domingo, 6 de dezembro de 2020

Lista de compras

 Minha primeira compra diretamente ligada à quarentena foi de álcool em gel. Quando compreendi que o potinho de 50 ml, nômade há anos peregrinando pelas gavetas do banheiro e estantes da sala, não daria conta do recado, já não havia mais álcool em gel para comprar em nenhuma farmácia do bairro. Fui encontrar numa loja de posto de gasolina, meio abandonada; levei uns quatro litros.

A segunda compra foi um freezer. Havia boatos de um possível desabastecimento. Saques a mercados. Apagão. Quando o freezer chegou, fiz a terceira compra: uma quantidade de comida congelada que nos garantirá a sobrevivência por uns cem anos. Comprei também seis dúzias de velas e fósforos. Muitos fósforos. Em abril, quando a OMS sugeriu comprar máscaras, fiz a quarta compra.

Daí pra frente, terminaram as compras por necessidade e começou o perigoso processo de, chamemos assim, compras recreativas. Meu impulso consumista na quarentena explica a razão de Jeff Bezos ser o homem mais rico do mundo e eu, não. Faz oito meses que, todo dinheiro que entra, envio imediatamente pro Jeff. Nunca recebi um obrigado, nem desconto na lojinha dele.

Em maio eu já estava descontrolado: uma barraca de camping, quatro sacos de dormir, uma lanterna recarregável à luz solar, bastões fluorescentes, dois cantis. Pensei que seria a noite mais feliz na vida dos meus filhos (ela de sete, ele de cinco), acampando com o pai e a mãe no jardim de um sítio, próximo a São Paulo. Os quatro viraram três assim que contei à minha mulher sobre o projeto. “Mas nem ferrando que eu vou dormir numa barraca." Os três viraram dois assim que eu apaguei a lanterna, lá pela uma da madrugada. “Papai, sabe o que é?”, disse meu filho, zeloso diante da minha empolgação, “é que eu acho que tô mais acostumado com quarto, mesmo”. E lá se foi correndo pros braços da mãe.

Eu e minha filha resistimos bravamente até seis e meia da manhã, quando os cachos róseos da aurora, como diria o poeta, nos mostraram que eu havia feito um excelente negócio: pelo preço de uma barraca, adquiri também uma sauna. Suados, fomos pro quarto, onde todo o material de camping se encontra desde então, embaixo da cama, num sacão de 100 L —tente você dobrar uma barraca e fazê-la caber novamente na minúscula bolsa em que ela vem da loja. (Se alguém estiver interessado no material, por favor, e-mails à Redação.)

Depois tive a fase dos jogos. Comprei pros meus filhos War, Banco Imobiliário, Pega Vareta, Twister. É tudo barato. Aí você vai comprando. E no fim do mês descobre o óbvio: se levar mil coisas de trinta reais, gastará trinta mil reais. E terá que vender o carro. Felizmente, não comprei mil coisas. Apenas algumas dezenas. De modo que terei que vender só as rodas do carro. (De novo, por favor, cartas à Redação.)

O microscópio nos divertiu por uma semana —embora o auge do divertimento das crianças tenha sido me ver furando o dedo para observarmos o sangue. O estilingue os interessou por algumas horas. Mas o caldo entronou quando o pandeiro chegou em casa. Ali, minha mulher resolveu que deveríamos ter uma DR. “Você não acha que está exagerando?” “Não.” “Mas você não sabe tocar pandeiro." “Por isso mesmo que eu também comprei um curso online com o Suzano, maior pandeirista do Brasil." Para o azar dela e dos meus filhos, ainda não fiz nenhuma das aulas, mas toco todo dia.

Jeff, nunca te pedi nada. Sempre te dei tudo. Só o que te imploro é para que os três fones anuladores de ruído ambiente cheguem antes do fim do meu casamento. Sou cliente Prime. Colabora aí, parceiro.


Crônica de Antonio Prata, na Folha de São Paulo

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