sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

Sem vacina, com mil mortos por dia, Brasil afunda no desgoverno do anticristão

 “O mercenário, que não é pastor, a quem não pertencem as ovelhas, vê o lobo aproximar-se, abandona as ovelhas e foge, e o lobo as arrebata e dispersa, porque ele é mercenário e não se importa com as ovelhas”. Está no Evangelho de João, aquele que Jair Bolsonaro cita de modo blasfemo, como se fora um clichê mundano, sem entender o que quer dizer “a verdade vos libertará”, se é que leu o texto, que de qualquer modo não entendeu, dada a sua grosseria moral e intelectual.

No início da epidemia, esse homem não apenas abandonou os brasileiros a seu próprio azar, mas sabotou os esforços de quem se bateu para não entregar as pessoas ao lobo da praga. Outra vez agora, o que restou de decência e razão no país se organiza a fim de vacinar o povo, proteger as pessoas que trabalham nos hospitais e salvar da morte pelo menos os nossos avós, de início.

A maioria dos governadores, prefeitos e o Supremo Tribunal Federal tentam improvisar um governo nacional pelo menos no que diz respeito à emergência da saúde. A desgraça recrudesceu, as mortes outra vez passam das mil por dia. É possível que entre o Ano Novo e o que alguns cristãos chamam da festa de Reis, 6 de janeiro, pelo menos 200 mil brasileiros tenham morrido de Covid-19. Em São Paulo, as internações e mortes aumentaram na casa de 60% desde o início de novembro.

A iniciativa de criar ao menos um governo para as vacinas é um arranjo precário, o que se tenta salvar do incêndio. Para piorar, o Congresso ou pelo menos o arranjo que continha os piores arreganhos de Bolsonaro está em pane. O Parlamento pode cair sob seu controle ou influência maior na eleição de fevereiro para os comandos da Casa. Uma perna do sistema de governo improvisado para limitar a destruição bolsonarista está para ser cortada. Bolsonaro, pois, ganha força para tocar seu projeto de destruição. É o anticristão, em todos os sentidos da palavra, no aumentativo do substantivo e no adjetivo.

O mercenário outra vez sabota o trabalho de quem quer proteger as pessoas da morte, desmoralizando a vacinação, disseminando dúvidas sem fundamento de modo a alimentar o desvario que é sua razão de ser e poder. Faz assim com qualquer instituição ou ideia racional. Tenta desmoralizar as eleições, imitando Donald Trump feito um sabujo rábico. Nega e estimula a destruição do ambiente, até agora o projeto mais bem-sucedido. Difunde a ideia de que o morticínio também pelas armas de fogo é uma solução para o problema da violência. Não são abstrações, são suas medidas ou propagandas mais recentes.

No submundo em que vive, tenta manipular com cada vez mais afinco os órgãos de polícia e fiscalização (como a Receita). Espalha agentes da Abin pelos ministérios. Depois de ser obrigado a parar com os comícios golpistas, toca seu projeto de destruição de modo mais insidioso.

Se o Congresso cair sob a influência de Bolsonaro, será pior. Mesmo a fantasia de “reformas” escorre pela vala suja. O capitão da extrema direita jamais se importou com isso. A fim de atacar João Doria, negou até privatização de um entreposto federal de alimentos, a Ceagesp.

Sem governo e com o Congresso em pane, não haverá socorro para os milhões que cairão em pobreza ainda maior com o fim dos auxílios. Não há plano de recuperação econômica em geral, nem mesmo para as contas do governo, “ajuste” que para os donos do dinheiro grosso justificou a eleição do capitão da extrema direita, o mercenário de João, que passeia pelo Brasil dizendo baixezas e mentiras com seu esgar demoníaco.


Texto de Vinicius Torres Freire, na Folha de São Paulo

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