terça-feira, 19 de abril de 2022

A piranha do colégio é mártir desbravadora que se sacrificou para nos salvar


Sentem-se ao redor da poltrona, meninas, pois vovó vai contar como foi atravessar a adolescência no período pré-feminismo. Vejam bem, no final dos anos 1990, o feminismo já era um movimento consolidado. O problema era que nos corredores da escola onde estudei ainda não se falava sobre isso.

Hoje, a maioria dos colégios particulares tem um coletivo feminista, um professor afastado por comentários inadequados, uniformes sem gênero. Mas quando a vovó era garota, era cachorro come cachorro. Ou melhor: cachorra come cachorra.

Vamos voltar para o Brasil Império, no ano de 1827, em que o direito à educação da mulher foi reconhecido, com uma lei que permitia que meninas finalmente frequentassem colégios. Uma luta encampada por Nísia Floresta, ativista pela emancipação feminina.

Nísia certamente não fazia ideia de que, 172 anos depois, eu estaria usando um sutiã de enchimento, trancada na cabine do banheiro, pichando nas paredes os dizeres: "FULANA PUTA". Fulana, como vamos chamá-la aqui, era uma figura popularmente conhecida como a piranha do colégio.

A piranha do colégio era aquela menina cujo corpo ganhou contornos mais cedo do que os de suas colegas. Tinha peito, bunda, e seu rosto não era uma terra arrasada pela acne. Não restava dúvida de que ela era a preferida de Deus.

Mas ser a piranha do colégio exigia grandes responsabilidades. Além de ser alvo da inveja daquelas que um dia foram suas amigas, ela era requisitada pelos rapazes mais populares do ensino médio, geralmente mais velhos e mais experientes.

Era uma época em que nossa principal fonte de conhecimento eram as revistas femininas para adolescentes, que nos ensinavam mil maneiras de cumprir nossa principal missão neste plano: atrair a atenção dos garotos. O boletim da piranha do colégio poderia não ser motivo de orgulho para seus pais, mas, para nós, ela já havia chegado ao topo.

A piranha do colégio era pressionada a honrar o papel para o qual foi designada. E assim dava início à sua vida sexual cedo demais, com o pior tipo de cara que se pode imaginar. Moleques imaturos, arrogantes, que tinham o mundo inteiro servido a eles numa bandeja e definitivamente não sabiam respeitar uma mulher.

É preciso reconhecer que a piranha do colégio é uma mártir. Uma desbravadora que se sacrificou para nos salvar. Toda instituição de ensino deveria ter um monumento em homenagem à piranha do colégio.


Texto de Manuela Cantuária, na Folha de São Paulo

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