sábado, 8 de janeiro de 2022

Camarão acima de tudo


"Domingo eu não almoço, eu engulo", disse, sobre o motivo de sua internação hospitalar, semana passada, o batráquio que ora veste a faixa presidencial. "Foi uma peixada, tinha uns camarõezinhos também. Eu mastiguei o peixe e engoli o camarão, foi isso que aconteceu."

"Eu não almoço, engulo" poderia bem ser o epitáfio do capetão deformado. (Perdão: capetinha). Podia ser o lema proposto por ele para substituir "Ordem e progresso" na bandeira nacional. Em latim, claro, pra dar aquele up topzêra de loja da Havan: "Prandium non habeo, quod comedam". (Correções ao meu latim, por favor, cartas à redação –do Google Translator).

Vai vendo: o cara tava na praia, de férias, num domingo, diante de uma peixada com camarões. É o tipo de entroncamento cósmico que não se repete muitas vezes na vida. Um momento, portanto, que a maioria das pessoas costuma –atenção ao termo– saborear. É programa pra sentar-se à mesa no fim da manhã e só levantar de noitinha. Depois, nos dias seguintes, passar os pratos em revista, como Rubem Braga em "Almoço mineiro": "O lombo era macio e tão suave que seu primitivo dono devia ser um porco extremamente gentil, expoente da mais fina flor da espiritualidade suína." "O tutu tinha o sabor que deve ter, para uma criança que fosse gourmet de todas as terras, a terra virgem recolhida muito longe do solo, sob um prado cheio de flores."

Uma peixada com camarões, nas férias, na praia, cazzo. Era pra erguer brinde e citar Baudelaire: "É hora de vos embriagardes! Para que não sejais escravos martirizados do Tempo, embriagai-vos; embriagai-vos sem cessar! De vinho, de poesia ou de virtude!". Sem vinho, sem poesia e definitivamente sem virtude, resta ao detrito presidencial o papel de escravo martirizado do tempo.

Que o infeliz não dorme, já sabemos desde a internação pela facada. Ele desperta tantas vezes por noite que à época os médicos chegaram a perguntar: "como é que você consegue raciocinar?". (Não consegue, claro). Que não usa a cama para outras aprazíveis atividades horizontais também sabemos, após declarações recentes da primeira-dama. Apesar de vangloriar-se de um "histórico de atleta", nunca o vimos jogando sequer uma peteca no gramadão, onde só aparece para oferecer cloroquina pras emas. Junta a isso a pança e a qualidade de suas galináceas flexões de pescoço e fica óbvio que tampouco no exercício físico, alento para as dores do mundo, o pobre diabo encontra alívio. Agora descobrimos que nem mesmo comer dá prazer ao estafermo.

Se ele tivesse uma meta, ainda que mesquinha, vá lá, poderíamos encontrar no "eu não almoço, eu engulo" algum fiapo de transcendência. A abnegação seria um preço a pagar por algo maior: abriria mão dos prazeres do corpo por uma obstinação irrefreável do espírito. Mas espírito é justamente o que falta ali. O urubu auriverde está para a transcendência como um clipe está para a aurora boreal.

Não, erro. Os clipes são úteis. Organizam. Ajudam. Ele não. Impedido de saborear a vida por um tenebroso aleijamento existencial, decidiu vingar-se de todos os que não apenas engolem, mas almoçam. Existe como um buscapé, usando o fogo que arde dentro de si pra queimar as canelas alheias.

Se pudesse, multava assovio, taxava beijo, proibia a aurora, revogava o crepúsculo, emparedava o vento e selava o sol com insulfilm. Mas não pode. Ele é triste, fraco e burro. Vai acabar mal e só como um vilão de desenho animado. Os deuses desprezam quem não respeita camarão.


Texto de Antonio Prata, na Folha de São Paulo

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