sábado, 19 de dezembro de 2020

O Natal é a besta negra dos colunistas, é um martírio, um calvário, uma cruz

 Mais vale ser honesto e admitir que o Natal anda a transtornar colunistas há milênios.

Não admira que a maior parte deles tenha pouco apreço pela quadra. Talvez o leitor não saiba disto, mas a legislação impede que os colunistas ignorem o Natal. Há que escrever uma coluna sobre o Natal todos os anos. E 2020 anos disso acabam por cansar, evidentemente. O Natal é a besta negra dos colunistas, é um martírio, um calvário, uma cruz.

No fundo, o Natal é a Páscoa dos colunistas. Enquanto o resto do mundo celebra um nascimento, eles agonizam. Por um ângulo novo, um ponto de vista inesperado, uma opinião surpreendente e inédita sobre a data. E o mais incrível é que ainda nenhum deles se tinha lembrado de falar da figura que os outros fazem quando escrevem, anualmente, sobre o Natal. É aqui que eu entro.

Basicamente, há dois tipos de coluna natalícia: a moralista e a moralista que tenta moralizar os moralistas para que deixem de moralizar. Na primeira categoria estão todas as colunas alguma vez escritas sobre o Natal; na segunda encontra-se esta.

A coluna natalícia moralista costuma apresentar duas ou três críticas recorrentes. Uma diz respeito ao consumismo acéfalo das pessoas. Tanta gente nos shoppings, mas que maçada, uma multidão carregada de sacos, e tal. Trata-se de uma crítica pertinente. O consumismo acéfalo dos outros é repugnante, sobretudo na medida em que me impede de praticar o meu. Milhares de pessoas embrenhadas no seu consumismo acéfalo dificultam-me a tarefa de consumir acefalamente, que é extremamente retemperadora da alma (o que raras vezes se admite).

consumismo acéfalo não merece a má imprensa que tem.

Outra crítica: a vontade artificial de sermos bondosos, que é tão hipócrita porque dura apenas uma semana e desaparece no resto do ano.

A verdade é que a preocupação dos colunistas com a hipocrisia é igualmente hipócrita, porque também dura apenas uma semana e desaparece no resto do ano. As pessoas são hipócritas durante todo o ano (eu, pelo menos, sou), mas os colunistas, por incompetência ou má vontade, só assinalam a hipocrisia natalícia.

Pois eu digo: que se danem os moralistas. Ou, usando de hipocrisia natalícia: bem-aventurados sejam os moralistas. Mas que fique claro que, hipocrisias à parte, eu quero mesmo que eles se danem.


Texto de Ricardo Araújo Pereira, na Folha de São Paulo.

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