Não sei qual das crianças lançou a moda, mas agora as seis cavoucam o jardim com pás, paus e pedras atrás de minhocas: "é tipo slime, só que mexe!".
De manhã choveu, depois abriu. Desde ontem, uma leitoa de 10 kg vem marinando na geladeira. Vinho branco, alecrim, tomilho, manjericão, alho, cebola, sal, pimenta do reino, louro. De manhã, viramos o bicho. As cervejas e vinhos gelam no cooler e a voz de algum amigo chega da sala: "Quatro contra dois no Alaska, de Vladvostok". Nada mal pro atual estágio da civilização.
Queria desejar feliz 22 a todos, mas me sinto praticando um estelionato calendarial. Com o que a gente viveu na última década, não dá mais pra confiar em ano novo. Dois mil e vinte e dois vai tirar o couro da gente, aí lá no fim o inominável perde, daí as coisas talvez comecem a desorrorizar –o "despiorar" já tá fazendo água. Ao falar "feliz 22!" me sinto como a desejar "boa surra!", "tomara que não quebrem nenhum osso!".
"Aqui não tem minhoca! Vamos lá na pitangueira!", uma criança grita e vou lá com elas. Se o luto tem sete fases, o processo de "aceitação" de quem vive estes tempos auripodres tem 70. Hoje tô no estágio 56, que é semelhante ao 17 ou ao 42, a saber: "não falemos o nome do miserável pra não trazer à tona os gases pútridos que o acompanham". Não falarei.
Há quem ache um absurdo bater a marinada no liquidificador, mas não consigo ver razão pro impedimento. Um alecrim picado na faca é igual a um alecrim picado no liquidificador. O mesmo vale pros outros temperos. Quanto mais bem picados, aliás, maior a superfície de contato, maior o sabor. Não? Falo sem propriedade: aqui é empirismo, nariz e boca, amizade.
Você fecha o olho, sente o cheiro da mistura e entende que não vale citar o nome do outro –pensa até, com uma pequena alegria vingativa, que o outro nunca deve ter tido o prazer de sentir no nariz um maço de cheiro verde, de tomilho e alecrim, um refogado de cebola e alho. Tenebrosa criatura, que vive de não gostar.
Eu já fui cronista. Acendia vela pra Rubem Braga, Verissimo, Paulo Mendes Campos. Hoje trabalho no ramo do textão. No meio do incêndio, todo mundo é bombeiro, né? O problema é que o incêndio é infinito. Eu adoraria voltar à crônica. Escrever sobre War, porco, encontro, minhoca, alecrim.
As crianças não acharam minhoca, cobriram todo o corpo com lama e agora chegam correndo e gritando. A parentalidade em massa, que vivia bons momentos na varanda envolvendo cerveja, cenoura, pepino, pão, coalhada, João Donato e Jards Macalé, ergue-se como uma defesa de futebol americano para evitar que as bombinhas sujismundas atinjam qualquer móvel.
Há focos de choro em vários cantos. No meio da correria, perseguindo o meu filho enlameado pelo gramado, me dou conta de que ele tem toda razão. Férias é pra se enlamear mesmo. #FIGHTHEPOWER –eu e a Julia. O cheiro do assado toma a casa. Logo mais, o cheiro de xampu Johnsons’s também. Os vizinhos acenam de longe e nos chamam pras suas festas. Aceno de volta.
"Quem tá com as crianças?", "Tão todas tomando um banho coletivo no quarto do Joaquim". "Então tá.". "Acha que já tá na hora de virar o porco?". "Tá perfeito, tira o alumínio pra pururucar.". "Ganhei! Vinte e quatro territórios!". "Boa, vamos tirar esse líquido da travessa com uma concha, depois separar a gordura do resto.".
Com o resto, fazemos o molho pro leitão. A gordura guardaremos pra refogar todas as farofas, legumes e molhos de 2022. Pronto. Já tenho onde me agarrar. Feliz 2022.
Texto de Antonio Prata, na Folha de São Paulo.
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