quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

A terra de Clarice Lispector

 Era Clarice uma escritora carioca? Era. Não sou eu quem diz, mas Rubem Braga: "A ucrano-pernambucana Clarice Lispector é, na verdade, uma grande contista carioca, da boa e nobre linhagem de Machado de Assis".

Os argumentos do velho Braga —expressos na revista Manchete, em 1965— baseiam-se na leitura de "Laços de Família", reunião de histórias curtas publicada cinco anos antes. Ao analisar a obra de Clarice, ele põe de lado o que os críticos sempre ressaltaram —a introspecção das personagens, seus tumultos e confusões da alma— para valorizar a sensibilidade "às luzes, aos rumores, às brisas e à temperatura, a detalhes da paisagem e do ambiente".

Em "Feliz Aniversário", a nora de Olaria é a imagem do acanhamento, com o vestido azul drapejado que lhe disfarça a barriga, ao chegar para o ajantarado em Copacabana. A portuguesa que protagoniza "Devaneio e Embriaguez duma Rapariga" só poderia viver na rua do Riachuelo e beber vinho verde na praça Tiradentes. Nas mãos de Clarice, o Jardim Botânico --cenário do conto "Amor"-- transmuda-se em pesadelo real, cheio de vida e horror.

No romance "A Hora da Estrela", Macabéa vive numa vaga, quarto compartilhado com quatro balconistas, nos fundos do velho sobrado colonial que fica na "áspera rua do Acre, entre prostitutas que serviam a marinheiros, depósitos de carvão e de cimento em pó, não longe do cais do porto".

Em suas crônicas para o Jornal do Brasil, Clarice revela uma cidade desconhecida e uma gente que mora longe: "Na Zona Norte sopra uma vento quente, um siroco. No saguão cinco moças sem cor já tomaram o banho da tarde, os cabelos secam ao siroco. Têm olhos pretos, braços redondos, bocas desbotadas".

Nesta quinta (10), em que se festeja o centenário de nascimento da escritora que se tornou carioca, sua estátua no Leme terá um ar de felicidade nada clandestina.


Texto de Álvaro Costa e Silva, na Folha de São Paulo

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