Durante a chamada Era de Ouro, a partir do século 8º, quando o califado abássida se estendeu da Sicília ao atual Uzbequistão, as rotas comerciais que ligavam a capital Bagdá à Índia e ao Extremo Oriente serviram também a narradores viajantes guiados pelo gosto do maravilhoso e do exótico.
O mesmo impulso que resultaria nas “Mil e Uma Noites” produziu narrativas de autores anônimos sobre reinos improváveis. A história de Jval Bhasma, na Índia, é uma das mais extraordinárias.
Na falta de guerras e inimigos externos, o Exército jvalbhasmense se voltou desde muito cedo contra a própria população. Só isso bastaria para garantir o aspecto fantástico do relato. A batalha fundadora de Jval Bhasma (que em sânscrito significa “brasas” ou “cinzas”, dependendo do momento e do ponto de vista) consistiu no confronto das tropas oficiais, fortemente armadas, contra súditos miseráveis, recolhidos a um canto recôndito do território. Como se tivessem tomado gosto pelo massacre, os vitoriosos nunca mais deixaram de ver no extermínio de desvalidos revoltosos a solução para a miséria.
Com a desculpa de defender as fronteiras, mas resistindo a assumir a responsabilidade por seus atos, as forças de Jval Bhasma converteram-se pouco a pouco no principal inimigo do país. Prenderam e torturaram; infiltraram-se nas instituições, desvirtuando funções e objetivos; recrutaram juízes, policiais e médicos; associaram-se ao racismo contra a maioria; aceitaram a corrupção sob o pretexto de combate à corrupção, o crime supostamente contra o crime e, durante as piores crises, puseram o soldo à frente dos interesses da nação.
Quando o reino foi atingido pela peste, aliaram-se a quem alardeava que tudo não passava de um complô. E quando já não era possível esconder os mortos, sabotaram as informações e tomaram o partido de curandeiros.
Nesse meio-tempo, nunca deixaram de zelar pela autoimagem, posando de justiceiros, a ponto de o título do relato anônimo sobre Jval Bhasma resumir em uma única frase, à maneira de um conto moral, a perplexidade do viajante abássida diante do caráter farisaico do país: “Por que os moralistas se lambuzam com a indecência?”.
A falta de coragem para assumir delitos passados os aproximou naturalmente dos que também tentavam encobrir seus atos e escapar à justiça. E assim foram aprendendo a defender seus interesses de acordo com as oportunidades.
A desculpa de obedecer a ordens superiores não isenta ninguém da responsabilidade de pensar por conta própria, se é que goza dessa faculdade. Quanto menos assumiam sua culpa, mais criminosos se tornavam, mais afundavam no lodaçal.
É claro que não podia terminar bem. O mais incrível foi precisamente o modo como Jval Bhasma acabou. E aí essa estranha inversão de alvos e objetivos, mirando as próprias entranhas, ganha toques ainda mais perturbadores de inépcia e estupidez.
Jval Bhasma possuía tesouros naturais dos quais dependiam também os reinos para além das fronteiras. Ali a vida nascia e se renovava. Ali brotavam rios que alimentavam não só o país mas terras distantes.
O vício do pensamento invertido, porém, levou-os a uma dedução espantosa, estúpida e não menos suicida. Projetando no exterior, em ataques imaginários de estados vizinhos e distantes, a maior ameaça a suas riquezas naturais, o Exército tomou a dianteira e as destruiu antes que pudessem ser roubadas.
Na lógica peculiar dos generais, destruiu-as “em proveito próprio”, seja lá o que isso quisesse dizer, para acabar de uma vez por todas com a ameaça, em nome da soberania nacional. E enquanto as destruía, continuava tentando desviar a atenção, pondo a culpa da destruição no fantasma estrangeiro da sua conspiração paranoica.
Acostumados a apontar as armas para um suposto inimigo interno, quando precisaram de um bode expiatório exterior para encobrir a própria incúria, explodiram Jval Bhasma. O reino ardeu até se reduzir às cinzas que seu nome anunciava, mas que a proverbial compulsão autodestrutiva, comprometendo a capacidade cognitiva na fumaça de suas ações, impedia-os de compreender.
Como o relato só foi transcrito dois séculos depois de ter sido narrado, muitos historiadores acreditam que seja uma alegoria, um alerta aos abássidas contra as milícias turcas que eles próprios criaram e fomentaram para servi-los, e que terminariam por corromper e implodir o império. O absurdo da situação narrada no relato sobre Jval Bhasma pesa na conclusão de que só pode ser uma peça de ficção sobre um país que nunca existiu.
Conto de Bernardo Carvalho, na Folha de São Paulo.
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