Ele era bonito, bastante simpático, tinha talento e porte. Mas o que mais distinguia o ator Sidney Poitier, morto aos 94 anos neste 6 de janeiro, era sua capacidade imediata de impor respeito. Seu olhar concentrava coragem e firmeza, sem nenhuma rigidez ou forçação de barra. Parecia vir dele mesmo, não de alguma técnica de atuação.
Revendo agora "Adivinhe Quem Vem para Jantar", de 1967, dirigido por Stanley Kramer, e "Ao Mestre, com Carinho", produção inglesa do mesmo ano, dirigida por James Clavell, é difícil evitar uma sensação ambígua no que diz respeito ao modo como o cinema trata as relações raciais.
Poitier foi o primeiro negro a ganhar o Oscar de melhor ator, em 1963. Como tudo mudou! E como nada mudou!
Digo que "tudo mudou" pensando especialmente nos filmes em cartaz. Imagino que nunca tivemos tanta variedade de produções excelentes tratando da situação dos negros nos Estados Unidos.
Os ângulos não poderiam ser mais distintos. Baseado em fatos reais, "Judas e o Messias Negro", de Shaka King, é um filme de extremo impacto, que merece ser visto mais de uma vez. Acompanhamos a vida do ativista Fred Hampton, um líder dos Panteras Negras, e de um jovem infiltrado no movimento, a serviço do FBI.
A história mistura política, espionagem, racismo e dilemas éticos num milagre de economia, clareza, suspense e violência. Põe em cena questões quase insolúveis: é certo radicalizar na luta contra o racismo, mas… como não recuar diante do que surge como puro terrorismo? E a brutalidade, a imoralidade do combate aos extremistas não são menores.
Passo para "King Richard: Criando Campeãs", com Will Smith no papel de Richard Williams, pai das campeãs de tênis Venus e Serena Williams. O contexto é diferente: estamos no finzinho do século 20, e o foco não é a transformação política, mas a luta por um mínimo de oportunidade no circuito do tênis internacional.
A discriminação contra os negros se apresenta, ainda e sempre, com enorme crueldade, com absurdo arbítrio; o pai das tenistas enfrenta tudo com os nervos e a persistência de um predestinado, de um
obsessivo, de um campeão.
Fora os inúmeros exemplos de mesquinhez, paternalismo e preconceito que ele e suas filhas têm de engolir, retenho do filme os meios geniais com que se caracteriza o medo permanente em que vive qualquer negro em sociedades desse tipo.
Destaque-se o som das sirenes de polícia. O diretor Reinaldo Marcus Green sabe produzir um arrepio no espectador, cada vez que a ameaça se configura.
Mesmo quando alguns personagens brancos tentam resguardar as aparências, o racismo pesa em toda parte.
Recuando mais de 50 anos, lá estão Spencer Tracy e Katharine Hepburn, em "Adivinhe Quem Vem para Jantar", tentando conciliar suas convicções liberais com a situação em que a filha deles resolve se casar com Sidney Poitier.
Nada mudou: tanto em 1967 quanto em 2022, um noivo negro numa família branca pode ser, bem… um… hãã… um "problema", para usar a palavra repetida exaustivamente no filme de Stanley Kramer.
Problema? Problema para quem? É a reação do jovem casal apaixonado.
Fazer um filme desses, naquela época, foi uma decisão corajosa. Mas também —e nisso, pelo menos, a gente vê que muita coisa mudou— o tema é tratado com todo tipo de pinças e luvas antirradioativas.
Resolveram transformar tudo numa fantasia, num conto de fadas, tão distante do mundo real quanto "Cinderela" ou "Uma Linda Mulher".
O enredo perde o gume; vira uma versão a mais do velho tema "o amor tudo vence". Vence o preconceito, sem dúvida, mas num mundo que, de tão preconceituoso, só podia encarar Sidney Poitier como uma exceção impossível, um russo entre americanos, uma pequena sereia em terra firme.
Enquanto os filmes atuais adotam o ponto de vista de quem é negro, "Adivinhe Quem Vem para Jantar" tem seu foco no "drama" e na atuação (muito boa) de Spencer Tracy. Tudo ainda se rege pela ótica branca.
Mas aí, nesse ambiente tão constrangido e irreal, é que entra Sidney Poitier, sem constrangimento nenhum, e sem nenhum ar de conto de fadas. Ei-lo: tão "estranho" na família branca ficcional quanto na Hollywood de verdade, agindo e atuando como uma pessoa livre, segura de si e dos seus direitos, sem pedir nem fazer concessão nenhuma.
A luta estava só começando.
Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo.
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