Já vai longe o ano de 1987, quando Estela Márcia Vieira, de 13 anos, foi assassinada com uma bala na cabeça, num tiroteio no morro do Tuiuti, Rio de Janeiro. Chico Buarque cantou a infância interrompida de Estela : "Uma menina igual a mil/ Que não está nem aí/ Tivesse a vida pra escolher/ E era talvez ser distraída/ O que ela mais queria ser/ Ah, se eu pudesse não cantar/ Esta absurda melodia/ Pra uma criança assim caída/Uma menina do Brasil".
Se viva fosse, Estela Márcia teria hoje 46 anos. Mas sua existência foi despedaçada antes que pudesse escolher "o que ela mais queria ser".
Crianças negras e pobres no Brasil continuam sem ter escolha. Um balaço de fuzil atravessou a cabeça de Emily Victória, 4, e dilacerou o coração de Rebeca Beatriz, 7, quando ambas brincavam na porta de casa, em Duque de Caxias, Baixada Fluminense. Moradores ouviram disparos enquanto policiais militares patrulhavam o local.
Assassinatos semelhantes raramente são esclarecidos, e os criminosos seguem impunes. A classificação de morte por bala perdida se presta à falácia da guerra contra o crime e seus danos colaterais; embaça a violência do Estado e engendra uma sociedade indiferente. Na geografia da "cidade partida", as balas perdidas sabem de antemão quem são seus destinatários. É o racismo à brasileira em sua dimensão mais desumana.
Segundo a ONG Rio de Paz, já são 12 as crianças mortas por arma de fogo no Rio de Janeiro em 2020. Uma para cada mês do calendário. O ano da pandemia superou os mais recentes, que já indicavam, desde 2015, uma escalada nesse tipo de crime.
É sufocante viver num país que banalizou a execução de meninos e de meninas com armamento de guerra. Se o país não para em luto por essas mortes, alguns podem até não perceber, mas todos morremos um pouco junto com Emily e Rebeca. E continuaremos cantando a "absurda melodia" da infância negra e pobre que não tem direito à vida no Brasil.
Texto de Cristina Serra, na Folha de São Paulo.
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