domingo, 13 de dezembro de 2020

Vocês que se virem

 

“Amores, eu não sou de esquerda. Eu não sou de direita. Eu sou preta. Vocês que lutem pra ser linha de frente e tomar bala pra manutenção do poder brankkko. Bjos. Não me atormentem.”

Esta postagem de uma jovem negra (a quem vou chamar aqui de X) na rede social Facebook foi a manifestação mais esclarecedora que li nos últimos tempos sobre um posicionamento político. O post foi feito durante a recente eleição para a Prefeitura de São Paulo. A julgar pela fotografia em seu perfil, X tem entre 20 e 30 anos de idade.

Tão impressionante me soou a afirmação da moça (o texto é bem escrito, e ela se apresenta como jornalista e de formação técnica) que fui ler os comentários à postagem. O que mais me intrigava era o “vocês” a quem ela atribuía a opção de “ser linha de frente e tomar bala”.

Quem seria o “vocês”? Vesti no ato a carapuça da esquerda velha —não no sentido pejorativo, mas sinônimo de “envelhecida” porque não se renovou nem em quadros (sem negros) nem na visão de mundo. E muito menos na percepção da inquietação que se dá hoje no bojo da sociedade, principalmente no que diz respeito à juventude com consciência de sua “pretitude” como o mais precário dos lugares sociais.

Entre os comentários (a maioria de jovens negros) apenas um se contrapunha de modo incisivo à declaração de X. Era de um amigo virtual dela, a quem chamo aqui de Y. O jovem, na mesma faixa etária e morador da periferia de São Paulo, conforme pude deduzir, é branco e de convicções políticas à esquerda.

A discussão girava em torno das consequências, para o “povo preto”, de votar em Guilherme Boulos (candidato do PSOL) ou simplesmente não votar em nenhum dos dois candidatos (o outro era Bruno Covas, do PSDB, que foi eleito).

Assim reagiu Y: “[Seu post] coloca de maneira irresponsável os candidatos do mesmo lado. Só vai fazer com que o Covas vença. É necessário a derrubada de poder neoliberal e seu plano de governo nocivo, alinhado ao bolsonarismo. Só faz deixar as eleições na mão da elite porque, esses sim, vão sair de casa e votar em alguém que representa seus valores e esse alguém não é o Boulos”.

A resposta taxativa de X ao argumento de Y foi: “Você tá assumindo que só existem dois lados pra se escolher. Eu sou panafricanista, e só. Não estou desacreditando nada nem ninguém, pessoas adultas tomam decisões por si. Não tenho nada contra o Boulos, só acredito que pro meu povo a saída não está em ser tutelado por quem acha que classe é o problema da sociedade”.

Fui lendo e achando a discussão pertinente e reveladora. Do quê? Veremos adiante.

O amigo virtual Y não se deu por rogado e continuou: “A gente tá numa reta final de eleição, só há dois lados, duas possibilidades. Você superestima a inteligência dessas pessoas adultas que votaram no Bolsonaro. São manipuláveis, bebês com título de eleitor. Referente à crítica rasa sobre a luta de classes, seria interessante ler Marx, saberia que o capitalismo se beneficia do racismo, da desigualdade social, da repressão ao povo preto. Seu discurso é o do senso comum, no estilo pobre de direita, que votou no Bolsonaro”.

A essa resposta, X concluiu: “Amigo, não sou pobre de direita e muito menos de esquerda. Eu sou preta e não fecho com nada que venha desse sistema, direita e esquerda são os dois lados da mesma moeda e é isso. Tô suave. Em vez de perder meu tempo fazendo campanha pra homem branco, tô nos meus corre. Não é questão de proposta, o estado é uma unidade, quem quer que saia ou entre, sempre estará em prol da manutenção do poder”.

Pois então. O debate é revelador, de um lado, porque mostra que essa juventude negra pan-africanista, que adota pseudônimos africanos nas redes sociais, não está aí para brincadeira. Mostra que X não é uma alienada social. Pelo contrário, é muito jovem, não criou a esquerda que se tem hoje, não se reconhece nela, não vota para não legitimar o sistema que a própria esquerda velha ajuda a nutrir. Repudia a “tutela” do governo branco que desconsidera o racismo e reduz o problema social à questão de classe.

Pois então, a ironia amarga revelada pela declaração de X é esta: a ausência de seu voto, o pan-africanismo, sua descrença e seu ceticismo no sistema branco não impedirão, porém, que ela tome uma bala como consequência da violência do Estado branco contra sua pele preta.

Mas pelo menos ela não “lutou” para isso, não fez campanha. Ela vai sozinha atrás de seus “corre”, não conta nem mesmo com “vocês” que optam pelo lugar de conforto da linha de frente (branca).

Será X uma desobediente civil? Ou, para além disso, uma revolucionária? Pois então, a revolução é esta e ocorre agora, hoje, com desdém para a “linha de frente” onde estão “vocês” ocupados (sem saber?) em manter o poder racista. Vocês que se virem para entender. Vocês que lutem.

 

Texto de Marilene Felinto, na Folha de São Paulo

 

 

 

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