Vamos ver se estou entendendo direito. Quando Bolsonaro fez seus primeiros discursos sobre a pandemia, sua lógica era a de que uma quarentena traria desemprego, fome, crise econômica —e que isso poderia matar tantas ou mais pessoas do que a própria Covid-19.
Não vou discutir esse ponto, certamente errado. Apenas assinalo que era um raciocínio. Pois bem. Passam-se os meses, e aparece a vacina do Butantan, feita em parceria com a China. É a ideal? É melhor que outras? Não vou dar opinião. O fato é que está na frente, praticamente pronta para ser usada. Aplico então a lógica de Bolsonaro. A vacinação permitiria acabar com a quarentena, e a possível retomada de toda a atividade econômica que estivermos em condições de ter.
Se era para evitar as mortes do desemprego, da fome e da recessão, seria então o caso de correr atrás da primeira vacina que aparecesse. O risco de uma vacina “duvidosa” é menor, sem dúvida, do que o risco de ignorar a quarentena sem vacina nenhuma.
A prioridade antirrecessão de Bolsonaro justificaria, desse modo, a aceitação de qualquer vacina que viesse. Mas o governo faz o possível para atrasar a aprovação da vacina chinesa. Conclui-se que Bolsonaro não está pensando na retomada econômica —simplesmente não quer que a vacinação seja feita rapidamente.
Como bem disse o editorial da Folha deste domingo (13), trata-se de uma atitude assassina. Desenvolvo mais um raciocínio. Se a ideia era dar mais importância ao problema da recessão do que ao da saúde pública, Bolsonaro poderia agir de outra forma.
Poderia dizer que a quarentena é ruim para a economia e que o governo se opõe a isso, mas que, se todo mundo usar máscara e lavar a mão direitinho, os riscos de contaminação não são tão grandes assim.
Ao contrário: sempre que pode, Bolsonaro aparece sem máscara em lugares públicos, abraça criancinhas, dá o exemplo de como se contaminar. Novamente, o esforço do presidente não é o de manter a economia funcionando —é o de agir ativamente em favor do agravamento da pandemia.
Sim, ele se contaminou, junto de vários membros do governo. Teve sorte. E aí entra mais um fator na sua patologia mental.
Confinamento e máscara, diz ele, são “coisa de maricas”. Quem é macho não tem medo de se contaminar; provavelmente, acha também que quem é macho não morre. Covid e Aids se confundem
na ignorância sem fim.
Noto mais uma pequena contradição no conjunto desses absurdos. Bolsonaro defendeu, sem prova nenhuma, o uso da cloroquina. Um macho de verdade, desses que não usam máscara, deveria também achar que cloroquina é frescura, sinal de covardia.
Mas a cloroquina é uma beleza. Pode tomar sem medo. Surge a vacina do Butantan. Agora, Bolsonaro quer calma, relatórios, novos testes. Foi irresponsável com a cloroquina, virou cricri com a imunização.
Ainda uma vez, só se pode concluir que age a favor da pandemia.
Se é preciso exigir judicialmente que o governo apresente um plano de vacinação, há evidências fortes de que Bolsonaro não tem interesse em imunizar ninguém.
Se foi preciso um “pool” da imprensa para contabilizar contaminados e mortos pela Covid, há evidências fortes de que Bolsonaro quer que ninguém ligue para a gravidade do problema.
O intuito assassino não poderia ser mais claro.
Outra contradiçãozinha que ajuda a provar esse ponto. No plano de vacinação finalmente enviado ao Supremo Tribunal, retirou-se a prioridade para a população carcerária e os quilombolas. Talvez porque
“bandido bom é bandido morto” e porque, pesando no mínimo “sete arrobas”, os quilombolas estejam fora de risco.
É vontade de matar: se tivermos de fazer vacinação, pelo menos podemos torcer para que esses aí fiquem de fora.
A vontade de matar é tanta, que o governo contraria até os interesses dos fabricantes nacionais de armas, permitindo a importação de pistolas a imposto zero. A vontade de matar é tanta, que eles até se deixam contaminar pela Covid-19 se mais gente seguir o exemplo.
Sem dúvida, é o militarismo no seu extremo de demência. Sou um herói: estou pronto a me arriscar num avião de bombardeio se uma bela explosão atômica matar milhões de pessoas.
De preferência, os do meu próprio país. Afinal, eliminar pobres, velhos, negros, índios, comunistas, bandidos e maricas sempre foi um sonho a ser realizado. Todo sacrifício —até o da própria vida— vale nesse objetivo. Isso é que é ser macho. Isso é que é ser herói da pátria.
Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo.
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