domingo, 27 de dezembro de 2020

Preferimos insuflar uma guerra civil a combater a desigualdade que o racismo sustenta

Durante muito tempo achei que o Brasil fosse a cópia escarrada do Sul dos Estados Unidos, sem a Guerra de Secessão ou antes dela. Aqui se defende o indefensável. Preferimos insuflar uma guerra civil a combater a desigualdade e abrir mão de privilégios que o racismo sustenta. Com o estranho agravante de que aqui os negros são maioria.

Durante muito tempo identifiquei o Brasil com o anacronismo dos estados sulistas confederados. Somos capazes de eleger um presidente e um governo que trabalham abertamente contra os direitos civis, a diversidade e as ações afirmativas, para dizer as coisas em termos eufemísticos e publicáveis. Os confederados daqui estão no poder.

Gente que sabe que, na prática, matar negros é crime inimputável, se não direito garantido por “excludentes de ilicitude”. Ou já saberíamos quem mandou matar Marielle Franco.

Os anos Trump deixaram claro, para quem ainda não tinha entendido, que a Guerra de Secessão não acabou. E que não há anacronismo nenhum. Os confederados lutaram para manter a escravidão. E o motivo da guerra continua a assombrar e dividir o país.

É a tese de Michael Gorra em “The Saddest Words” (as palavras mais tristes, ed. Liveright, 2020), sobre William Faulkner e a Guerra Civil americana. Não faltariam motivos para quem hoje quisesse cancelar o maior romancista americano do século 20 com base em suas declarações infames, incoerentes e nem sempre sóbrias.

Além de alguns dos romances mais geniais da história da literatura de todos os tempos, Faulkner também foi autor de cartas e frases que atestam posições contraditórias e muitas vezes indefensáveis sobre negros e a escravidão, a exemplo de quando equiparou supremacistas brancos à Associação Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor, como duas formas igualmente condenáveis de extremismo (vimos algo semelhante por aqui, recentemente, e conhecemos as consequências).

Quando, nos anos 1950, Faulkner pediu calma (“go slow”) aos advogados do processo de dessegregação do Sul dos Estados Unidos, o destemido James Baldwin não hesitou em denunciar a desonestidade da proposta depois de mais de 200 anos de escravidão e 90 de semiliberdade para os negros. “Eles nunca admitiram seriamente a insanidade de sua estrutura social”, Baldwin retrucou, definindo por tabela a tragédia dos personagens de Faulkner.

A “palavra mais triste” é o verbo reiteradamente conjugado no passado. É a fantasia acintosa de “E o Vento Levou”. O que Faulkner dramatiza, ao contrário, é a consciência inexorável dessa impostura e dessa violência, a fantasmagoria de um mundo obsceno, convertido em negação repetida, idealização de um paraíso perdido, ruína e mito.

O passado com o qual toda uma sociedade se recusa a acertar as contas volta como maldição, trauma de um fracasso reincidente, o indefensável enterrado em cova rasa.

Não é preciso nenhuma pirueta intelectual para entender que, no Brasil, é à negação perpetrada pelos que já não tinham caráter nem coragem para assumir suas responsabilidades no passado, e aos quais agora faltam dignidade e competência para assumir suas responsabilidades no presente, que melhor corresponde a farsa de homogeneidade à qual os espectros de Faulkner tentam se agarrar, em vão, contra a força da modernidade e as evidências históricas.

Temos no Brasil uma legião de confederados escarrados, insepultos, lutando por uma fantasia de atraso, agarrados ao poder pela mentira. Faulkner é uma força da modernidade irrompendo das entranhas do racismo. Seus livros são uma enorme pedra de contradição no caminho dessa gente.


Texto de Bernardo Carvalho, na Folha de São Paulo

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