Voltei até que bem (ia dizer "feliz") de curtas férias em Pernambuco. Mas dei de cara com tantas mulheres em sofrimento (aqui e lá) que me calei.
Voltei quase bem, porque lá é que se cura um tanto da minha nostalgia, o reencontro com sabores e paisagens de infância: mangaba, pitomba, caranguejo, coqueiros e praia de águas mornas.
Voltei até que bem, ainda que não seja tempo de caranguejos: é época de defeso, a espécie está em reprodução. Só foi possível comer um resto de machos magros. A captura e o cativeiro de fêmeas para engorda estão proibidos.
Respeitou-se, mas lamentei, porque costumo comer inteiros esses crustáceos, patas e carapaças, cozidos só na água e sal. Passo horas sentada a uma mesa de praia comendo caranguejos (do tipo guaiamum, de preferência), numa voracidade deselegante e pré-histórica, como se estivesse num daqueles períodos de fome atávica da história da humanidade.
Mas voltei testemunha de mulheres em sofrimento: porque foram mães ou porque não são mães; sofrendo por terem revivido (assistindo ao depoimento-denúncia de uma outra) a tragédia obstétrica, o desdém e a violência médica na hora do parto, sem nunca terem conseguido elaborar esse trauma.
Sofrendo porque seus filhos e filhas sofrem (mas também porque às vezes acham esses filhos e filhas insuportáveis —e viram isso em um filme e se identificaram, mas não podem dizê-lo na vida real). Mulheres cujos filhos morreram antes delas e que sofrem da inenarrável dor dessa morte.
Sofrem porque foram abandonadas por seus companheiros ou companheiras (ou porque abandonaram seus companheiros ou companheiras). Que sofrem porque são filhas e acham suas próprias mães um fardo a carregar.
Sofrem porque seus companheiros são violentos feminicidas latentes ou ativos. Porque não conseguem denunciá-los ou porque conseguiram denunciá-los. Ou mulheres que sofrem porque suas companheiras homoafetivas demandam demais, querem exclusividade, demonstrações públicas de carinho heteronormativo, numa irritante parodiazinha de gênero (de casaizinhos).
Mulheres que sofrem porque não sabem se querem transar com homens ou com mulheres. Sofrem porque, no fundo, nunca vão atingir, como os homens, um certo desinteresse pela monogamia: é que um homem disse uma vez a uma mulher (boquiaberta de espanto) que o mundo das vaginas é fascinante porque é de uma diversidade infinita, que não há vagina igual a outra, que é preciso experimentar muitas, ir variando de vagina em vagina, e daí a infidelidade dos homens!
Sofrem também porque acham que são boas mães, mas que seus filhos não reconhecem isso. Elas que abominam noras ou genros porque responsabilizam essas intrusas e intrusos pelo sofrimento incalculável que é a síndrome do ninho vazio.
Sofrem porque estão velhas e perderam seus gatos e cachorros idosos, e seus netos são ausentes. Ou porque são jovens demais e não se compreendem (sofrem desse tipo específico de cegueira).
Sofrem porque seus chefes são os machistas de sempre, supostos profissionais bem-sucedidos no "mercado", homens casados que querem mesmo é comer suas subordinadas, e pagando pouco.
Mulheres que sofrem porque precisam escrever suas teses e livros e (ainda) não encontram a paz de que os homens desfrutam para desenvolver seus trabalhos —eles que, quando se sentam a uma mesa para escrever ou desenhar, botam na cara aquele ar de gênios superiores.
Mulheres que sofrem porque são pobres e negras e sustentam a família sozinhas —e porque de faxineiras e empregadas domésticas, foram desembocar em cuidadoras, não mais do que isso.
Ou porque são ricas e deprimidas e não sabem o que fazer da vida, além de unhas, cabelo e ginástica (e de ingerirem psicotrópicos, porque estão magras demais ou obesas demais).
Mulheres maduras ou velhas, que sofrem porque as novas tecnologias criaram-lhes barreiras insuperáveis, elas que não sabem digitar, digitalizar, zapear, printscriptar —nem gozar no aplicativo de relacionamentos sociais, na plataforma dessas novas estações.
Sofrem porque a tecnologia instituiu essa espécie de clivagem na vida delas —uma semiexclusão, elas que achavam que já sabiam tudo, porque, por serem mães, já têm o conhecimento e a sabedoria, tendo vivido o que existe de mais rico em aprendizado (ao mesmo tempo prazeroso-doloroso).
Voltei de Pernambuco quase feliz. Ainda que também não fosse época de pitombas. Mas sofri só de ver como as mulheres estão sofrendo (aqui e lá).
É um sofrimento sem ideologia (aquém ou além dos feminismos). Como se, na andada solitária delas, tivessem caminhado para trás nos tempos. E não é exatamente uma culpa: é uma agonia, como uma fome ancestral.
Texto de Marilene Felinto, na Folha de São Paulo.
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