domingo, 30 de janeiro de 2022

Bolovo no copo Stanley


O Galhardo perguntou no grupo qual era a minha opinião sobre o copo Stanley. Percebi, pelo tom do meu amigo, que não era questão de opinião, mas de posicionamento. O Ted e o Gustavo logo enviaram memes e textões, mas nem vi: quis descobrir por mim mesmo o que era o tal copo Stanley, quais significados sócio-gastronômico-culturais ele traria em seu bojo e o que tais significados revelariam sobre a situação da humanidade e do Brasil na terceira década do século 21.

Pela enxurrada de ocorrências no Google, dei-me conta de que talvez fosse o único brasileiro a desconhecer o copo Stanley. Na possibilidade, porém, de haver por aí mais gente alienada no que tange à evolução das técnicas potabílicas, explico. Trata-se de um copo térmico americano que mantém a cerveja gelada por mais de dez horas e o café quente por quatro –não ao mesmo tempo, espero.

A bronca de muitos, compreendi, é porque neste verão o pacote vini, vidi, vici topzêra das redes sociais incluiu, além de peito e bunda e bíceps e tanquinho e picanha e ioga e carro e barco, o copo Stanley. É, enfim, um copão ostentação. Tipo o fonão de ouvido, uns anos atrás. Só que um fone de ouvido orna mais facilmente com uma foto, digamos, na rua. Quem sai na rua com um copo? A turma do copo Stanley. E fotografa. E posta no Instagram.

Tem gente que é visceralmente contra os modismos. "Saco, esse bolovo! Sempre existiu bolovo, ninguém dava bola pro bolovo, agora tem guia do fim de semana com ranking de melhor bolovo, palhaçada!" "Desde quando essa cópia chinesa de Rider ficou famosa?! Que que tinha de errado com as Havaianas?! Ou com o próprio Rider?!" "Ridículo esse Adam Driver! Só porque é feio, todo mundo acha cool, não dá mais pra ver um filme americano sem o Adam Driver, é que nem o Ricardo Darín na Argentina!"

Admiro os que estão aí nas trincheiras da autenticidade, sempre tentando revelar o interior das novidades ocas. Talvez me falte fibra, talvez me sobre ingenuidade, mas costumo ir com a maré. Provo o panetone salgado. Tento o beach tennis. Confesso, sem nenhum pudor –mas para o horror da minha mulher– que comprei aquela chinela chinesa colorida, imitação de Rider. (Recomendo muito e recomendo mais ainda que se discuta a questão, antes da compra, com o/a cônjuge. Afinal, ele/a será o/a calçante passivo/a das suas sandálias.)

Verdade, há modismos que devem mesmo ser combatidos com o fervor de um Aldo Rebelo querendo proibir "sale" nas vitrines –e não me refiro à bobagem de proibir "sale" nas vitrines, só ao fervor do deputado. Rebatizar picolé como "paleta mexicana" e cobrar o dobro, por exemplo, foi uma ideia cretina. Já o temaki e a tapioca, felizmente, vieram para ficar. Muito embora as palavras "temakeria" e "tapioqueria" e tudo o mais terminado em "ria" não me façam rir nem um pouquinho. Outro dia, no aeroporto de Congonhas, mudei de cadeira para não ficar de frente pro luminoso de uma, acredite, "Cuscuzeria".

O Drummond tem uma crônica antimodismos intitulada "Em ida, em ada", na qual reclama que ninguém mais dorme, só "dá uma dormida", ninguém mais caminha, só "dá uma caminhada" e assim por diante. O tempo deu uma passada, Drummond deu uma morrida, a língua deu uma incorporada no modismo, que virou só mais uma das muitas formas de nos expressar (ou dar uma expressada).

Já encomendei meu copo Stanley, Galhardo. Quando chegar, te digo o que acho e prometo não instagramar –o que não deixa de ser, claro, uma forma ainda mais boboca de ostentação.


Texto de Antonio Prata, na Folha de São Paulo

Banheiro compartilhado


Eu poderia ficar assim e deixar que tudo seguisse seu curso. Sei que existem decisões grandes, mas também o corpo vai escolhendo. O corpo sabe de coisas que nós não sabemos. O animal que somos sabe mais. Decide. Inclusive a história do camping foi assim. Delia e Filipa propuseram acampar. Eu tinha tomado vinho quando fizeram a proposta, achei que fosse ser divertido e acabei caindo num programa ridículo: irmos como mochileiras, nós três, à praia próxima a Indaiá. Aos 33 anos! Como mochileiras! Odeio acampar. Odeio mochila.

Fomos parar em uma pousada perto da praia, onde se podia montar a barraca no jardim. Tínhamos acesso a um banheiro compartilhado no térreo e à cozinha. Na primeira noite não dormi. A barraca era para duas pessoas. Nós três tínhamos que dormir meio de lado para caber. Filipa roncava um pouco. Me bateu angústia. O tapete de ioga não aplanava os desníveis da grama. Eu estava sobre um formigueiro, algo duro que sobressaía. Impossível.

Cada vez que eu ia ao banheiro, olhava o único quarto que havia ali no térreo, olhava a cama. Nela dormia um garoto, um hóspede. Teria lá seus 19 anos. Ele deixava a porta aberta. Os pais e as irmãs dormiam nos quartos de cima. Mas ele estava sozinho ali embaixo. Um quarto com cama grande, wifi, ar-condicionado e tomadas onde carregar o celular! Notei que ele me olhava quando nos cruzávamos. Tímido e lindo. Musculoso, de olhar límpido. Como você se chama? Marco. Oi, Marco, meu nome é Cynthia. Às vezes Marco pegava o violão do salão comum e tocava sozinho, cantando em voz baixa em uma espreguiçadeira na outra ponta do jardim. Não ia à praia. O tempo todo pedia desculpas. Cada vez que nos cruzávamos, meio que nos esbarrávamos no corredor estreito. Desculpa, desculpa. Um dia pedi emprestado o carregador de celular dele e depois o deixei em cima da cama. Outro dia entrei apressada para fazer xixi na volta da praia e ele estava tomando banho. Desculpa, desculpa, eu disse, não olha.

Na terceira noite em que eu estava na barraca sem conseguir dormir, me deu vontade de chorar, pensei em voltar sozinha; tentei dormir no carro. Havia mosquitos. Estava ficando sufocada. Fui ao banheiro às duas da manhã e cruzei com Marco na escuridão. Eu disse: Marco, preciso dormir em uma cama, só ocupo uma ponta, se não te incomodar. Acho que ele não entendeu, até que me viu entrar no quarto. Foi o meu corpo que entrou ali. Marco ficou parado e depois fechou a porta. Durmo só um pouco e depois vou embora, sussurrei. Está bem, ele disse, descansa. Sua ternura e a cama macia e o frescor do ar-condicionado, tudo isso me fez chorar. Como se alguém me abraçasse. Acho que por ser bem-educado ele quis me consolar pondo a mão nas minhas costas. Em um instante foi como se um ímã tivesse sido instalado. Nos grudamos. Eu não estava com ninguém fazia uns seis meses. O sem-vergonha sabia beijar, sabia transar. E parecia tão caladinho. Ele estava sem camisinha. Eu disse que estava tomando pílula, mas não era verdade. Foram três noites assim. Tínhamos que ser ultrassilenciosos, porque o quarto dos pais dele ficava bem em cima. Transávamos e dormíamos e voltávamos a transar. Eu escapulia cedo, entrava no banheiro, voltava para a barraca e fingia que nada tinha acontecido. A gente se cumprimentava ao se cruzar durante o dia sem nem sequer sorrir. Minhas amigas sabiam, mas ninguém mais suspeitou de nada. A mãe dele me olhou meio feio, mas por pura intuição, sem provas.

Isso foi em fevereiro. Dois meses, e não desce. Posso dizer que ele foi um doador, ou algo assim. Melhor ter sem um homem pesando na minha vida. Que tudo siga seu curso. Quem sabe nem faço o teste. Que cresça em mim. O corpo sabe. Eu sempre quis ter um filho.


Texto de Pedro Mairal, com tradução de Livia Deorsola, na Folha de São Paulo

terça-feira, 25 de janeiro de 2022

Como libertar as mulheres do machismo patriarcal com um pote de azeitonas


Era a última aula de um curso de empoderamento feminino, que teve apenas uma turma, em uma pequena cidade na região serrana. Eu não estava lá e jamais estaria, mas a amiga de uma amiga de uma aluna me contou esse relato.

Desde então, minha missão é transmiti-lo para o maior número de mulheres possível.

A lição mais valiosa do curso foi deixada para o final. Era algo que libertaria instantaneamente todas as alunas ali presentes da submissão ao gênero masculino. Uma técnica simples que garante, de forma permanente e irrevogável, a emancipação feminina.

Parece falcatrua, eu sei. Ouvindo a história, cheguei a achar que seria convidada para um esquema de pirâmide. Ou melhor, de "mandala da prosperidade". Mas, atenção para o spoiler, funcionou comigo, assim como funcionou com todas elas. Com essa informação, você não vai precisar de um homem nunca mais.

A professora coloca um pote de azeitonas no meio do círculo. Pede a ajuda de voluntárias para abri-lo.

Todas tentam, sem sucesso. É nessa sensação de impotência em que mora o perigo. O pote de azeitona condensa todas as nossas inseguranças. Um alimento em conserva aparentemente inofensivo, que parece nos lembrar de que não somos fortes o suficiente. Que não somos dignas de um aperitivo com excesso de sódio se não tivermos um homem por perto.

Por que perdemos tanto tempo, energia e colágeno investindo em relacionamentos com o sexo masculino? Porque eles são bons amigos, bons pais, bons amantes? Ou por que eles abrem o pote de azeitona? Ambas sabemos a resposta. E toda mulher merece saber que é capaz de abrir o pote de azeitona sozinha. É por isso que precisamos ser mais unidas do que uma tampa a um recipiente de vidro fechado a vácuo e passar esse conhecimento adiante.


Texto de Manuela Cantuária, na Folha de São Paulo

sábado, 22 de janeiro de 2022

As muitas sobrevidas de Elza


Na noite de 19 de dezembro de 1973, Elza Soares chegou ao último andar do Maracanã e viu lá de cima o anel do estádio tomado. Eram 131.555 pessoas. Suspirou e disse para um amigo: "Agora eu posso morrer". Ali se realizava seu sonho: um jogo de despedida para Garrincha, o homem que ela amava e a quem o Brasil devia duas Copas do Mundo e um milhão de alegrias —o Jogo da Gratidão, entre a seleção de 1970 (com o já simbólico Garrincha no ataque) e um combinado de craques estrangeiros. Nunca um jogador recebera tal homenagem no Brasil.

Fora dela a ideia e, graças à sua luta, reunindo ex-jogadores, jornalistas, cartolas e políticos, ele iria acontecer. Fora dela também a exigência de que parte da renda se destinasse a comprar um apartamento e abrir uma poupança para cada uma das oito filhas de Garrincha —até para que cessasse a perseguição a eles. Foi sua primeira vitória sobre a intolerância, o moralismo e a hipocrisia. Daí ela achar que já "podia morrer".

Mas Elza não morreu. Tinha então 43 anos e viveria outros 48, suficientes para mais uma ou duas vidas. Nenhuma outra artista brasileira teria tantas sobrevidas. Basta somar os dramas, tragédias, declínios, voltas por cima e novos apogeus que ela experimentaria até quinta-feira (20), quando finalmente partiu.

A trajetória de Elza foi ainda mais dura do que se tem dito nos obituários e programas a seu respeito. Ela passou décadas escondendo a idade. Dava a entender que a menina que fora ao programa de rádio de Ary Barroso dizendo ter vindo do "Planeta Fome", em 1953, era uma adolescente. Não era. Já tinha 23 anos, porque nascera em 1930. E ainda levaria outros seis até ser descoberta por Sylvia Telles na boate Texas, no Leme, em 1959, e levada à consagração na gravadora Odeon.

​Sua vida, portanto, começou aos 29 anos. Foi o tempo que lhe custou para se tornar a Elza Soares que chegaria, invicta, aos 91.


Texto de Ruy Castro, na Folha de São Paulo

Sommeliers de movimento social


Já contei aqui. Em quase três décadas participando de eventos literários, raras foram as vezes em que não me perguntaram: "O que você acha da patrulha do politicamente correto?". Até poucos anos atrás, nem uma única vez haviam me perguntado "o que você acha de piadas racistas/machistas/homofóbicas?".

O que isso revela sobre o Brasil? Que, mesmo na bolha supostamente mais progressista –ou, ao menos, mais letrada–, considera-se que fazer reparos aos repúdios das minorias contra a discriminação é mais importante do que repudiar a discriminação. Seria eu, escritor branco, nascido numa família de classe média alta, educado em escolas particulares, quem estaria em apuros? Quem leu na última semana os textos do Antonio Risério, do Hélio Schwartsman e lê as recorrentes colunas do Demétrio Magnoli sobre questões raciais, aqui na Folha, fica com a impressão de que sim.

O epicentro da tragédia brasileira, qualquer pessoa de boa-fé tem de admitir, é a escravidão. Nenhum outro país sequestrou, escravizou, vendeu e comprou seres humanos na mesma escala. Ao longo de quase quatro séculos, cerca de cinco milhões de pessoas chegaram aqui acorrentadas e aqui morreram: 46% de todos os escravizados trazidos para as Américas. Para piorar: enquanto em 1865 os Estados Unidos juntaram à abolição a reforma agrária, o Brasil deu as costas para os ex-cativos. Ou as encostas: a diferença de melanina entre o morro e o asfalto, até hoje, é prova de que o racismo segue firme e forte entre nós.

"Uma nação bipartida entre ‘brancos’ e ‘negros’" não é, como afirmou Magnoli em sua coluna, uma invenção importada dos movimentos identitários norte-americanos. A divisão racial chegou aqui pelo Cais do Valongo e segue viva no olhar do segurança do shopping. É verdade que houve entre nós muito mais mistura do que nos EUA, mas ela não atenuou o racismo. Quando o Bope sobe o morro, sabe muito bem quem são os alvos (com duplo sentido).

Nas últimas décadas a luta antirracista brasileira foi influenciada, sim, pelo modelo americano. Não por modismo, mas porque as falácias paralisantes da mestiçagem redentora e da democracia racial dificultaram muitíssimo avanços contra o preconceito e a desigualdade. Se eu fosse negro e tivesse um filho, um irmão, uma mãe morta pelo Estado, como acontece todo dia com mais de dez famílias afrodescendentes, também iria recorrer ao Malcom X e não aos afro-sambas do Baden Powell com o Vinícius de Moraes.

Neste país forjado na escravidão, ferida que permanece aberta, afirmar que fazemos "vistas grossas ao racismo negro, ao mesmo tempo em que esquadrinhamos o racismo branco com microscópios implacáveis", como fez Risério no último fim de semana é mais do que desonestidade intelectual: é vandalismo.

Sintoma do estágio primário do debate racial brasileiro é que tantos colunistas usem o espaço para defender a liberdade de expressão do vândalo (que jamais esteve ameaçada) e não para refletir sobre as consequências de textos desonestos como o de Risério na vida de metade da população que ainda está mais próxima da senzala do que da casa grande. Em vez de debatermos quais as formas de combater esta chaga, muitos de nós acham mais pertinente se portar como sommeliers de movimento social.

Do domingo passado até este sábado, caso os números do Fórum Brasileiro de Segurança Pública de 2020 tenham se mantido em 2022, enquanto se gastava papel, saliva e tempo discutindo esta imbecilidade de "racismo reverso", 84 negros foram assassinados pelo Estado. Precisa de microscópio?


Texto de Antonio Prata, na Folha de São Paulo

Alan Bennett, beirando os 90 anos, se divide entre o que vive e o que escreve


O escritor inglês Alan Bennett não faz sucesso no Brasil. Na sua terra, todavia, sem ser um monumento das letras, é um dos escritores mais queridos, um urso de pelúcia cujas peças, roteiros e memórias são fofas sem serem kitsch. Um monumento é inerte, enquanto o urso vivo, mesmo de pelúcia, às vezes eriça as garras e desce o braço.

Bennett é conhecido aqui por dois filmes, cujos roteiros escreveu a partir de peças suas. "As Loucuras do Rei George" trata da demência progressiva do soberano inglês que perdeu a guerra contra os colonos americanos, em 1776. Não é grande coisa, mas ganhou um Oscar.

"A Senhora da Van" —que em Portugal, onde se fala o idioma, se chamou "A Senhora da Furgoneta"— trata de uma sem-teto excêntrica que morou durante 15 anos na porta da casa de Bennett. Também não é grande coisa, mas tem Meggie Smith no papel principal.

Autobiográfico, o filme usa uma ferramenta narrativa eficaz. O personagem que narra, o próprio Bennett, é dividido em dois, ambos representados por Alex Jennings. Um é o homem que vive: o sujeito que lida com a pobretona doida que lhe atazana, e à qual se afeiçoa.

O outro é o homem que escreve: o que raciocina a sua relação com a mulher, toma notas, cogita torná-la protagonista de uma peça. Convenhamos, ninguém está interessado em saber como um escritor tem ideias e as amadurece. A não ser que seja outro escritor.

O dramaturgo sai desse beco metaliterário fazendo com que o homem que vive dialogue com o que escreve. E isso ocorre com todo mundo. A vida é um diálogo contínuo da pessoa consigo mesma —para decidir tomar um café, flertar, ser contra Alckmin na vice, mudar de emprego.

Bennett é um provinciano de Leeds, em Yorkshire, no norte. Filho de açougueiro, estudou russo e história medieval em Oxford, onde foi professor por anos, até se tornar dramaturgo e ator. É casado com Rupert Thomas, editor aposentado de uma revista chique de decoração.

Ele fará 88 anos em maio. Escreve um diário desde 1980. No primeiro número de janeiro, a London Review of Books publica páginas e páginas do diário relativo ao ano que vem de acabar. É algo que se aguarda como o papo com um amigo acerca do que lhe aconteceu nos últimos 12 meses.

Um amigo inteligente e observador. Nada de espetaculoso se passa com ele, mas conta as coisas miúdas com graça, alumbra os livros que leu, chicoteia a hipocrisia dos poderosos, fala mal de si mesmo. Tudo com uma leveza singela e, às vezes, indignação pungente, na medida.

A publicação dos diários gera cada vez mais reportagens e comentários nos jornais. Entende-se. Como seu autor é pré-nonagenário, não põe sua intimidade em cena nem busca o barulho de polêmicas. Apenas reage aos fatos que o cercam, mas o tom é de quem se despede da vida.

Como os publica há 40 anos, acompanha-se suas perdas e pavores, ainda que ele desdramatize seu sofrimento. Assim, depois de lhe tirarem um tumor do tamanho de um pão de queijo, e falarem que tinha menos de 50% de chance de ficar bom, comenta: "Foi uma chatice, mas tive sorte".

As críticas a si mesmo são doídas. Ao ver "O Morro dos Ventos Uivantes" com Rupert, seu parceiro comenta que ele parece Heathcliff. Gratificado, Bennet pergunta: "É mesmo?". Rupert explica: "É: difícil, nortista e babaca" (no original, o ultraofensivo "cunt").

Nos fatos políticos, sua prosa afiada fere fundo. Como quando o brasileiro Jean Charles Menezes toma, sem aviso, sete tiros da polícia no metrô. Ele imagina o que houve com o policial que, na "guerra ao terror", o matou: "Espera-se que não esteja mais por aí defendendo nossa liberdade".

Mas descobre que o meganha atirou meses depois noutro suspeito de terrorismo: "Ele melhorou a pontaria graças ao 're-treinamento' e, claro, ao 'aconselhamento' que recebeu". O critério para julgar um ato do governo como esse, diz, é se ele leva "uma pessoa a ter vergonha de ser inglês".

Bennett adapta aos diários a ferramenta do duplo narrador de "A Senhora da Van". Eles são uma conversa sincera e honesta do homem que faz com o homem que pensa no que fez e faz. O diálogo dele com ele é tão cativante que enreda quem o lê ao longo das décadas.

O brilho não está na ferramenta, e sim no talento de quem tem algo a dizer. Daí o dramaturgo reclamar dos "milhões de palpiteiros e cabeças ocas que tomaram a internet e regalam o mundo com sua empáfia. Não é bom falar. A maior parte do tempo é melhor ficar quieto --e isso inclui os dramaturgos".


Texto de Mario Sergio Conti, na Folha de São Paulo

terça-feira, 18 de janeiro de 2022

Príncipes encantados hoje, em vez de final feliz, teriam cancelamento para sempre


Passei a infância consumindo contos de fadas, assim como miojo da Turma da Mônica, balas Soft e Cheetos Tubo. Não é difícil apontar qual deles foi mais prejudicial à minha saúde. Quem acompanha essa coluna conhece minha obsessão por narrativas de princesas, atochadas goela abaixo da pequena Manuela junto com Biotônico Fontoura.

Mas, hoje, não quero falar das protagonistas de sagas fantásticas em busca de um marido. E sim de um detalhe fundamental: o príncipe. O objeto de desejo de nossas heroínas. Eles podem até ficar em segundo plano no pôster, mas toda a narrativa gira em torno deles, que se apresentam como a única possibilidade de um final feliz para as nossas mocinhas.

Quanto mais o tempo passa, mais improváveis se tornam essas histórias. Não só por causa dos feitiços e dos animais falantes. Mas porque, hoje em dia, ninguém em sã consciência seria capaz de correr atrás desses caras.

Começando por uma das relações abusivas mais romantizadas de todos os tempos, "A Bela e a Fera". O príncipe Adam já começa a história maltratando uma idosa em situação de rua. Preconceito. Etarismo. Ódio de classe. E ainda estamos no prólogo. Todo mundo sabe o que acontece depois. Ele é transformado em uma fera e mantém uma menor de idade em cárcere privado. Se a história se passasse em 2022, terminaria com esse homem atrás das grades.

Príncipe Philip também seria fichado na delegacia da mulher. Um boy lixo capaz de beijar a jovem Aurora desacordada, sem o consentimento dela. E ainda matou o dragão que guardava o seu castelo. Corre aqui, Luisa Mell.

Aladdin, o famoso 171, ganharia um exposed no Twitter em dois minutos. Segue o fio: um golpista, estelionatário, que praticava falsidade ideológica para seduzir jovens ricas. Eric, o menino dos olhos de Ariel, a Pequena Sereia, sem dúvidas renderia uma reportagem no Datena por matar a tia de sua amada.

Isso sem falar do colono John Smith e seu relacionamento com a nativa Pocahontas. Smith ensinou à princesa indígena uma série de costumes dos homens brancos, dando um show macabro de colonialismo e mansplaining. E foram cancelados para sempre.


Texto de Manuela Cantuária, na Folha de São Paulo

segunda-feira, 17 de janeiro de 2022

Mandar bem no subjuntivo da conversa pós-match configura até preliminar


Era um grupo de WhatsApp para falar baixaria, como outros, mas voltado a fetiches linguísticos. O nome já tinha mudado várias vezes —"Pleonasmos Múltiplos", "Classudas Gramaticais", "Tchutchucas do Caso Reto", "Leléxicas"—, mas o avatar continuava sendo uma foto do Cauã Reymond sem camisa.

De todas, Marcinha era quem mais compartilhava prints do Tinder, objetificando diretamente a machaiada.

"Ó que delícia, esse aqui. Acentua o verbo ter na terceira pessoa do plural." Se o cara desse match mandando bem no subjuntivo, ela sentia um calor. "Que eu saiba, configura até preliminar."

Renata não pensava tanto em peguetes. Engajada e idealista, frequentava passeatas não só na esperança de um impeachment, mas de encontrar mais gente que concordasse que está sempre faltando uma vírgula no "fora, Bolsonaro" nosso de cada dia. Agora, se do uso correto do vocativo também surgisse o amor, ótimo. Seria o alinhamento romântico-sintático-ideológico perfeito.

Ju havia passado dessa etapa, pois estava namorando um professor de cursinho. Álgebra, infelizmente, pois não se pode ter tudo na vida. No entanto, que compatibilidade. No dia seguinte à primeira ida ao motel, a pergunta logo piscou no grupo.

"E aí???" Sucesso total: luz baixa, música envolvente, champanhe gelado e páginas da gramática do Evanildo Bechara espalhadas pelo lençol de cetim.

"Se ainda fosse a do Napoleão Mendes de Almeida..." Norma, carinhosa e trocadilhescamente chamada de "Norma Culta", era dessas. A mais purista e mal-humorada das amigas. "Só não me deixo levar pelo uso que qualquer marmanjo faz da língua, isso sim."

Amante dos radicais gregos e latinos, odiava anglicismos. Mas tinha tesão pelo professor Pasquale Cipro Neto desde que ele ensinou o plural de hambúrgueres num comercial do McDonald’s. Uma vez por semana, pelo menos, comia um double cheeseburger pensando no crush.

Papo ia, papo vinha —e Luciana calada. Até o dia em que, pá! Fez uma onomatopaica e sinestésica revelação quentíssima. "Um ‘pobrema’ salvou meu casamento..." Há 20 anos com um doutor em letras pela Sorbonne, descobriu que falar sobre "percas" e "resistros" apimentava a relação entre quatro paredes. "Ele dizendo ‘iorgute’ é tão lindo."

Marcinha, Ju e Renata foram logo compreensivas. Norma tardou, até digitar a mensagem definitiva. "Na vida, ser feliz deveria ser obrigatório. E estar certa, facultativo —que nem certas crases." Enviando, na sequência, o motivo da demora: havia feito uma figurinha do Professor Pasquale com um X-tudo, dentro de um coração.


Texto de Bia Braune, na Folha de São Paulo

sábado, 15 de janeiro de 2022

Mulheres que sofrem


Voltei até que bem (ia dizer "feliz") de curtas férias em Pernambuco. Mas dei de cara com tantas mulheres em sofrimento (aqui e lá) que me calei.

Voltei quase bem, porque lá é que se cura um tanto da minha nostalgia, o reencontro com sabores e paisagens de infância: mangaba, pitomba, caranguejo, coqueiros e praia de águas mornas.

Voltei até que bem, ainda que não seja tempo de caranguejos: é época de defeso, a espécie está em reprodução. Só foi possível comer um resto de machos magros. A captura e o cativeiro de fêmeas para engorda estão proibidos.

Respeitou-se, mas lamentei, porque costumo comer inteiros esses crustáceos, patas e carapaças, cozidos só na água e sal. Passo horas sentada a uma mesa de praia comendo caranguejos (do tipo guaiamum, de preferência), numa voracidade deselegante e pré-histórica, como se estivesse num daqueles períodos de fome atávica da história da humanidade.

Mas voltei testemunha de mulheres em sofrimento: porque foram mães ou porque não são mães; sofrendo por terem revivido (assistindo ao depoimento-denúncia de uma outra) a tragédia obstétrica, o desdém e a violência médica na hora do parto, sem nunca terem conseguido elaborar esse trauma.

Sofrendo porque seus filhos e filhas sofrem (mas também porque às vezes acham esses filhos e filhas insuportáveis —e viram isso em um filme e se identificaram, mas não podem dizê-lo na vida real). Mulheres cujos filhos morreram antes delas e que sofrem da inenarrável dor dessa morte.

Sofrem porque foram abandonadas por seus companheiros ou companheiras (ou porque abandonaram seus companheiros ou companheiras). Que sofrem porque são filhas e acham suas próprias mães um fardo a carregar.

Sofrem porque seus companheiros são violentos feminicidas latentes ou ativos. Porque não conseguem denunciá-los ou porque conseguiram denunciá-los. Ou mulheres que sofrem porque suas companheiras homoafetivas demandam demais, querem exclusividade, demonstrações públicas de carinho heteronormativo, numa irritante parodiazinha de gênero (de casaizinhos).

Mulheres que sofrem porque não sabem se querem transar com homens ou com mulheres. Sofrem porque, no fundo, nunca vão atingir, como os homens, um certo desinteresse pela monogamia: é que um homem disse uma vez a uma mulher (boquiaberta de espanto) que o mundo das vaginas é fascinante porque é de uma diversidade infinita, que não há vagina igual a outra, que é preciso experimentar muitas, ir variando de vagina em vagina, e daí a infidelidade dos homens!

Sofrem também porque acham que são boas mães, mas que seus filhos não reconhecem isso. Elas que abominam noras ou genros porque responsabilizam essas intrusas e intrusos pelo sofrimento incalculável que é a síndrome do ninho vazio.

Sofrem porque estão velhas e perderam seus gatos e cachorros idosos, e seus netos são ausentes. Ou porque são jovens demais e não se compreendem (sofrem desse tipo específico de cegueira).
Sofrem porque seus chefes são os machistas de sempre, supostos profissionais bem-sucedidos no "mercado", homens casados que querem mesmo é comer suas subordinadas, e pagando pouco.

Mulheres que sofrem porque precisam escrever suas teses e livros e (ainda) não encontram a paz de que os homens desfrutam para desenvolver seus trabalhos —eles que, quando se sentam a uma mesa para escrever ou desenhar, botam na cara aquele ar de gênios superiores.

Mulheres que sofrem porque são pobres e negras e sustentam a família sozinhas —e porque de faxineiras e empregadas domésticas, foram desembocar em cuidadoras, não mais do que isso.

Ou porque são ricas e deprimidas e não sabem o que fazer da vida, além de unhas, cabelo e ginástica (e de ingerirem psicotrópicos, porque estão magras demais ou obesas demais).

Mulheres maduras ou velhas, que sofrem porque as novas tecnologias criaram-lhes barreiras insuperáveis, elas que não sabem digitar, digitalizar, zapear, printscriptar —nem gozar no aplicativo de relacionamentos sociais, na plataforma dessas novas estações.

Sofrem porque a tecnologia instituiu essa espécie de clivagem na vida delas —uma semiexclusão, elas que achavam que já sabiam tudo, porque, por serem mães, já têm o conhecimento e a sabedoria, tendo vivido o que existe de mais rico em aprendizado (ao mesmo tempo prazeroso-doloroso).

Voltei de Pernambuco quase feliz. Ainda que também não fosse época de pitombas. Mas sofri só de ver como as mulheres estão sofrendo (aqui e lá).

É um sofrimento sem ideologia (aquém ou além dos feminismos). Como se, na andada solitária delas, tivessem caminhado para trás nos tempos. E não é exatamente uma culpa: é uma agonia, como uma fome ancestral.


Texto de Marilene Felinto, na Folha de São Paulo

Cento e cinquenta


O Ilan Kow me apresentou o podcast do Alan Alda, o Alan Alda me apresentou aos estudos do Robin Dunbar, o Robin Dunbar não me apresentou a ninguém –mas falou coisas muito interessantes na entrevista.

O Ilan foi meu editor no Estadão. O Alan foi o protagonista de M.A.S.H. O Ilan é meu amigo. O Alan, infelizmente, não. Robin Dunbar, antropólogo, psicólogo e primatologista britânico, não é meu amigo, nem do Ilan, nem do Alan, mas em compensação descobriu e batizou o "Número de Dunbar". Cento e cinquenta é, na média, a quantidade de pessoas com quem um ser humano consegue estabelecer relacionamentos significativos, simultaneamente.

Não só um ser humano. Perto de 150 é o número máximo em qualquer bando de primatas. Passou disso, divide-se em dois. Quando éramos caçadores e coletores, 150 era a média de indivíduos de cada grupo. O Facebook fez uma pesquisa com 60 milhões de usuários e descobriu que, apesar de uns perfis terem trocentos "amigos", os que realmente importam são, tchananam: 150.

Segundo Dunbar, num povoado com até 150 moradores, todo mundo se conhece e as relações pessoais funcionam como instituições. Você evita bater a carteira da senhora sentada sobre o monte de feno não pelo imperativo moral, mas porque a senhora sentada sobre o monte de feno é a dona Magali, filha do Elcinho Bola Sete, que tocava triângulo na banda de salsa do tio Olavo –que Deus o tenha. Passou de 150, virou bagunça: entra polícia, juiz, farol, catraca, pulseirinha VIP e outros balangandãs foucaultianos.

Robin Dunbar cita estudos: pessoas com muitos vínculos significativos adoecem menos e vivem mais. Tocar triângulo na banda de salsa do tio Olavo faz com que o cérebro do Elcinho Bola Sete libere dopamina, que colabora no fortalecimento do sistema imunológico. Imagina quantos meses de vida não garante um abraço coletivo num gol do Corinthians?

Entre os 150, cada indivíduo tem uma relação íntima com apenas cinco pessoas. Durante a pandemia, aos trancos e barrancos, demos um jeito de continuar próximos desses cinco. Dos outros 145, não. Minhas maiores alegrias nesta reabertura (momentaneamente pausada pelo pentelho do ômicron, mas em breve retomada, inexorável e definitivamente) têm sido ver estes 145.

Outro dia visitei minha amiga Flávia. Quem abriu a porta foi o marido dela, Luiz. A gente se conhece pouco. Pra mim, ele é marido da minha amiga. Pra ele, eu sou amigo da mulher. Mas foi bater o olho pra sentir meus leucócitos bombando e entender que o mesmo ocorria no sistema imunológico adiante. Deu vontade de abraçar e pular gritando "arrá, urrú, 150 é nosso!".

Desde que se aposentou, há 20 anos, o pai do Ilan encontrava seus cinco amigos duas vezes por dia. De manhã, tomavam café na padaria da esquina. Mesma mesa. Mesmos lugares. Fim da tarde, tomavam café numa doceria do shopping. Mesma mesa. Mesmos lugares. Ano retrasado, a padaria foi reformada e meteram uma catraca bem onde a turma do pai do Ilan se sentava. Não consultaram os caras, nem avisaram. O pessoal chegou pra tomar café e o programa tinha morrido.

Num bom bando de uns, digamos, 130 macacos-prego, duvido que isso acontecia. O primeiro que chegasse com a catraca recebia uma sova de cocô e desistia da estupidez. É meio nojento, mas, convenhamos, tem sabedoria.


Texto de Antonio Prata, na Folha de São Paulo

Famílias e profissionais de saúde lembram com dor e revolta falta de oxigênio em Manaus


Relembrar o final de 2020 e início de 2021, quando o sistema de saúde do Amazonas colapsou pela segunda vez, reativa dores que o advogado e juiz aposentado Francisco Balieiro acredita que nunca serão superadas.

A expectativa dele era virar a página das consequências da primeira onda da Covid em sua vida: passou quatro dias internado em abril de 2020, perdeu o irmão, cunhada e amigos no mesmo período e conviveu com as sequelas da doença o ano inteiro.

"Já tinha feridas não cicatrizadas. E a segunda onda pegou nossa família de forma brutal e violenta", conta.

A filha de 27 anos foi infectada e entre a internação e a morte foram apenas cinco dias. Baleiro a enterrou no dia 21 de dezembro de 2020. "Ela não tinha comorbidade. Era gordinha, mas não tinha problemas de saúde por ser mais gordinha."

No dia 5 de janeiro de 2021, perdeu um sobrinho e, no dia 8, um tio para a Covid. Uma semana depois, em 12 de janeiro, outro irmão faleceu em decorrência do coronavírus.

"Naqueles dias já havia queixas de falta de oxigênio em Manaus", lembra.

A correria e a ansiedade continuaram. No mesmo dia, a mãe do advogado apresentou sintomas. A família percorreu onze unidades hospitalares tentando atendimento.

"Não havia vaga nem pública nem particular. Onde tinha vaga, não tinha oxigênio", recorda.

O exame de Covid da idosa havia dado negativo, mas, como ela morava com o irmão do advogado que morreu com a doença e era do grupo de risco, a família decidiu levá-la para São Paulo, onde a infecção pelo coronavírus foi então confirmada.

"Se tivesse ficado em Manaus, teria morrido", afirma Balieiro.

Enquanto a família se desdobrava com as dores e o tratamento da matriarca fora do estado, o cunhado de Balieiro, também infectado, teve uma piora na doença e não conseguia vaga para se internar.

"No enterro do meu irmão, que morreu dia 12, só podiam entrar duas pessoas. Tem uma foto minha sozinho no enterro que foi feita pelo meu cunhado. Naquele dia, ele já estava com a doença e não sabia. O Maguila tinha 44 anos", conta.

O cunhado ficou dias internado em uma UPA e, por meio de uma decisão judicial, a família conseguiu uma vaga para ele em um hospital. Cerca de um mês depois, ele também morreu.

"Não tem como dizer que superou. Tem dias que vem lembranças da minha filha, outra hora é do meu irmão, do meu tio, depois do Maguila. Às vezes, estou no carro e fico muito ruim e choro. Quem não sofreu essa angústia, essa dor não faz ideia. Você procura forças para reviver e voltar a uma vida normal", diz, chorando.

Francisco Balieiro afirma que sua ansiedade agora é pela vacinação da filha de oito anos. "Ela nasceu prematura, um quilo e cem gramas. Não sei nem o que seria capaz de fazer para ver minha filha vacinada."

O advogado critica a postura do governo em relação à pandemia e à vacinação de crianças.

"É inacreditável que, depois de tudo que este país passou, o presidente da República continue fazendo gracinha com a pandemia. Eu sou cristão. Não há incompatibilidade entre Deus e ciência, há entre Deus e esse cara aí [Bolsonaro]", diz.

Um ano após o colapso do sistema de saúde de Manaus, o funcionário público José Augusto Silva da Costa, 66, convive com as sequelas que deixaram limitações musculares nas pernas dele e com a revolta pelos que morreram por falta de leito e oxigênio.

Costa sobreviveu à doença porque foi transferido para outro estado quando o Amazonas colapsou. Lembra que ficou internado dois dias numa cadeira de rodas no corredor de uma unidade de pronto atendimento em Manaus, com falta de ar e fraqueza, até a transferência para Natal.

"Vi duas pessoas morrerem ao meu lado [em Manaus]. Vi se debaterem com falta de ar. Pensei que ia morrer também. Oro de joelhos agradecendo por ter conseguido sair daqui. Muitos não tiveram a mesma sorte", lamenta.

"Meu sentimento é de revolta, de raiva. É inadmissível faltar oxigênio. Tinha aqui na Venezuela. Por que não trouxeram antes de faltar? Esses caras trazendo cloroquina para cá. Brincaram com a vida do povo. Esse governador foi irresponsável e o presidente mais ainda."

Do outro lado do balcão, um médico da linha de frente, que pediu para não ter o nome divulgado, conta que chora e se questiona quando lembra das decisões que teve de tomar com outros profissionais para escolher quem ia ficar sem oxigênio nos intervalos de desabastecimento.

Os pacientes que eles consideravam com maior condição de sobreviver eram privilegiados com o oxigênio quando os níveis eram críticos. Assim, os primeiros a morrer, quando faltava o insumo, eram os da UTI, segundo ele. Mas a falta também atingiu quem não conseguiu acesso a um leito intensivo, acrescenta.

Entre outros momentos, recorda que uma gerente técnica se jogou no chão e começou a chorar depois que os doentes selecionados para ficar sem oxigênio, em razão da escassez, morreram. Diz ter na memória também um idoso que, já muito mal e sem oxigênio, contava a ele estar vendo Jesus.

Para o médico, situações inesquecíveis como essas levaram muitos colegas a adoecer no período após o colapso da saúde em Manaus.

Glenda Nascimento de Freitas, enfermeira e diretora da UPA (Unidade de Pronto Atendimento) José Rodrigues, recorda que a unidade que ela gerencia tem capacidade para 19 pacientes internados, mas tinha 56 no dia em que faltou oxigênio.

"Só de lembrar já quero chorar. Foi um desespero. Fiquei quatro dias sem dormir. Do dia 14 ao dia 18. Tenho crise de ansiedade até hoje. A gente corria para conseguir oxigênio para duas, três horas e depois corria de novo", conta.

Ela diz que o terror começou quando, na manhã do dia 14, uma unidade do bairro Alvorada acusou a falta de oxigênio e de resposta da empresa fornecedora do insumo. Ela fez um cálculo e percebeu que o da unidade dela acabaria às 19h.

Assim, ela e a equipe começaram a reavaliar pacientes para altas e transferências. Ao meio-dia, porém, os hospitais pararam de receber os doentes transferidos porque estavam com o mesmo problema que a UPA.

No final daquela manhã, o marido de Freitas, que não é funcionário do estado, foi para uma enorme fila de uma empresa que vendia cilindros avulsos. Médicos da unidade fizeram vaquinha e conseguiram o recurso. A vez dele, no entanto, não chegou antes das 19h.

Neste dia 14, segundo a enfermeira, ocorreu "um milagre": uma pessoa —que até hoje ela não sabe quem é— parou na frente da unidade e doou oxigênio suficiente até as 21h. O doador havia visto o apelo nas redes sociais.

Na fila de uma empresa, conseguiram oxigênio até as 2h da madrugada. E assim passaram os quatro dias seguintes, com oferta intermitente do insumo.

Em uma das vezes em que o oxigênio estava chegando ao fim, conseguiram 16 cilindros, mas precisavam de um caminhão para trazê-los até a UPA. O irmão de um paciente a ouviu comentar o problema e ofereceu o seu veículo. O irmão dele estava intubado na unidade.

"Ele vinha no caminhão dirigindo o mais rápido que podia, chorando e rezando alto: ‘Senhor, sustenta meu irmão mais uns minutos’. Eu, ao lado, não aguentei e chorei também. Ficaram uns minutos sem oxigênio. O irmão dele foi um dos que sobreviveram", diz.

"Quando faltava [oxigênio], as pessoas morriam. Principalmente as que estavam intubadas, dependentes 100% de oxigênio. A equipe ia ambuzar [usar o ambu, reanimador manual], tentava acalmar. Dizia que o oxigênio estava chegando. Algumas conseguiam controlar a mente. Outras, infelizmente não. Do dia 14 para o dia 15, perdemos cerca de 15 pessoas", lembra.

No dia 14, a Folha publicou reportagem na qual a empresa White Martins afirmava que a solução mais viável era trazer oxigênio da planta da companhia na Venezuela, devido à distância e à logística envolvida. Três dias depois, o governo de Nicolás Maduro anunciou uma doação.

A chegada, por estrada, a Manaus da doação do governo da Venezuela, no dia 20 janeiro, deu fôlego ao sistema, mas, segundo dados do relatório da CPI da Covid, a instabilidade perdurou até fevereiro. 


Reportagem de Rosiene Carvalho, na Folha de São Paulo

Poesia de Thiago de Mello foi de instrumento de luta a ideal romântico


poeta amazonense Thiago de Mello morreu dormindo, aos 95 anos, em Manaus. Nas últimas sete décadas, ele cumpriu o ideal romântico de viver como poeta, no equilíbrio de amores exacerbados, fidelidade à vocação de escritor, amizades intensas e espírito de viajante.

Desde seu exílio político, nos anos 1960, era um dos nomes mais conhecidos da literatura brasileira na América Latina, estreitando amizade com grandes escritores de seu tempo, de Pablo Neruda a Julio Cortázar, de Jorge Luis Borges a Nicanor Parra, de Alejo Carpentier a Gabriel García Márquez, que o chamou de "guru grande".

"Silêncio e Palavra", de 1951, e "Narciso Cego", de 1952, marcaram sua entrada no mundo literário e firmaram sua voz poética afinada com a vertente lírica e discursiva. "Poetas principais de nossa literatura moderna, estou tentado a pedir um lugar, ao vosso lado, para o poeta de 'Silêncio e Palavra'. Com 26 anos e um só livro publicado, o senhor Thiago de Mello bem demonstra, todavia, que já se acha em condições de se situar na primeira linha da nossa poesia contemporânea", saudou, à época, o crítico Álvaro Lins.

Em sua poesia de juventude, sem se aferrar ao receituário da Geração de 45, esteve próximo de especulações metafísicas. "Cego assim, não me decifro./ E o imaginar-me sonhado/ não me completa: a ganância/ de ser-me inteiro prossegue." "A Lenda da Rosa", de 1956, lançado pela prestigiosa coleção Rubaiyat, da editora José Olympio, talvez seja o seu mais virtuoso e esquecido livro.

Poeta e diplomata, Thiago de Mello esteve à frente das edições Hipocampo, criada com seu amigo Geir Campos, nos anos 1950. Em dois anos, lançou obras de Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles, Jorge de Lima, Paulo Mendes Campos e Guimarães Rosa.

Na década de 1960, ao servir como adido cultural em Santiago, virou uma personalidade do mundo literário chileno, muito presente no círculo de Pablo Neruda, seu amigo íntimo. Neruda não só virou seu tradutor, mas entregou a ele as chaves de sua residência na capital, a mítica La Chascona. Nela, Mello acolheu exilados brasileiros e ofereceu memoráveis saraus poéticos. Seus contemporâneos nunca se esqueceriam do festival de pipas que promoveu com centenas de crianças de Santiago.

"Thiago, a Santiago, como un vago mago,/ has encantado en canto y poesía./ Sin San, has hecho de Santiago, Thiago,/ un volantin de tu pajarería", celebrou Neruda.

Em 31 de março de 1964, na presença de Neruda e Salvador Allende, ele acompanhou pelo rádio as notícias do golpe militar no Brasil. "É o primeiro de uma sucessão de outros golpes na América Latina", vaticinou Allende no desfecho da deposição de João Goulart.

Depois de ver as fotos da perseguição aos militantes comunistas Astrojildo Pereira e Gregório Bezerra, Thiago de Mello escreveu seu poema mais conhecido, "Os Estatutos do Homem", traduzido para mais de 30 línguas –no espanhol, seu tradutor é Neruda– e incluído no livro "Faz Escuro Mas Eu Canto", de 1965.

"Fica permitido a qualquer pessoa,/ a qualquer hora da vida,/ o uso do traje branco", diz um dos versos. Ele incorporaria essas palavras à sua indumentária cotidiana, revezando guayaberas brancas presenteadas por Fidel Castro e Pablo Milanés.

A poesia engajada ampliou o alcance internacional de sua obra, mas também obscureceu livros que não se encaixam nesse rótulo, a exemplo de sua última reunião de poemas, "Acerto de Contas", lançado pela editora Global em 2016, um retorno a preocupações filosóficas de sua juventude, sob influência das leituras de Martin Heidegger, Friedrich Hölderlin e Jorge Luis Borges. Ele atribuía ainda grande importância ao seu trabalho de tradutor de poesia latino-americana, que resultou na vasta antologia "Poetas da América de Canto Castelhano", de 2014.

Em 1965, de volta ao Rio de Janeiro, o poeta foi um dos organizadores do protesto de nove artistas e intelectuais contra a ditadura, em frente ao hotel Glória, durante a conferência da Organização dos Estados Americanos.

Como não foi detido no ato, decidiu se entregar voluntariamente ao Exército, em solidariedade aos amigos Antonio Callado, Marcio Moreira Alves, Carlos Heitor Cony, Glauber Rocha, Márcio Carneiro, Joaquim Pedro de Andrade, Jayme de Azevedo Rodrigues e Flávio Rangel. No quartel, com ímpeto de caboclo, gritou para os soldados "sou índio, preciso tomar banho de rio".

Para não servir à ditadura, Thiago de Mello renunciou à vida diplomática e chegou a fazer treinamento de guerrilha rural em Cuba, num tempo em que, em contato com Leonel Brizola, pretendia se incorporar ao grupo guerrilheiro de Caparaó. Com a vitória de Allende no Chile, foi convidado a dirigir a comunicação do programa de reforma agrária. Mas o sonho socialista ruiu em 1973, no golpe militar de Augusto Pinochet, e ele precisou fugir às pressas do país. No novo ciclo do exílio, percorreu países como França, Alemanha, Espanha e Portugal.

No retorno do exílio, em 1977, Mello anunciou, em entrevista, que decidira morar na Amazônia, para servir à causa ecológica. Em prosa e verso, passou a iluminar questões ambientais e indígenas, lançando "Mormaço na Floresta", em 1986, e "Amazonas, Pátria da Água", em 1991.

Ele habitava a sua linguagem. Seu fascínio pessoal envolvia os dotes de memória, o cotidiano encharcado de poesia, a queda por canções populares, a delicadeza de suas indignações morais, o charme de conquistador, os ares de xamã amazônico e a conversa que conferia vida a seus amigos mortos.

Sua definição do tempo passava pela lembrança de um encontro com o líder cubano Fidel Castro, outro de seus influentes amigos. Numa noite, o comandante explicou a ele a definição de eternidade de um professor jesuíta. De cem em cem anos, um pássaro pousava numa pedra imensa e bicava três vezes. "Quando a rocha estiver totalmente desgastada, terá passado um dia da eternidade", concluiu Fidel.

Thiago de Mello deixa uma viúva, a poeta Pollyanna Furtado, e três filhos. Nas últimas duas décadas, ele se dividia entre seu apartamento em Manaus e uma casa na Freguesia do Andirá, em Barreirinha, no Amazonas, sua cidade natal. Seus movimentos estavam prejudicados pelo avanço da neuropatia. Lentamente, ele perdia o prodígio da memória.

Entre seus conselhos, estava o de deixar sempre uma barra de chocolate embaixo do travesseiro. "É bom comer quando a gente acorda, de repente, na madrugada."


Texto de Claudio Leal, na Folha de São Paulo