feira, 19 de abril de 2022

Grafias surpreendentes revelam escrita baseada na oralidade


Na última publicação, toquei de leve em um tema que, há tempos, me chama a atenção, mas que costuma ser tratado, no mínimo, como secundário. Nestes nossos tempos de redes sociais e de aplicativos de mensagens, todos passamos a escrever com muito mais frequência, mas sempre preocupados em simular uma fala descontraída com nosso interlocutor. Surge, assim, um registro escrito informal, que vai migrando para outros domínios, aqueles em que, há não muito tempo, cultivávamos algum grau de formalidade.

Nos diálogos escritos, lançamos mão de muitos pontos de exclamação para mostrar entusiasmo pela conversa (Bom dia!) e suprimimos o ponto final para não sermos deselegantes ou grosseiros. Num papo ainda mais informal, simulamos a linguagem das histórias em quadrinhos e fazemos uma longa sequência de vogais para tentar reproduzir a fala (oiii!). Palavras que não imaginaríamos escritas aparecem diante de nossos olhos e ficam registradas para a posteridade: "oie", "tá bão", "óia".

Erros de grafia costumam ser perdoados pelos amigos, pois, afinal, o "corretor" do aparelho deduziu que queríamos dizer "comunismo" quando estávamos prestes a escrever "comunhão" ou quem sabe nos tenha feito dizer algum absurdo como "chave forte por aqui" em vez de "chove"... No meio desses, vão aparecendo outros do tipo "mal gosto" em vez de "mau gosto" – ah, foi o "corretor"! Aos poucos, as grafias mais estranhas se tornam familiares e talvez até deixem de ser percebidas à primeira vista como incomuns.

Os emojis, as figurinhas e os memes, às vezes, substituem as palavras nessa comunicação escrita informal, em que importa ser engraçado e simpático. As frases são curtas, no melhor estilo telegráfico (saberão os jovens o que significa "telegráfico"?). Procura-se mimetizar a fala, que é o referencial dessas mensagens. Daí ser problemático usar o aplicativo para outros tipos de comunicação, que requerem, na vida real, alguma formalidade.

Sim, a formalidade não foi abolida da vida real. Prova disso foi um caso de "demissão por aplicativo", ocorrido no ano passado, durante a pandemia, que foi parar na Justiça.

Como a fala é o referencial, por excelência, das mensagens trocadas nos aplicativos, nos chats e nas redes sociais, passamos a escrever não só como falamos mas também como ouvimos, o que pode nos pôr diante de algumas grafias surpreendentes. Os exemplos que trago aqui não foram colhidos fortuitamente; são, na verdade, cada vez mais frequentes.

Um site de nome "Dicionário Informal" registra a forma "dale", assim definida: "vibração positiva, comemoração, enaltecer algo ou alguém" e seguida de "abonação": "Dale Ayrton Senna do Brasil!" . "Dale", na verdade, é "dá-lhe". Dizemos "dá-lhe" quando torcemos para que, numa disputa, alguém vença o adversário. Algumas pessoas pronunciam o "lh" como "l", o que é muito comum. A grafia, no entanto, é objeto de convenção. Ou era.

O mesmo se dá com a expressão "ainda sim", que mencionei na publicação anterior. Um leitor sugeriu que se tratasse de um erro de digitação. Sim, mas suficientemente frequente para já figurar em sites de dúvidas de português que existem aos montes na internet. "Ainda sim", que tem aparecido em grandes jornais brasileiros, está no lugar de "ainda assim", ou seja, de "mesmo assim", que é uma expressão de natureza concessiva. É fácil perceber que as sequências "ainda assim" e "ainda sim" soam da mesma forma aos nossos ouvidos, mas a expressão escrita requer mais que os ouvidos.

Grafias como "agente" no lugar de "a gente", "afim" no lugar de "a fim", "concerteza" no lugar de "com certeza", "fachetária" no lugar de "faixa etária" ou mesmo "ainda sim" no lugar de "ainda assim" e "dale" no lugar de "dá-lhe" são típicas de uma espécie de "português de ouvido", que revela certa imaturidade no manejo da língua, sobretudo na sua dimensão formal.


Texto de Thaís Nicoleti, na Folha de São Paulo

A piranha do colégio é mártir desbravadora que se sacrificou para nos salvar


Sentem-se ao redor da poltrona, meninas, pois vovó vai contar como foi atravessar a adolescência no período pré-feminismo. Vejam bem, no final dos anos 1990, o feminismo já era um movimento consolidado. O problema era que nos corredores da escola onde estudei ainda não se falava sobre isso.

Hoje, a maioria dos colégios particulares tem um coletivo feminista, um professor afastado por comentários inadequados, uniformes sem gênero. Mas quando a vovó era garota, era cachorro come cachorro. Ou melhor: cachorra come cachorra.

Vamos voltar para o Brasil Império, no ano de 1827, em que o direito à educação da mulher foi reconhecido, com uma lei que permitia que meninas finalmente frequentassem colégios. Uma luta encampada por Nísia Floresta, ativista pela emancipação feminina.

Nísia certamente não fazia ideia de que, 172 anos depois, eu estaria usando um sutiã de enchimento, trancada na cabine do banheiro, pichando nas paredes os dizeres: "FULANA PUTA". Fulana, como vamos chamá-la aqui, era uma figura popularmente conhecida como a piranha do colégio.

A piranha do colégio era aquela menina cujo corpo ganhou contornos mais cedo do que os de suas colegas. Tinha peito, bunda, e seu rosto não era uma terra arrasada pela acne. Não restava dúvida de que ela era a preferida de Deus.

Mas ser a piranha do colégio exigia grandes responsabilidades. Além de ser alvo da inveja daquelas que um dia foram suas amigas, ela era requisitada pelos rapazes mais populares do ensino médio, geralmente mais velhos e mais experientes.

Era uma época em que nossa principal fonte de conhecimento eram as revistas femininas para adolescentes, que nos ensinavam mil maneiras de cumprir nossa principal missão neste plano: atrair a atenção dos garotos. O boletim da piranha do colégio poderia não ser motivo de orgulho para seus pais, mas, para nós, ela já havia chegado ao topo.

A piranha do colégio era pressionada a honrar o papel para o qual foi designada. E assim dava início à sua vida sexual cedo demais, com o pior tipo de cara que se pode imaginar. Moleques imaturos, arrogantes, que tinham o mundo inteiro servido a eles numa bandeja e definitivamente não sabiam respeitar uma mulher.

É preciso reconhecer que a piranha do colégio é uma mártir. Uma desbravadora que se sacrificou para nos salvar. Toda instituição de ensino deveria ter um monumento em homenagem à piranha do colégio.


Texto de Manuela Cantuária, na Folha de São Paulo

segunda-feira, 18 de abril de 2022

Um brinde às amizades


Ontem minha melhor amiga morreu e saí para dançar.

A saúde dela, que havia se tornado mais frágil ao longo dos últimos anos, não suportou o oportunismo do vírus da Covid.

Fui na festa de um querido, celebrar a vida que ela me ajudou a apreciar.

Outro amigo, Christian Dunker, lembrava em conferência que, se o amor de transferência forjado numa análise é campo de cura, também os amores de uma vida (conjugal, fraterno, filial) podem sê-lo.

Nos conhecemos na faculdade e ela costumava contar que encasquetou ser minha amiga no primeiro dia de aula. Do alto dos meus nem 20 anos, me interessava pouco pelos alunos mais velhos —ela estava na casa dos 50—, flagrante do que viria a ser chamado de etarismo quatro décadas depois.

Mal sabia eu que nossa amizade seria o pivô da saída de minha existência besta de adolescente. Sua personalidade única se chocou com meus controles obsessivos. Anos ao lado dela equivaleram a décadas de análise.

Quando me encontrava diante de dilemas amorosos e lhe perguntava o que fazer, a resposta era sempre: na dúvida, vai fundo. Sem papas na língua ou vontade de fazer concessões ao desejo do outro, Dinorah já nasceu com a convicção de que nunca se tem tempo a perder.

De adventista criacionista a terapeuta reichiana, foram inúmeras as revoluções que ela fez em sua vida e na de todos à sua volta.

Nunca cedeu ao que se esperava de uma mulher ao envelhecer, fosse para agradar a amigos, marido ou filhos.

Nas horas sombrias da minha vida, conseguia me convencer de que eu sobreviveria. Nas disputas, saía em minha defesa antes mesmo de saber a versão do outro. Maravilhosamente parcial, tendenciosa a meu favor, não saberia definir melhor o sentido de uma amizade.

No trabalho de luto, temos o tempo incomensurável de recolher tudo o que depositamos no objeto amado até reinvestirmos grande parte desse afeto em outras coisas e pessoas. Quando perdemos um amante, paira no ar a possibilidade de encontrarmos um novo amor. Não se trata obviamente de substituição, mas de um papel que poderá ser cumprido por outro. Mas quando se trata de amizade, a questão não se coloca. Relação tão preciosa pela absoluta singularidade, não existe perda de amigo a ser preenchida. Mesmo quando se rompe a relação, paira a impressão de que poderíamos recuperá-la em outra fase da vida, quando o amadurecimento trouxesse seus ganhos.

Dinorah não queria sossego, vivia atrás de uma muvuca com música e agitação aonde quer que fosse. Sonhava com o fim da pandemia e com a eleição que se aproxima para nos tirar da enrascada no qual nos metemos. Apaixonada por política e pelo Brasil, não deixava que falassem mal da nossa terra.

O luto também requer a elaboração da ambivalência, aquela parcela de ódio que existe em todo amor.

A verdadeira mancada da Dinorah foi ter nascido tanto tempo antes de mim e ter me deixado aqui sem ela. Imperdoável, minha querida amiga.

O luto implica na simbolização da perda, da qual fazem parte essas linhas tortas. Assim também faz parte reinvestir cada lembrança através dos gestos que pretendem homenagear o ente perdido.

Dinorah morreu, e eu fui pro samba na casa de amigos, como ela me exortaria a fazer, caso tivesse sido consultada.


Texto de Vera Iaconelli, na Folha de São Paulo

sábado, 16 de abril de 2022

Seria Jair Bolsonaro agente secreto de Satanás?


Paulo Guedes, ministro Arrelia da Economia, sustenta que o governo Bolsonaro realizou reforma administrativa profunda, porém invisível.

Sim, tão invisível quanto a honestidade de Jair Bolsonaro (PL), que queria esconder as 35 visitas dos amigos pastores, investigados por corrupção, entre eles o que trocava verbas do Ministério da Educação por barrinhas de ouro, ao Palácio do Planalto.

Ciro Nogueira (PP), ministro da Casa (in) Civil da Presidência da República, com extensa folha corrida de pilantragens políticas, sustenta que na administração federal a corrupção é só virtual, sem desvios reais, ainda que o governo de Jair Bolsonaro esteja virtualmente corrompido.

Licitações genéricas. Critérios fictícios. Obras nas coxas. Estradas esburacadas. Firmas de fachada. Reuniões (sem ata) com representantes de empreiteira que venceu 53 de 99 concorrências promovidas por estatal, que não faz parte dos planos de privatização do liberalíssimo Paulo Guedes (pelo menos em relação à drenagem de recursos públicos para aliados suspeitos e socorrer Bolsonaro em ano de eleições), para discutir "temas de interesse institucional".

O modelo Bolsonaro de desperdício tem tido aparente aval do Tribunal de Contas da União, que, evidentemente, sempre leva em conta "o interesse público de populações carentes", o bloco dos desvalidos.

Enquanto Jair Bolsonaro "acalma" o Parlamento, sempre excitado e em busca de calmantes, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP), ostenta a fantasia honorífica do cangaceiro: observa o fornecimento de "kit robótica" (com sobrepreço) para escola pública sem água encanada e internet, entre outros desperdícios de verbas originariamente destinadas à educação, e já idealiza um jeito de faturar alguma coisa com a privatização da megera Petrobras, que, evidentemente, nas mãos da iniciativa privada, vai parar com essa história de aumentar o preço da gasolina –na guerra e na paz.

Os blocos de Carnaval estarão nas ruas em abril. A Defensoria Pública de São Paulo protocolou requerimento à Polícia Militar para que os "festejos" não sejam reprimidos, lembrando o "histórico de violações dos Direitos Humanos".

Jair Bolsonaro, mestre-sala do bloco "Brasil Sinistro", faz emergir do esgoto político, além dos próprios filhos, outrora aprendizes da modalidade "rachadinha" de peculato, homens públicos fantasiados de Flordelis (Deus acima de todos), Daniel Silveira (o que ri do assassinato de Marielle Franco), Gabriel Monteiro (tarado por meninas novinhas), Tarcísio de Freitas (fantoche da infraestrutura), Fred Wassef (advogado do Diabo) e Fabricio Queiroz (o laranja-mor).

A explicação mais lógica que há para a existência de tantos pastores no mundo do crime (a lista de delitos é de fato quase infinita, da lavagem de dinheiro à pedofilia, da corrupção ao charlatanismo, da sonegação fiscal ao estupro) é a de que Satanás, incansável inimigo da fé cristã, instiga ministros de Jesus Cristo sempre voltados para o bem, agentes da luz, à prática do mal.

Seria Jair Bolsonaro, iletrado, malandro e beligerante, falsário da Bíblia e da luta do bem contra o mal, um agente secreto de Satanás? Fica a dica de samba-enredo.

E para a alegria geral dos compositores e amantes de marchinhas carnavalescas, o Brasil descobre que, em tempos de paz, e muito além da cloroquina, as Forças Armadas, impávido colosso, investem na aquisição de Viagra e prótese peniana.


Texto de Luís Francisco Carvalho Filho, na Folha de São Paulo

sexta-feira, 15 de abril de 2022

Mas tem coisa boa também


Você não vai acreditar como está Ana Paula Arósio hoje! Você não vai acreditar como está a sósia mirim de Ana Paula Arósio hoje! Você não vai acreditar quem é o marido de Ana Paula Arósio hoje! Você não vai acreditar quem é a mãe de Ana Paula Arósio hoje! Quem escreve essas matérias? Quem clica nelas?

Influencers brancas de Pinheiros, com pouca flacidez e uma pequena cicatriz, ensinam tudo sobre autoaceitação e autoconhecimento. Sabe, não é todo dia que ela consegue. E ela precisa ser sincera nesse momento superdescontraído em que seu vídeo fica preto e branco e ela cochicha. Tem dias em que ela se sente um lixo. Caramba! Que força!

Existe uma quantidade indecente de tapeçarias nas paredes, águas saborizadas, begônias maculatas que recebem sagrados femininos uma vez por mês.

E a Covid, o fascismo, os grupos neonazistas, a guerra, o aumento de pessoas em situação de rua, as balas que ainda tiram as vidas de jovens pretas, o aumento da violência contra as mulheres? Calma, coração. Essa é só uma crônica banal sobre chatices e, por isso, você, que toda semana reclama que minha crônica não é tão séria quanto deveria, está devidamente representado aqui.

Existem vários grupos de WhatsApp com uma infinidade de homens solteiros e mulheres solteiras que passam o dia analisando cada frase do Lula e do Alckmin e do Mamãe Falei e de completos desconhecidos do Twitter. E ninguém no grupo jamais flerta ou transa.

Se eu tiver que ler mais um livro de psicanálise pra saber como lidar com a minha filha, eu vou rasgar, morder, atirar pela janela. Se eu tiver que ler mais um livro de psicanálise pra saber como lidar com a minha vontade de fazer isso com os livros de psicanálise para lidar com crianças, eu vou me rasgar, me morder e me atirar pela janela.

Ligo pra ginecologista e pergunto por que ela não me avisou que o DIU com hormônio podia me deixar assim. Ela diz que não é o DIU. O Google inteiro diz que é o DIU. Eu poderia rasgar, morder, atirar pela janela...

Fiz um plano médico empresarial e meti minha família inteira. Ele custava uma moto por mês. Passou a custar um Corsa usado. Esse mês veio a fatura de um apartamento de frente pro mar.

Não sei o que aconteceu com o número do meu celular, mas ele deve estar em alguma central publicitária do descaramento e da desgraça porque o dia inteiro me ligam "Oi, somos de uma churrascaria, queremos convidar você e um acompanhante pra comer aqui até morrer. Bebidas não inclusas. Pedimos um combo de stories e duas fotos no feed". Eu odeio todos vocês.

Eu não suporto mais estar em redes sociais. Dane-se que participei de uma reunião boa, que ganhei uma camisa 100% sustentável, que sou amiga de algum progressista conhecido.

Um monte de apoiador do pior presidente da história se junta pra ficar andando de moto e qual o nome do evento? Acelera pra Cristo. Penso em escrever no Twitter que é exatamente o que eu desejo pra eles. Acelerem bastante, amigos, pra ver logo Cristo.

Tenho um vizinho que canta ópera o dia inteiro e outro vizinho que briga com o marido e berra pela janela: "Eu não aguento mais sofrer por amor, chamem a polícia" e eu quero declarar minha admiração a essas duas pessoas absolutamente estranhas e maravilhosas.

Eu tenho um namorado que anda pela cidade trepando em árvores, que quis melhorar meu guacamole colocando suco de laranja, que diz que tem uma conexão espiritual com aranhas, que come meus restos de maçã com a coluna mais ereta que eu já presenciei na vida e que um dia ficou obcecado pela música "É só o fim", do Camisa de Vênus, e ficava desesperado "por favor, tira isso de mim". E eu quero declarar meu amor infinito a você.


Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo

quarta-feira, 13 de abril de 2022

O amigo pessoal e o seu contrário, o amigo coletivo


Você já deve ter ouvido a expressão, em geral na negativa. "Conheço o fulano, mas não é meu amigo pessoal." Gosto dessa categoria tão brasileira. Não consigo imaginar a expressão em outras línguas. A busca por "personal friend" no Google revela um serviço de aluguel de amigos. Curiosamente "amigo pessoal" em inglês é amigo profissional.

No Brasil, a categoria confunde porque pressupõe que existam outros tipos de amigo. Parece que dá para contrair amizade sem passar pela pessoa física. "O fulano é meu amigo espiritual. Beltrano? Meu amigo jurídico."

O conceito, no entanto, faz sentido. Nem todo amigo tem uma relação individual com você. Alguns amigos da vida toda nunca ficaram no mano a mano. Todo o mundo tem amigos pessoais e tem amigos coletivos. O fenômeno acontece quando relação não é direta, intransferível, mas mediada por uma turma.

Atenção: o amigo coletivo difere do colega ou do "conhecido", que curiosamente é como chamamos aquele que não conhecemos muito bem. Difere mais ainda do semiconhecido, aquele que conhecemos menos ainda. Existe uma hierarquia: o semiconhecido está abaixo do conhecido, que vem logo abaixo do colega, que vem antes do amigo coletivo, que precede o amigo pessoal.

Do conhecido você sabe o nome, do amigo coletivo você sabe o signo, do amigo pessoal você conhece o funcionamento do intestino. Você sabe o bairro onde o conhecido mora, do amigo coletivo você sabe a rua —do amigo pessoal você sabe o prédio, o apartamento e a senha do wifi— quando não sabe, adivinha.

Puristas da amizade dirão que amigos não pessoais não podem ser chamados de amigos. Discordo. O amigo grupal tem, sim, seu valor. Diverte, preenche, entretém. E o mais importante: é dele que pode nascer, um belo dia, quando menos se espera, o amigo pessoal.

Basta chover um pouco mais. E vocês ficarem ilhados no escritório. Ou basta um porre, uma viagem, um acidente, um pneu furado. O que separa um amigo coletivo de um amigo pessoal, muitas vezes, é um perrengue. Mas pode ser uma carona —de preferência daquelas demoradas, na hora do rush. Se cair um temporal, melhor ainda. Entre um silêncio e outro, você vai abrir uma chaga, e ele vai compartilhar uma memória, você vai rebater com uma esperança, ele vai contar um segredo. Pronto. Ali, na avenida Brasil alagada, sob o abrigo de um palio weekend, o amigo pessoal acaba de nascer.


Texto de Gregório Duvivier, na Folha de São Paulo

Lygia Fagundes Telles e a sombra do etarismo


Se o adjetivo gordo deixou de ser pejorativo para ser alçado a uma qualidade entre outras, o mesmo não se pode dizer de velho.

Idoso, então, só é aceitável para se estacionar em lugar prioritário ou pagar meia-entrada. Mesmo assim, há quem decline do direito em prol da discrição.

Idosa e velha têm um tom ainda mais nefasto em função do gênero feminino.

Vale relembrar que o filósofo Paul Preciado avalia em anos o valor que o homem e a mulher passam a ter quando voltam ao mercado amoroso-sexual depois do divórcio com filhos. Para cada filho, cujos cuidados recairão majoritariamente sobre a mulher, ela deve acrescer alguns anos a mais do que o homem nas mesmas circunstâncias. A lógica só se modifica quando as mulheres se voltam para o mundo lésbico, no qual as senhoras permanecem em alta. Entre homens gays, no entanto, é comum a queixa de que o envelhecimento é visto de forma impiedosa.

Segundo reportagem da FolhaLygia Fagundes Telles teria driblado 5 anos de sua biografia, relatando ter nascido em 1923 em vez de 1918 como consta em documentos acessados pela reportagem. É comovente que uma mulher considerada imortal pela grandiosidade de sua obra sentisse a necessidade de alterar a própria idade. Embora não possamos jamais saber suas razões, não seria de se estranhar que temesse que o peso dos números afetasse o julgamento sobre ela.

Se você diz que tem 60 anos, a resposta esperada é "nossa, nem parece". O que nos obriga a completar a frase com: "nem parece uma velha de 60 anos". Como a linguagem é o que dá acesso aos fatos, o número gera um segundo olhar em busca das marcas que o corroborem, escrupulosamente escondidas por ginástica, roupas, cremes, maquiagens, intervenções e cirurgias. Onde pairava a possível atração, passa a valer o escrutínio numérico da idade, cravando expectativas que vão do: "nem parece" ao "está acabada".

Em uma época em que a obsolescência programada é o motor do consumo e da lógica das relações, nada mais coerente do que imaginar a velhice como um demérito, quase um desvio de caráter. Que a crítica seja implacável com as mulheres se justifica pela sua redução aos significantes sexual e reprodutivo, inversamente proporcionais à passagem dos anos. Marieta Severo agitou a cabeleira branca para lembrar aos jovens que o espelho não lhes dará nada além de miragens e que a possibilidade de manter-se lúcido e atuante é uma razão pela qual vale a pena continuar. A força de suas palavras não deixa dúvida sobre o vigor de Severo.

Minha mãe, do alto de seus quase 95 anos, me diz indignada: "o médico me indicou usar um remédio para o olho pelo resto da minha vida!", reforçando com o movimento das mãos que se trataria de décadas e décadas. Não duvido. Ela faz parte do grupo das idosas, cuja inteligência e memória permanecem intactas, assistindo aos rateios do corpo com espanto e inconformismo.

Vivemos mais do que os homens, mas, entre mulheres, as negras vivem muito menos do que as brancas. Fato que fica escancarado diante das filas de vacinação contra Covid que sempre começam com os nonagenários. A maioria é escandalosamente branca, pois a longevidade depende de acesso à saúde, à moradia, à aposentadoria e à segurança de qualidade.

Vida longa a todas as mulheres, as vaidosas e as nem tanto, as que alardeiam suas idades e as que a escondem, enfim, as que fazem o que bem entenderem com os limões da contemporaneidade.

Para aquelas que têm o privilégio de envelhecer no país do absoluto descaso com o idoso –principalmente negro–, que o façam como puderem e quiserem.


Texto de Vera Iaconelli, na Folha de São Paulo

domingo, 10 de abril de 2022

Do Leme ao Frontal


Li outro dia uma entrevista com a escritora , autora do livro e criadora da série "Sex and the City". Nos anos 1990 e começo dos 2000 ela foi porta-voz de uma legião de mulheres mundo afora, ganhou rios de dinheiro e hoje pode dedicar-se ao que quiser, sem ter que se importar, como diria Tim Maia, "com esse papo de emprego". Imaginava a verdadeira Carrie Bradshaw como uma mulher realizada. Nada. É um poço de ressentimento. Ela queria mesmo era ser levada a sério pelos acadêmicos de Yale.

Por uma dessas coincidências sem qualquer valor estatístico, mas que dão de comer à crônica, ouvi outro dia um podcast com Tom Hanks. Achei que o Tony Ramos californiano, pelo menos, fosse uma pessoa realizada. Como ator, ajudou a derrotar o nazismo na Segunda Guerra, consertou uma nave espacial em pleno voo e a trouxe de volta à Terra, deu voz ao protagonista da melhor animação de todos os tempos. Tava feliz, o Tom? Nada. Tava caidão.

Não era um poço de ressentimento, mas se via como alguém em decadência, um ator cujo auge estava lá atrás. Imaginei Tom Hanks aflito, zapeando pelos streamings e stalkeando jovens atores nas capinhas dos filmes. Imaginei Tom Hanks no psiquiatra. Imaginei Tom Hanks de samba-canção, no banheiro, tomando Frontal. Aí me deu um alívio: o problema não sou eu, é o mundo.

Todas as pessoas que eu conheço são ressentidas. Todas. As ricas e as pobres, as casadas e as solteiras, as magras e as gordas, as da chefia e as do almoxarifado. Minifábula ready made: "O que é a humanidade?", perguntou o grilo ao sábio da montanha. "A humanidade", disse ao grilo o sábio da montanha, "é uma máquina de foder cucas".

Cês não têm a sensação de que as piores ideias venceram, em todas as áreas? É como se houvesse uma antisseleção natural implacável por trás da história, empurrando-nos do Éden pro murundu. O Éden, aliás, é parte crucial de uma das principais ideias de jerico. Você tinha o budismo e esse negócio bonito pra caramba de estar ao mesmo tempo ultraligado a tudo e ausente de si mesmo. Tinha politeísmo. Umbanda, Candomblé, Grécia Antiga. Deus homem, deusa mulher, deus hermafrodita, deus bravo, deus manso, mamãe Oxum das águas doces, Apolo ensolarado, Dionísio embriagado, um deus pra cada tipo de pessoa. Mas que ideia venceu? Um Deus só, brabo, cujo catatau de 1.567 páginas pode ser resumido a: "Cês erraram grandão lá atrás, agora tratem de sofrer bastante e se eu estiver de bom humor, quem sabe, numa outra vida eu lhes jogue umas sardinhas".

Não satisfeita com essa bela base depressiva, ligada a um trauma insuperável, a humanidade se perguntou: pra piorar, vamos construir o que em cima? A sociedade de consumo, essa fonte incessante de insatisfação, nos fazendo crer que a felicidade tá sempre em outro lugar. É tipo aquele suplício medieval da roda. As cordas das pernas puxam pra depressão, as do braço pro transtorno de ansiedade.

Algum grego ou latino disse que "filosofar é aprender a morrer". Pois as sociedades que chamamos de "primitivas" são universidades de aprender a morrer. São fábricas de sentido. A gente é uma empresa de demolição. Minifábula ready made: "O que é a humanidade?", perguntou o grilo ao sábio da montanha. "A humanidade", disse ao grilo o sábio da montanha, "é dar quase nada à esmagadora maioria das pessoas e dizer a elas que podem tudo: se não conseguirem é porque são incapazes". Candace Bushnell não tá feliz, Tom Hanks não tá feliz e eu confesso que também não me sinto muito bem.


Texto de Antonio Prata, na Folha de São Paulo

YouTube tem anúncios que nos obrigam a tirar férias para ver meia hora de vídeo


Precisava ver um vídeo de meia hora no YouTube, por isso tirei uma semana de férias. Não é fácil. Antigamente, quem pretendia assistir a um vídeo no YouTube começava por ser sujeito a um de três castigos: ou via um anúncio publicitário de seis segundos, ou via um anúncio publicitário de 30 segundos do qual se poderia livrar ao fim de seis, ou via um anúncio publicitário de 30 segundos até ao fim. O primeiro era uma repreensão curta, o segundo era a repreensão mais longa, de que nos poderíamos livrar se prometêssemos que nos comportaríamos, o terceiro era o clássico "temos de ter uma conversa".

Normalmente, uma conversa sobre a falta que nos faz determinado xampu. Mas agora os vídeos começam com mais do que um anúncio.

Primeiro aparece um que tem no canto inferior direito a indicação: "Este anúncio termina dentro de seis segundos." Findos os seis segundos, quando a gente pensa que o vídeo vai começar, aparece outro anúncio, com a seguinte indicação no canto inferior direito: "O seu vídeo começará dentro de seis segundos."

Ou seja, o primeiro anúncio nos engana. E, no entanto, ninguém pode dizer que ele não diz a verdade: de fato, o anúncio termina após seis segundos. Mas apenas para dar lugar a outro anúncio. É um ardil habilidoso, uma burla impossível de punir.

Por isso, aponto sempre a marca do produto publicitado nesse anúncio, para não adquiri-lo. A seguir, vem o segundo anúncio. Embora honesto na aparência —uma vez que informa, com rigor, que o nosso vídeo começará dali a seis segundos, o que se verifica—, ele participou na fraude. É, até, o que mais beneficia do embuste. Ludibriados pelo primeiro, damos mais atenção ao segundo, porque acreditamos que já é o vídeo que escolhemos.

Por isso, aponto sempre a marca do produto publicitado nesse anúncio, para não adquiri-lo. Depois, começa o vídeo. Que, a certa altura, é interrompido para ser transmitido outro anúncio.

A meio de uma palestra sobre "Hamlet", a que eu estou a assistir para depois reproduzir tudo ao jantar e as minhas filhas pensarem que eu sou inteligente, aparece um anúncio sobre uma bebida que agora também está disponível com sabor a lima. Por isso, aponto sempre a marca do produto publicitado nesse anúncio, para não adquiri-lo. Tenho poupado muito dinheiro.


Texto de Ricardo Araújo Pereira, na Folha de São Paulo

Nada é mais cruel do que negros que querem ser brancos, diz Paulo Scott


Um dos semifinalistas do International Booker Prize, um dos prêmios literários mais importantes do mundo, Paulo Scott tem chegado às páginas de grandes jornais estrangeiros e conquistado críticas elogiosas a "Marrom e Amarelo", seu livro sobre colorismo que ganhou tradução para o inglês.

Entre os aspectos que despertaram a atenção dos críticos está a maneira como o livro, batizado de lá fora de "Phenotypes", escancara a hierarquia que existe no Brasil entre pessoas negras com tons de pele mais claros ou mais escuros, um dilema que o próprio autor vive —ele, amarelo, e seu irmão, marrom.

O livro, publicado em 2019 pela Companhia das Letras, volta à tona agora a partir de sua repercussão internacional —a lista de finalistas do Booker sai nesta quinta-feira, e o vencedor, no fim de maio.

Ganha ainda uma sobrevida entre os leitores no ano em que a lei que criou as cotas raciais nas universidades públicas brasileiras deve ser revista. Isso porque seu protagonista, Federico, é um cientista social que participa de uma comissão que busca definir critérios para a identificação étnica de autodeclarados afrodescendentes que se candidatam às cotas.



"[A indicação ao Booker] é um reconhecimento da minha narrativa. Eu me esforço para ter minha voz. Você pode dizer, como dizem já há muito tempo, que não gosta do que o Paulo Scott escreve, mas você bate o olho e vê que é um Paulo Scott. Posso ir para tumba com esse rótulo de não ter sido alguém relevante, mas ter tido teimosia para cavar o próprio buraco. Se ninguém quisesse me ler ou me publicar, eu mesmo ia me editar."

"A angústia da narrativa é um elemento que as críticas estrangeiras compreenderam de maneira mais clara do que as brasileiras. Isso pode ser mal lido, mas o estrangeiro, que não está contaminado pelo nosso trauma, lê o Brasil melhor. Sabe aquela pessoa que foi abusada quando criança e não consegue encarar o trauma? Você passa isso para o racismo. A escola brasileira é um instrumento de eliminação da autoestima e da subjetividade da comunidade negra."

"Eu tinha cabelo castanho claro e liso quando criança. Sempre tive essa cor caramelo claro. É por isso que meu pai me chama de amarelo, e meu irmão, de marrom. Meu avô, de sangue italiano, indígena e negro também, tinha um modo muito cruel de replicar o racismo. Os primos de pele mais clara eram bastante cruéis com os de pele mais retinta —curiosamente, o de pele mais retinta de todos era o meu irmão. Eu já sentia o racismo, mas foi na escola que compreendi o que é ser um homem negro e que tinha que me posicionar. Na universidade, me tornei um banner contra o racismo."

"Não tem nada mais maligno e cruel do que o colorismo e quando as pessoas negras se querem brancas. As pessoas têm dificuldade de se afirmarem negras porque, quando você é estigmatizado, começa a acreditar que ser preto é um problema, um erro, um pecado. A gente se acomodou na ilusão de que chegamos a um equilíbrio. É nocivo fazer um movimento social se sentir protegido dentro do guarda-chuva de quem está no poder."

"O governo Lula foi o melhor do país, mas ou o Brasil reconhece a sabedoria de quem não está na USP, ou não vai se resolver. Lula teve uma percepção incompleta do momento. Ele conseguiu viabilizar um projeto, mas acabou suavizando uma tensão que é incontornável. O grande erro foi pensar que havia possibilidade de estabilidade nas relações de classe. A minha geração fracassou. No alto da sua arrogância e da sua preguiça mental, as lideranças de esquerda pediram de joelhos para o Brasil chegar aonde chegou."

"Não quero fechar uma régua dizendo que homens brancos héteros não vão ter mais espaço. Pelo contrário. Boa literatura é boa literatura. Não basta ter o tema. Tem que ter uma boa linguagem."

"Não sou um escritor ativista. A leitura política dos meus livros é que os faz terem esse enquadramento. Na minha escrita não tem essa intenção. Só quero contar boas histórias. O ativismo sempre vai ser cristalizado. A arte é inconsequência."

"Tem um debate público forjado que admite novos modos de leitura da produção de autoras e autores negros. Assumimos de forma inédita um espaço que não é condicionado, preconceituoso ou hierarquizado. Mas isso não é uma concessão da elite intelectual branca. Isso é pé na porta. Além do mais, vivemos num momento apocalíptico que não se resolve em narrativas articuladas dentro de um conforto do privilégio branco cercado por uma cultura higienizadora. Precisamos de uma Sueli Carneiro, que explica o Brasil como ninguém."

"É preciso ficar muito atento, porque a Câmara que se formou com o bolsonarismo é a mais desqualificada da história do pós-redemocratização. O que me preocupa é que tenho falado com assessores de políticos de esquerda ou progressistas e [a revisão das cotas raciais nas universidades] não está na pauta. Tem pessoas pagando com a vida por nossa inércia política e por nossa falta de coragem de construir uma nação."


Depoimento de Paulo Scott, escritor, a João Gabriel Telles e e Pedro Martins, para a Folha de São Paulo

Banditismo evangélico corrói na surdina instituições republicanas


Eis que a farsa já pode receber o nome de fraude, de banditismo. Banditismo evangélico. Eis que escrevo aqui cheia de raiva desses evangélicos —é que minha mãe, à espera da morte neste exato momento, na inconsciência ou semiconsciência, em um leito de hospital, está muito provavelmente tentando se comunicar com o Deus dela, o Deus do embuste cristão-evangélico.

Até mesmo ela, criada nos bancos duros da Assembleia de Deus desde criança, até ela reconhecia há tempos que a promessa evangélica de paraíso carrega uma nódoa de falsidade, indecência, exploração e trapaça —desiludida com a Assembleia, mudou-se para a Metodista e depois para a Batista. Passou a criticar todas elas. Recolheu-se na sua própria fé octogenária, na sua própria Bíblia, na sua própria harpa de hinos, enfurnada em casa durante a pandemia.

Eis que, enquanto ela aguarda senão pelo Deus que a leve embora desse mundo que já lhe era insuportável, enquanto repousa num leito fatal e frio, eis que minha raiva se avoluma, num velório que não contará com nenhum desses falsários pastores evangélicos. Penso em proibir a presença deles, pois se até minha mãe já percebia a aberração em que se transformou o ethos das igrejas evangélicas no Brasil.

Agora mesmo essas igrejas, que já vinham tão desmoralizadas pela prática de coerção de seus fiéis por dinheiro (antigamente chamado dízimo), em troca da falsa promessa de felicidade em outro mundo, essas igrejas amargariam a derrocada final se o país tivesse governo, regramento e Justiça decente.

Que nada. O banditismo grassa de norte a sul, faz negócios no balcão da promiscuidade entre política e religião evangélica. A recente revelação de que o demitido ministro da Educação, o pastor presbiteriano Milton Ribeiro, fazia tráfico de influência com recursos públicos da pasta já não seria o bastante para indiciá-lo por crime? Indiciar a ele e a seu superior imediato, o fascista Jair Bolsonaro.

O tráfico, segundo o tal pastor, atendia a solicitação direta de Bolsonaro. "Foi um pedido especial que o presidente da República fez para mim", disse Ribeiro sobre a prática espúria.

O tráfico consistia em intermediar, na base da propina em dinheiro ou barras de outro, liberação de verbas do FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação) para municípios por meio de representantes evangélicos, numa rede de negociatas liderada por dois pastores da Assembleia de Deus, Gilmar Santos e Arilton Moura.

Crime de tráfico de influência está no Código Penal, no artigo 332: "Solicitar, exigir, cobrar ou obter, para si ou para outrem, vantagem ou promessa de vantagem, a pretexto de influir em ato praticado por funcionário público no exercício da função".

Sobre a pena que pune esse crime, o mesmo artigo diz: "Reclusão, de dois a cinco anos, e multa. Parágrafo único. A pena é aumentada da metade, se o agente alega ou insinua que a vantagem é também destinada ao funcionário".

O banditismo evangélico vai corroendo na surdina as instituições republicanas, cagando em cima de uma Constituição supostamente laica. Ora, o ethos político e o ethos moral são diferentes, ressaltam os estudiosos do tema, "e não há fraqueza política maior do que o moralismo que mascara a lógica real do poder". Mascarados, criminosos, bandidos. Pois esses moralistas, esses fascistas vestidos de pastores serão vetados!

Enquanto minha mãe se põe a morrer, toda pequena, encolhida e ainda crente, lá no seu leito final, minha raiva se avoluma como uma onda —consigo inclusive ouvir o mar se derramando na praia de Boa Viagem, Recife, eu sentada ao lado dela no culto enfadonho da Assembleia de Deus do bairro. Por vezes os pastores gritavam alucinados lá no púlpito, incorporando algum espírito ou bebendo o sangue de Cristo, diziam, assustando as criancinhas como eu. Um inferno. Falsários, criminosos.

Mas minha mãe cantava lindamente, à capela, muito afinada, entre as pregações e orações da liturgia aterradora. Eu admirava aquela mulher que sabia de cor os hinos, única hora em que a p*a do culto valia a pena, em que o sofrimento dela parecia se dissipar.

Tentou de tudo para que os filhos se convertessem ao credo dela. Não conseguiu. Mas não lamentava —sabia, decepcionada, da fraude, do crime. Espero que ela suba aos céus dela cantando um hino.

Não oro, não rezo, não acredito em nada. Deus para mim tem outro nome: "Propofol", alívio, esquecimento, anestesia contra a dor desse mundo brutal. Hoje derramam-se por aqui apenas essas lágrimas do mar triste do meu coração, do mesmo sal da antiquíssima Boa Viagem.

Perder mãe é ver perder-se um pouco de todo o resto. Naquela infância evangélica, ao menos um pai ateu nos esperava em casa, fazia o contraponto. Amém.


Texto de Marilene Felinto, na Folha de São Paulo