sábado, 23 de abril de 2022

O mau maluco


Hoje faz exatamente seis meses que desisti de um amigo louco. O motivo não foi a loucura —além de preferir os doidos, estou bem ciente de que faço parte da mesma farmácia—, mas sim o fato de ele ser um mau maluco.

Assim como há limite para aturar gente muito equilibrada ou solar —e o meu costuma ser minúsculo—, há um limiar para suportar os doidos. Nesse caso específico, porque firmo uma espécie de contrato cósmico com gente fora da casinha, topando passar por todo tipo de provação em nome de alguma magia, demorou pelo menos duas décadas.

Conheci meu ex-amigo louco quando ainda trabalhava como redatora publicitária. Éramos estagiários e dividíamos a mesma mesa. Na primeira semana de convívio, já fui tragada para um vórtex frenético e obscuro de pedidos de demissão (ele avisava que ia se demitir sete vezes por dia e depois pedia, na mesma tarde, para que a gente não contasse isso a ninguém), rompimentos com uma pobre noiva (ele terminava e voltava a cada cinco dias) e promessas de suicídio (me ligava dizendo que estava dirigindo em alta velocidade na marginal Pinheiros, esperando a hora que fosse bater em uma árvore; eu ficava tentando me lembrar onde ele poderia achar uma árvore). Mas essa era a parte chique. Aos 20 e poucos eu usava esse amigo louco como usava calças skinny com a barra dobrada. Era cool.

O doido tinha um negócio que era uma cara arrogante de merda. Contava que, quando ele tinha sete anos, a sua mãe francesa não lhe deixava brincar de Fofão nem de Comandos em Ação e metia um Godard ou um Buñuel no aparelho de VHS da sala. A mulher, deprimidíssima, em uma casa que vivia na escuridão, dizia que toda criança era burra. E ele, forçado a ver "O Anjo Exterminador" pela centésima vez, começou a arrancar a carne ao redor das unhas. Como um rato velho obsessivo procurando uma infância no lixo, as feridas começavam na ponta dos dedos e subiam até o meio das mãos. A gente ouvia isso e pensava: "Ah, tudo bem que ele nos trate feito imbecis, é o mínimo que ele pode fazer contra a nossa esperança".

Anos depois, a cada vez que eu lançava um livro, lá estava o insano. Chegava cedo, indecentemente odioso à minha pessoa. Em uma das vezes comentou, rindo apenas com aquela empáfia de narinas, como se a soberba do seu estado maníaco tivesse o poder de inflar de forma sobre-humana seus pulmões: "Também estou escrevendo uma parada, mas você sabe: é livro de verdade".

Acompanhava cada apresentação de meus novos amores desejando que eu falecesse enquanto sentia a paixão aquiescer meu peito. O amor possível entres pessoas lhe fazia sentir tão diminuto que o atormentado começava a vozear elevadamente. Formulava com brilhantismo, com uma perspicácia invejável, sentenças que nos desnudavam por completo, na expectativa de que também caíssemos. E a gente perdoava porque pensava: "O louco quer companhia em sua tacanhez". Eu via. Todos viam. Mas de repente ele começava a chorar e a dizer que não aguentava mais. A verdade é que tínhamos muita saudade. Saudade de ele ser internado.

Ao longo de duas décadas, todas as pessoas que eu conheci em comum com o demente desapareceram da sua vida. E preferiram a vergonha atroz de admitir o que mais temiam (e o que nem de longe era real): não deram conta de suportar um doente. Mas ninguém tinha coragem de dizer a verdade: o louco era um mau louco. Esse era o quinhão que a gente não conseguia admitir. A fração mais importante e que acabava diferida tamanha a inflamação que a loucura do louco nos causava.


Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo

Nenhum comentário:

Postar um comentário