quarta-feira, 29 de julho de 2020

De zoom em zoom, viramos zumbis

Sem problemas de espaço ou de crianças, acabo me dando bem com a quarentena; sempre fui de ficar em casa, ouvindo música e enrolando no computador.

Ainda assim, duvido de quem prevê grandes mudanças no regime de trabalho ou no sistema de educação a partir da pandemia.

Já faz tempo que se adota o home office em algumas áreas de atividade, como a minha, por exemplo. Mas a Covid foi mostrando, na verdade, desvantagens que não se imaginavam antes.

Nas escolas é onde isso se torna mais visível. O aluno de ensino médio ou de faculdade não tem como aproveitar direito as aulas no computador.

Há uma psicologia nisso.

Na vida normal, você acorda, toma o café da manhã, demora um tempo até chegar à escola, encontra os colegas, entra na classe, espera o professor tomar controle da situação.

Esse tempo “perdido” envolve uma preparação mental. A cabeça se esvazia, graças à rotina, e mesmo as rápidas conversas e brincadeiras entre os colegas de classe têm um prazo. Depois de cinco, dez ou 15 minutos, cada um faz a pergunta tácita: “Muito bem, e agora?”.

Durante a aula, acontecimentos imprevistos quebram o ritmo da exposição —e mais ajudam do que atrapalham. Uma porta bate; uma conversinha paralela pode suscitar a bronca do professor; alguém pede para ir ao banheiro.

Tudo para, e depois recomeça.

Perde-se tempo com tudo isso? Sim, mas tempo perdido é tempo recuperado. A atenção, interrompida por dois minutos, se renova em seguida, como uma planta que precisa de uma poda de quando em quando.

Pela internet, os acidentes são menores: um problema de microfone, alguém chegando mais tarde na conferência.

A regra, contudo, é tudo processar-se lisamente, na mesma toada, sem tantos solavancos.

As próprias interrupções se dão num mesmo espaço, numa mesma faixa de onda cerebral. Para quem está de fone de ouvido e com os olhos grudados na tela, o transe não se quebra. A pessoa olha e escuta, mas a mente fica em dormência.

É confortável; naturalmente, você pode desligar a câmera e continuar ouvindo a falação enquanto foi à cozinha ou ao banheiro. Mas a interrupção voluntária não tem um valor de surpresa capaz de te deixar mais acordado.

O cinema, que como a tela do computador é em duas dimensões, corrige essa desvantagem pelos movimentos de câmera, pelos cortes, pela mudança de cenário.

Na conferência pelo computador, um zumbi fala para outros zumbis. A aula, a palestra ou o encontro deixam de ser uma ocasião especial, com sua paisagem própria e sua aura no tempo, para se tornarem o preenchimento de um dia, que terá várias outras horas semelhantes.

O mais triste não é que estejamos, todos, nesse estado de semiconsciência, de achatamento espacial, de indiferença pastosa diante dos “conteúdos” que se sucedem.

Reduzidos a uma quantidade fixa de bits, os próprios “conteúdos” perdem valor, porque neles não se fez nenhum investimento psicológico. Em vez de pegar o ônibus ou o carro, em vez de vestir uma roupa adequada, simplesmente liguei o laptop.

A própria atividade, o próprio trabalho, a própria necessidade de uma conferência que passam a ter uma existência suspeita, ou sobrenatural.

Não há dia em que eu não receba convites e anúncios para alguma fala de “especialistas” do mercado financeiro; “webinars” se sucedem para discutir “cenários” pós-Covid. Executivos, consultores, analistas, assessores: desconfio que essa gente passe muito tempo se reunindo inutilmente para passar um ao outro seus “briefings” e encomendar seus próximos relatórios.

Tantos assessores e reunionistas não podem perder o emprego; têm de mostrar serviço. “Zombie managers”, disse o jornalista Matthew Lynn, há algum tempo. Do banco à farmácia, do plano de saúde ao museu, da corretora de imóveis à academia de ginástica, todos se ocupam com videoconferências.

Não há quem não ofe reça “dicas” do que fazer durante a quarentena, não há quem não promova pesquisas de satisfação do cliente, não se reúna para sessões de “planejamento estratégico” ou para rediscutir “programas de sustentabilidade”.

Talvez isso tenha sido o “normal” antes da pandemia. Com o confinamento, isso se torna mais visível. Todos se protegem da contaminação; ao mesmo tempo, prolonga-se uma existência semicomatosa, que é a de um trabalho vazio, mais adequado a mortos-vivos do que a pessoas reais.


Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo

sábado, 25 de julho de 2020

Max Tongue

Comprei um estimulador de clitóris. Aos 41 anos eu nunca havia adquirido ou sequer provado qualquer tipo de vibrador. Quem me recomendou a marca foi meu psiquiatra, cansado das minhas reclamações acerca do meu atraso orgástico, efeito colateral do antidepressivo. Ele me disse que trocou os remédios da esposa quatro vezes, até que lhe deu esse aparelhinho e todos os problemas foram resolvidos.
A caixinha chegou violada e, a essa altura da vida, eu que tinha inventado um pseudônimo durante a compra online, tive que informar três sobrenomes, CPF, RG e número de celular no SAC. O gerente, que para a minha surpresa não tinha voz de cafetão (e por que teria, meu Deus? É apenas um sex shop, eu deveria ser menos tia velha reaça), me ligou para explicar que os brinquedos sexuais importados (eu estava com a minha filha no colo nessa hora) precisavam ser testados antes da entrega, porque "imagina a senhora receber e não poder usar?". Essa frase me causou espécie. Primeiro o termo "senhora", depois a certeza presumida sobre minha urgência: "imagina o DESESPERO da SENHORA em receber e não poder usar?".
Já ia desligando, quando pensei em perguntar "testados como?". Mas entendi que se tratava apenas de verificar a funcionalidade da língua no quesito "sim, ela liga", e não no quesito "sim, dez das nossas funcionárias usaram a sua lingueta vibratória e gemeram até perder a consciência". De qualquer maneira, borrifei bastante álcool 70, até porque, se fosse uma jaca ou uma miniatura da Basílica de São Pedro, já é o que eu faria mesmo.
Sim, eu comprei um aparelho que simula uma língua, mas uma língua com 14 padrões de operação, sendo que nenhum deles é o clássico "peraí, meu maxilar travou". Achei mais girl power, ou senhora power, não comprar um pênis. Não quis associar nada masculino ao meu desbravamento. E, pra falar a verdade, seria ridículo ter um pinto na gaveta. Nunca vou entender. Não sou a Perpétua, irmã da Tieta.
Tranquei a porta do escritório, abaixei as persianas. Começo a pensar sem parar. Onde eu vou guardar isso depois? Se alguém achar, digo que é um estimulador de colágeno facial em formato de baiacu desinchado. Tive um ataque de riso. Claro, minha ironia sempre atrapalhou demais minha vida sexual. Espantava os rapazes ou os transformava em amigões. E agora estava estragando o clima comigo mesma. Eu precisava transpor essa barreira. Isso me ajudaria a resgatar tantas coisas. Era em nome da família que eu faria isso. Pensei na bandeira do Brasil com os dizeres "língua e progresso". Ou "ordem e linguada".
Posicionei o aparelhinho na função "intenso contínuo" e, antes de ajeitar uma almofadinha abaixo dos meus joelhos por motivos de "é melhor para a coluna", já alcancei o almejado prazer. Não demorou nem um minuto. Olha, amigos, com o advento da venlafaxina (que tanto bem faz para a minha ansiedade e depressão) eu não tinha um orgasmo em menos de 40 minutos desde a era Lula. Max Tongue reavivou em mim a esperança de dias melhores. E aí você me diz: "Ah, e com tanta coisa séria acontecendo você vai ficar falando de". Só que nem deu tempo de você terminar essa sua frase e eu já tive outro orgasmo.
Mandei 26 emojis de mãozinhas rezando para meu psiquiatra. Ele respondeu com 3 emojis de foguinho. Eu respondi com um emoji de língua e um gatinho assustado. Ele respondeu com emoji de palmas. Que médico maravilhoso!

Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo

Sérgio Ricardo ecoou ebulição social do Brasil da ditadura em músicas

No final da década de 1970, Sérgio Ricardo escolheu morar num barraco no Vidigal. Desde então, nunca deixou de ter um endereço no morro da zona sul carioca. Seu ateliê de pintor foi montado num estreito apartamento de três andares. Da mesma janela ele podia ver o mar e a favela, como se um desembocasse na outra —retrato do Rio de Janeiro, do Brasil e de sua própria trajetória.
artista morreu na na manhã desta quinta-feira, aos 88 anos, no Rio. Estava internado no Hospital Samaritano, desde abril. A causa da morte foi insuficiência cardíaca.
Integrante da primeira geração da bossa nova, cantando as belezas e as dores do amor, ele priorizou nos anos 1960 uma arte política, na música e no cinema. A trilha de “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, filme de Glauber Rocha, de 1964, é um dos pontos altos de sua obra. Por muito tempo ficou associado a seus embates contra a ditadura militar.
“Faria tudo de novo se fosse preciso. O ruim é que me calaram a voz. Quando veio a abertura, meu nome já tinha sido apagado da memória do povo”, disse a este jornal, há 12 anos.
Em 1967, produziu a cena que se tornaria a mais marcante de sua carreira. Irritado com as vaias da plateia do 3º Festival da TV Record, quando interpretava o samba “Beto Bom de Bola”, gritou “vocês ganharam!”, quebrou o violão e o atirou sobre os espectadores.
“O violão quebrado não atrapalhou em nada minha carreira. Orgulho-me do gesto, principalmente por ter ocorrido no momento certo. O que me atrapalha é a perseguição do jargão oriundo do gesto, ‘o homem que quebrou o violão’”, disse na entrevista.
De 2008, quando lançou o álbum “Ponto de Partida”, até 2019, ano do CD e DVD “Cinema na Música de Sérgio Ricardo”, ele fez vários projetos como músico, cineasta e pintor, se distanciando de rótulos e estigmas. Ficou reconhecido como artista consistente e múltiplo —segundo o amigo e compositor Maurício Tapajós, só não sabia dançar balé.
Nascido em Marília, no interior de São Paulo, em 1932, numa família de descendentes de libaneses, ele começou a trabalhar em São Vicente, no litoral. Ainda com o nome de batismo, João Lutfi, foi discotecário na Rádio Cultura e pianista em boates da cidade praiana. Aprendera a tocar no conservatório de sua cidade natal.
Aos 20 anos, se mudou para o Rio para se dividir entre rádio e noite, atuando em boates próximas à orla. Nesse contexto cultural e geográfico, era praticamente inevitável que se engajasse na bossa nova. Foi ator de radionovelas e programas de TV na década de 1950. O diretor da Tupi, Teófilo de Barros, não considerava João Lutfi nome para um galã. Surgiu Sérgio Ricardo.
Já com a nova alcunha, conheceu João Gilberto em 1958. Apesar da reclusão do baiano, nunca deixaram de ser amigos. Suas composições agradaram à chamada turma da bossa nova, e ele ganhou a oportunidade de um disco em 1960, “A Bossa Romântica de Sérgio Ricardo”. No repertório, amor, fossa, muita delicadeza e um sinal do que faria no futuro —“Zelão”, estranho naquele ninho, era um samba ambientado numa favela.
Seu trabalho foi se tornando mais e mais social, evitando ser panfletário. No cinema, estreou em 1961 como diretor do curta-metragem “Menino da Calça Branca”. A câmera ficou aos cuidados de seu irmão, Dib Lutfi, que logo se consagraria como um dos diretores de fotografia mais
importantes do cinema novo.
Encantado com “Barravento”, de 1962, Sérgio fez uma música com esse título e se aproximou de Glauber Rocha. Naquele ano, ainda mantinha vínculos com a bossa nova, tanto que participou do célebre show do Carnegie Hall, em Nova York, em 21 de novembro.
“A bossa nova foi generosa comigo adotando algumas de minhas composições românticas e alguns sambas.
Mas não fui fiel à sua continuidade, por ambicionar outros caminhos temáticos. Fui sempre muito rebelde para me atrelar a rótulos”, afirmou.
Depois da morte do estudante Edson Luiz, em 1968, compôs “Calabouço”, nome do restaurante em que ocorreu o assassinato. É a primeira faixa de seu disco de 1973, no qual aparece na foto de capa sem a boca, numa alusão à censura.
Juntando música e cinema outra vez, lançou os pernambucanos Alceu Valença e Geraldo Azevedo no seu “A Noite do Espantalho”, de 1974.
Gostava de apostar em artistas mais jovens. Em 1972, na coleção “Disco de Bolso”, do jornal O Pasquim, lançou a dupla João Bosco e Aldir Blanc —com “Agnus Sei”— num compacto que tinha, no lado A, Tom
Jobim apresentando “Águas de Março” pela primeira vez.
Ele se engajou ainda nas batalhas pela melhora do sistema de distribuição de direitos autorais no país. Era um dos líderes da categoria. Fez amigos dos quais nunca se afastou, como Chico Buarque e João Bosco, que participaram, a seu convite, dos shows “Tijolo por Tijolo”, no Vidigal.
Bosco escreveu nas redes sociais que Sérgio “foi um lutador pela cultura brasileira”. “Amigo de todas as horas. Turco querido, todo o morro entendeu quando Zelão chorou, saudade infinita.” E assinou Mohammed. Era como se tratavam. Chico era o Comendador Sem Vergonha.
Em outubro de 2019, Sérgio Ricardo quebrou um fêmur.
A partir daí, problemas de saúde crônicos se tornaram críticos —enfisema pulmonar, mau funcionamento dos rins e do coração. Em abril passado teve Covid-19, mas se curou em maio. Não pôde voltar para casa por causa da fragilidade geral do seu quadro.
Seus filhos Adriana, Marina e João —que participavam dos shows do pai, elas cantando e ele ao violão— se despediram nas redes sociais. “Sérgio será sempre mais que Sérgio, mais que João. Estará para sempre em toda a diversidade que nos cria.”

Texto de Luiz Fernando Vianna, na Folha de São Paulo

Legado de Sérgio Ricardo mistura muito bem poesia e solidariedade

Sérgio Ricardo era solidariedade infinita. Sua obra na música, no cinema, no teatro, na pintura tem origem nesse olhar verdadeiramente voltado para as outras pessoas. "Eu faço isso por uma questão uterina, se eu tivesse útero. Porque o meu negócio é o meu ser com o meu semelhante. Não é uma oportunidade que eu esteja querendo desfrutar. Isso aí é uma coisa minha, amanhã quando eu subir no paraíso, eu vou ficar falando daquele mendigo pobre coitado, ninguém deu bola pra ele, coisas assim”, me disse o Sérgio na entrevista para o documentário “Uma Noite em 67”.
A obra de Sérgio permanece. Os versos "Tristeza mora na favela/ Às vezes ela sai por aí/ Felicidade então/ Que era saudade sorri/ Brinca um pouquinho/ Enquanto a tristeza não vem", da música "Enquanto a Tristeza Não Vem” continuam ecoando e embalando de lirismo a dura realidade brasileira. Ou como diz o verso de “Esse Mundo é Meu”: “Mas acorrentado ninguém pode amar”.
Junto com Geraldo Vandré e Carlos Lyra, Sérgio trouxe a bossa nova para olhar de perto a realidade brasileira. Suas músicas têm harmonias belíssimas, mas não falam de sol, sal ou mar.
A cada enchente, lembramos de “Zelão”. “Todo morro entendeu quando o Zelão chorou/ Ninguém riu, ninguém brincou, e era Carnaval/ No fogo de um barracão/ Só se cozinha ilusão/ Restos que a feira deixou/ E ainda é pouco só/ Mas assim mesmo o Zelão/ Dizia sempre a sorrir/ Que um pobre ajuda outro pobre até melhorar”.
Em sua entrevista para "Uma Noite em 67", Chico Buarque disse: “Quando apareceu a bossa nova, eu reneguei o que havia antes. E o Sérgio Ricardo além de fazer parte do movimento, fazia aquelas músicas um pouco modernistas. Músicas sem rima. Eu adorava aquilo. Além disso, ele foi um dos primeiros a começar a fazer músicas de movimento social como ‘Zelão’. ‘Pedro Pedreiro’ tem um pouquinho a ver com isso. Tudo tem a ver com o Sérgio Ricardo nessa minha fase primeira certamente."
Sérgio deixou uma obra musical imensa que precisa ser revisitada. A trilha sonora de “Deus e o Diabo na Terra do Sol” é uma obra-prima. Vale a pena procurar o show “O Cinema na Música de Sérgio Ricardo”, produzido pelo Canal Brasil, que está disponível no YouTube.
Seus filmes também traziam essa mistura de poesia e solidariedade. Dirigiu “O Menino da Calça Branca”, jogou uma luz incandescente nas carreiras de Geraldo Azevedo e Alceu Valença com o ousado e criativo “A Noite do Espantalho”. Recentemente, com produção de Cavi Borges, lançou o filme “Bandeira de Retalhos”. O filme traz a história real de resistência dos moradores da favela do Vidigal que lutaram contra a remoção de suas casas.
Eu e Ricardo Calil tínhamos uma brincadeira durante as filmagens de “Uma Noite em 67”. A gente fez um bolão com a equipe para escolher o entrevistado mais simpático nos bastidores. Sérgio nos recebeu no apartamento que morou até o final da vida dentro da favela do Vidigal. Preparou comidas, comprou cerveja, papeou até o dia ir embora. O diretor de fotografia Jacques Cheuiche ganhou, na largada, o apelido de “sanduíche”. Venceu o bolão por unanimidade.
Mais pro final da entrevista, Sérgio disse: “Meu estado atual financeiro é comum. Eu poderia estar ganhando fortunas com a semente que eu andei plantando por aí. Mas não me incomoda o fato de eu não ter respostas materiais, eu não fiz com propósito de obter lucro de nada. O meu propósito primeiro era uma desova de coisas que eu tinha pra fazer ao longo de minha vida, que eu desovei numa boa, adorei ter feito tudo que fiz, não mudaria nada. Acho que estou em paz comigo mesmo. A vida, no final das contas, me deu coisas muito bonitas. Principalmente meus filhos. Eu tenho três filhos que me deram uma alegria que não tem preço. Não teria preço o resultado do meu trabalho financeiro, isso não teria interessado grande coisa como interessou, o que resultou da criação dos meus filhos”.
Era realmente comovente a relação dos filhos Marina, Adriana e João com o Sérgio Ricardo. Amorosos, guerreiros e incansáveis na luta para divulgar a obra e o imenso valor do pai.
Muita gente lembra do violão quebrado por Sérgio Ricardo no Festival de Música Popular Brasileira, em 1967. Impedido de cantar “Beto Bom de Bola”, ele foi brutalmente vaiado e perdeu a cabeça. Quase 50 anos depois, na filmagens de "Uma Noite em 67", Sérgio topou voltar ao estúdio. Feliz como uma criança, mostrou o novo arranjo. Dessa vez, Sérgio tocou a música até o final.
Os acordes dessa música estão pendurados do meu lado enquanto escrevo este texto. Coloquei numa moldura e pendurei na minha estação de trabalho para nunca esquecer desse momento. E nunca esquecer do talento e da generosidade de Sérgio Ricardo.

Texto de Renato Terra, na Folha de São Paulo

Mulheres negras seguem propondo uma sociedade mais justa e plural

Dia 25 de julho é Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha. A data é celebrada desde 1992, quando realizado o primeiro Encontro de Mulheres Afro-Latino-Americanas e Afro-Caribenhas em Santo Domingo, capital da República Dominicana, e marca a resistência e luta internacional da mulher negra no continente. No Brasil, também é celebrada nessa data Teresa de Benguela, líder quilombola de Quariterê no século 18, região de atual fronteira da Bolívia com o estado de Mato Grosso, onde era rainha coroada da comunidade de negros e indígenas.

A homenagem a Teresa de Benguela decorre da Lei 12.987 de 2014, sancionada no mandato da presidenta Dilma Rousseff. O legado da rainha é cada vez mais exaltado e presente em nossa sociedade. Como canta o samba da Barroca Zona Sul, campeã do grupo de acesso de 2020 no Carnaval paulista: “O nosso canto não é apenas um lamento/ A coragem vem da alma de quem ergueu o parlamento/ Do castigo na senzala à miséria da favela/ O povo não se cala, oh Tereza de Benguela/ Vem plantar a paz por essa terra/ A emoção que se liberta/ E a pele negra faz a gente refletir/ Nossa força, nossa luta/ De tantas Terezas por aí”.
Nesse dia da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha gostaria de trazer algumas reflexões para vocês. Historicamente, nascer negra no Brasil é nascer marcada. “Nós carregamos a marca”, afirmou Luiza Bairros, grande intelectual negra brasileira, cuja morte completou quatro saudosos anos neste último dia 12 de julho.
A marca é trazida também na canção “Maria, Maria”, de Milton Nascimento, verdadeiro hino das mulheres negras brasileiras, quando canta: “Mas é preciso ter força/ É preciso ter raça/ É preciso ter gana sempre/ Quem traz no corpo a marca/ Maria, Maria/ Mistura a dor e a alegria”.
Tal marca pode ser mais presente a depender do quão indisfarçável é a negritude, como também de quantas camadas se reveste de negro.
Outro dia estava em uma live com Sidnei Nogueira, babalorixá e doutor em semiótica pela USP, quando ele me contou sobre as camadas. O sacerdote observou que, quanto mais camadas de negro você assume, mais perseguido você será. Uma mulher negra, de candomblé com as contas à mostra, com seus cabelos assumidos, sua postura altiva de queixo erguido e sem culpa se reveste de camadas suficientes para despertar incômodos onde quer que passe. Porém há um outro lado: desperta também inspiração e desengasga o grito de axé preso pelas máscaras de silêncio do colonialismo.
A transformação está em curso, fruto da luta histórica de mulheres negras de Benguela a Bairros, na incessante e organizada luta pela manutenção da comunidade negra, apesar de tantos pesares nesse país colonial. Muitas de nossas crianças negras não passam químicos no cabelo, não se submetem a rituais de queima do couro cabeludo. Muitas se veem representadas em algum espaço, muitas não lavarão privadas de escritórios ou cuidarão dessas crianças brancas enquanto as suas ficam sem cuidado.
É sabido, contudo, que há muito mais a ser denunciado e transformado. Não é possível vivermos num país que mantém os maiores índices do mundo de feminicídio dessas mulheres; num país onde o abandono paterno seja tão comum e naturalizado, ao passo que essas mulheres morrem aos montes vítimas da criminalização de seus corpos em abortos femininos em todo o país. É necessário discutir abuso sexual infantil, uma prática muito mais comum do que se imagina, como também visibilizar os “filhos do feminicídio”, as crianças que ficam órfãs de suas mães assassinadas pelo homem que vai preso ou vai embora.
É necessário discutir a explosão carcerária feminina nos últimos anos pela falida e criminosa política de drogas desenvolvida no país. É necessário visibilizar os filhos do cárcere, crianças que perdem suas mães para julgamentos draconianos e não têm qualquer encaminhamento do Estado, entre outros temas urgentes e necessários.
É necessário discutir políticas públicas de habitação, saúde, educação para essas mulheres, programas de renda que quando são a elas destinados beneficiam toda a comunidade. São temas inesgotáveis para um artigo, o que mostra que estamos num caminho, mas há muito ainda a ser transformado.
Nesse dia de reflexão, denúncia e celebração da resistência da mulher negra no continente, termino o texto saudando as mulheres mais velhas, mulheres de minha geração e mulheres mais jovens por essa excepcional capacidade revolucionária da mulher negra, a qual mesmo sob tantas adversidades segue propondo um novo modelo de sociedade mais justa e plural.

Texto de Djamila Ribeiro, na Folha de São Paulo

quinta-feira, 23 de julho de 2020

Tensão entre o funk e a polícia vive novo auge com caso do MC Poze do Rodo


Há exatos oito meses, o MC carioca Poze do Rodo realizava um sonho. Cantou num evento oficial do Flamengo, time pelo qual é fanático, no Maracanã. O cantor, àquela altura, estava famoso com duas músicas —“Tô Voando Alto”, em que celebra o sucesso, e “Os Coringas do Flamengo”, que se tornou um dos hinos da torcida nas campanhas vitoriosas do time no ano passado.
Mas até a semana passada, Poze era considerado foragido pela polícia do Rio de Janeiro. Ele foi denunciado pelo Ministério Público depois de se apresentar, em março, no que seria o aniversário de um traficante na favela do Jacarezinho.
De acordo com o inquérito, Poze integra a maior facção criminosa do Rio, incita a violência, promove o grupo criminoso e participa de shows pagos pelo tráfico. Depois de ficar dias foragido, ele teve a prisão preventiva revogada, mas ainda está sendo investigado.
O funkeiro admitiu que já atuou como traficante entre 2015 e 2016, mas que não pratica mais os atos. Também confirmou que recebeu dinheiro pela apresentação que fez no Jacarezinho, mas que não sabia que se tratava de um show pago pelo tráfico.
“A denúncia é baseada no show no Jacaré, que o MC Poze participou. Logo depois, ele foi cantar numa boate em São Gonçalo, que anunciou o evento nas redes sociais. Provamos que, no Jacaré, era cumprimento de agenda, mais um show naquele dia. Não tem outras provas. As fotos [divulgadas, de Poze com armas] eram de quando ele era menor e morava na comunidade”, afirma Sílvia de Oliveira Martins, advogada do MC.
A investigação sobre Poze do Rodo marca um novo capítulo num embate histórico entre polícia, Judiciário e o funk. Ela vem meses depois da soltura de Rennan da Penha, condenado no ano passado, em segunda instância, por associação para o tráfico de drogas —o que ele nega. O DJ ainda vai ser julgado.
Os dois casos se somam às nove mortes no Baile da 17, em Paraisópolis, na zona sul de São Paulo, e à convocação de pelo menos dois DJs do 150 BPM para prestar depoimento na polícia no Rio, ambos no ano passado. Desde 2010, quando cinco MCs foram presos de uma só vez no Rio, acusados de associação para o tráfico e apologia de crimes, o funk não vivia um momento tão impactante de tensão com o poder público.
Em partes, pelo próprio legado de dez anos atrás. Na época, as UPPs, Unidades de Polícia Pacificadora, haviam ocupado as comunidades do Rio. Enquanto gênero musical, o proibidão —estilo de funk com letras sobre a vida na favela em meio à guerra às drogas, visto por muitos como uma glorificação do tráfico—, que existia desde os anos 1990, vivia seu auge.
Os MCs Smith, Tikão, Frank, Max e Dido, todos do proibidão, foram presos quando houve a ocupação do Complexo do Alemão, em novembro daquele ano. Eles foram acusados de fazer apologia do narcotráfico e de ter envolvimento com a facção Comando Vermelho.
São MCs do tráfico. Têm participação direta fazendo marketing dos criminosos e manipulam as letras das músicas para agradar aos traficantes”, disse a delegada do caso, Helen Sardenberg. “Levam mensagens de ridicularização ao trabalho da polícia para a juventude idolatrar os traficantes.”
Entre os indícios, estavam vídeos publicados em redes sociais com músicas que falavam de chefões do tráfico, como Fabiano Atanázio, o FB. Presos em dezembro de 2010, os MCs foram liberados dias depois, após um habeas corpus do Superior Tribunal de Justiça, o STJ, que considerou que o crime não era hediondo.
“Toda vez que a UPP se instavala, proibia o funk. Na comunidade de Santa Marta, chegaram a proibir o rap”, diz Carlos Palombini, professor da Universidade Federal de Minas Gerais e um dos maiores estudiosos do proibidão, que acompanhou o caso de perto. “O MC Smith, antes das invasões, relatou a mim em entrevista que já havia sido visitado por homens encapuzados, exigindo dele um pagamento de não sei quantos mil reais para que não fosse preso na ocupação.”
Segundo lembra Palombini, as prisões acabaram tendo caráter midiático. “Não prenderam nenhum chefe do tráfico. Todos fugiram. E essas prisões funcionaram como uma espécie de final melancólico dessas ocupações, de uma luta do ‘bem contra o mal’, nos complexos do Alemão e da Penha.”
Para o funk, o legado de 2010 foi uma arrefecida na produção de proibidões, além de uma diminuição dos bailes de comunidade. Se, naquela época, os principais alvos do funk eram as UPPs —e não facções rivais—, agora, as milícias começam a aparecer nas letras.
Há dois anos, Poze do Rodo ganhou espaço cantando proibidões em que fala de milícias. Mas o funkeiro ficou conhecido em todo o país por sua faceta pop. Entre novembro e dezembro do ano passado, ele teve suas duas músicas mais famosas, “Tô Voando Alto” e “Os Coringas do Flamengo”, entre as mais tocadas do Brasil no Spotify, fora as dezenas de milhões de plays em outras plataformas.
Essa mudança ficou mais evidente depois que ele foi detido em setembro passado, depois de cantar num evento em que 40 adolescentes foram flagrados com álcool e drogas. A apresentação aconteceu na cidade de Sorriso, em Mato Grosso, e o MC foi preso com outros três suspeitos, acusados de tráfico de drogas, incitação ao crime e corrupção de menores.
Na ocasião, a defesa do cantor afirmou que ele não tinha participação na organização da festa e que atuou só como músico. A argumentação é a mesma para o caso mais recente, em que, depois de cantar numa festa na favela, segundo sua defesa, fez outro show na mesma noite, cumprindo sua agenda.
“Sempre existiu [perseguição], mas agora tem as pessoas para expor na internet”, diz Rennan da Penha, DJ que hoje está numa das grandes gravadoras do país e acaba de lançar o DVD “Segue o Baile”.
“Quando eu estava foragido, lia comentários dizendo ‘ele que promove esses bandidos de fuzil aí’. Porra, eu que promovo? Eu que pego as armas e dou para os bandidos lá no morro? Eu que patrocino o crime? Olha que loucura! Tenho nada a ver com isso, só faço meu trabalho de DJ. Não preciso disso para nada. Como eu vou fazer isso tendo agenda cheia, mais de 30 bailes por mês?”
Rennan chegou a gravar uma música —ainda não lançada—com Poze do Rodo. “Ele mesmo já falou que teve envolvimento. Mas, a partir do momento que o moleque se desligou e foi para outra vertente, de viver da música, vai condenar o moleque por que ele estava cantando? É por isso que a gente fala que é perseguição.”
Os casos de Poze e de Rennan da Penha reacendem uma discussão antiga, sobre uma possível criminalização de músicos que cantam para criminosos, ou sobre criminosos. Diversos estudos falam em criminalização do funk desde o seu surgimento.
O marco inicial desse debate foi 1992, quando houve um arrastão na praia do Arpoador, no Rio. “Os bailes já aconteciam nos subúrbios, inclusive com confrontos com a polícia, mas não eram conhecidos pela elite cultural, pelos acadêmicos e a classe média alta”, diz Danilo Cymrot, estudioso de criminologia da Universidade de São Paulo e autor da tese “A Criminalização do Funk sob a Perspectiva da Teoria Crítica”.
Juliana Bragança, historiadora que acaba de lançar o livro “Preso na Gaiola”, com uma análise sobre o tratamento do funk pela imprensa na década de 1990, diz que a mídia passou a atrelar o termo “funkeiro” a crimes depois dos arrastões, que registraram pequenos furtos. “O termo funkeiro substitui tudo em determinado momento —pivete, bandido, traficante. Funkeiro passa a ser sinônimo disso.”
No livro “O Funk e o Hip-hop Invadem a Cena”, de 2000, o professor Micael Herschmann, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, faz um levantamento de menções ao funk nas páginas dos grandes jornais. Até 1992, o ritmo musical era pouquíssimo falado, mas aparecia sempre nos cadernos de cultura. De 1992 em diante, a maior parte das reportagens estão nos cadernos policiais ou de cidades.
Na década de 1990, o funk cresceu e se ramificou, por exemplo, em vertentes como o melody, o funk romântico de Claudinho e Buchecha. O “Rap das Armas”, dos MCs Junior e Leonardo —regravada por Cidinho e Doca—, inspirou a abertura de uma CPI no Rio em 1995, para investigar as ligações do funk com a comercialização de ilícitos.
As investigações não conseguiram provar essa conexão e, no ano seguinte, uma lei municipal reconheceu pela primeira vez o gênero como “a atividade cultural de caráter popular denominada bailes funk”. Em 1999, outra CPI, desta vez estadual, foi aberta, com o objetivo de “investigar os ‘bailes funk’ com indícios de violência, drogas e desvio de comportamento do público infanto-juvenil”.
Na mesma época, o deputado Sivuca, um policial militar do Rio, propôs um projeto de lei que proibia “a realização de bailes ou quaisquer eventos do tipo funk no território fluminense”. O documento definia um baile funk como “toda a atividade animada por ritmos derivados de outros similares estrangeiros e remixados, áudios e imagens que incitem à violência”.
Essas discussões acabaram gerando uma lei estadual em 2000, que não proibia, mas previa diversas restrições e exigências para a realização dos bailes. Em 2004, uma outra lei reconhece o funk como uma manifestação cultural, agora em âmbito estadual.
Em 2008, uma nova lei trazia ainda mais exigências para a realização dos bailes, como câmeras filmando toda a festa, alvarás da polícia com antecedência de meses e instalação de portas com detectores de metais. Na prática, as medidas não proibiam, mas inviabilizavam a realização dos bailes.
A resposta veio em setembro daquele ano, com dois projetos de lei aprovados. Um define o funk como movimento cultural e o outro revoga essa lei anterior. Ambos foram encabeçados por Marcelo Freixo, então deputado estadual pelo PSOL.
Em 2017, houve um novo projeto de lei, este não aprovado, a fim de tratar o funk como “crime de saúde pública à criança, aos adolescentes e à família”. “O funk faz apologia do crime, fala em matar a polícia. Sou pai de família e se eu não me preocupar com o futuro, amanhã só teremos marginais”, disse o empresário paulista Marcelo Alonso, autor do projeto, ao UOL.
No centro do debate, está o crime de apologia. “Há quem diga que é um crime inconstitucional. Nessa visão, nossa Constituição não admitiria o crime de apologia, justamente porque ele viola princípios como o da liberdade de expressão”, diz Cymrot. “Gosto de citar o jurista Nilo Batista, que diz que, se a mensagem não é suficiente para fazer com que uma pessoa cometa um crime, ela está dentro do âmbito da liberdade de expressão.”
Existem também discussões sobre até que ponto uma obra cultural —seja um filme, uma música ou um videogame, por exemplo— são definitivos para influenciar o comportamento de uma pessoa. Segundo Cymrot, pessoas de diferentes origens podem interpretar essas mensagens de maneiras distintas.
“Quem, por exemplo, é de uma favela e está acostumado desde cedo a conviver com a violência policial, um proibidão que fala disso vai ter um sentido completamente diferente do que para uma pessoa que nunca sofreu isso na pele —e pode se sentir escandalizada por um proibidão que defende a violência contra policiais.”
O pesquisador ainda detalha a diferença entre exaltar a figura de um criminoso e exaltar essa mesma figura pelos crimes cometidos por ela. “Se você exalta a figura de um traficante porque ele traz, por exemplo, melhorias para uma comunidade, não é apologia do crime. Não podemos esquecer que vários MCs foram criados juntos com traficantes, são amigos de infância.”
Mesmo num momento de exposição midiática inédito para o funk, o estereótipo da figura do funkeiro ainda é determinante nas discussões sobre criminalização.
“Se um artista de MPB canta músicas em que o eu-lírico é um bandido sanguinário, dificilmente alguém vai se sentir ameaçado por aquilo, porque entende que é um personagem. A pessoa não vai ser encarada como capaz de fazer aquilo que está cantando. No caso dos funkeiros, não. As pessoas têm dificuldade de reconhecer o funk como uma forma de arte, em que você separa o cantor do eu-lírico. Então, tudo que os funkeiros cantam pode ser visto como confissões de crimes —e não como um exercício de imaginação, que é próprio do mundo das artes.”

terça-feira, 21 de julho de 2020

Os militares e o genocídio indígena

O levantamento mais recente feito pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) informa que 542 índios morreram de covid-19 e 16.656 foram contaminados. A doença atingiu 143 etnias diferentes espalhadas pelo Brasil.
Com base nos números do Ministério da Saúde sobre pessoas internadas, o demógrafo José Eustáquio Diniz Alves calculou que os indígenas contaminados tem 98% a mais de chances de morrer do que pessoas de cor branca. Também comparados aos brancos, negros tem 46% e pardos 72% mais chances de morrer devido à Covid-19.
Epidemias nas Américas começaram com o desembarque dos primeiros europeus em praias tropicais. Surtos de varíola, sarampo, gripe, cólera, coqueluche e outros males dizimaram por completo povos indígenas e deixaram outros à beira da extinção. É o que o antropólogo norte-americano Henry Dobyns chamou de “cataclismo biológico”.
A vulnerabilidade dos índios deveria ter ensejado ação decisiva do Estado para evitar que o vírus chegasse às aldeias. O que se vê, ao contrário, é o incentivo para a invasão de grileiros e garimpeiros, que levaram a doença para dentro das terras indígenas.
O governo foi capaz de covardia maior. Vetou o fornecimento de água potável para os índios; despachou um carregamento de cloroquina para algumas aldeias e disse que bebessem água dos rios. Um deboche quando se sabe que dezenas de rios estão contaminados com o mercúrio dos garimpos ou com agrotóxicos.
Os militares —que controlam o Ministério da Saúde— não gostaram quando o ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes os associou a um genocídio. O dicionário oferece muitos sinônimos: extermínio, chacina, massacre, matança, carnificina, eliminação, extinção, exterminação, aniquilação, aniquilamento, destruição, mortandade, morticínio.
Que eles escolham qualquer um e durmam em paz com suas consciências. Se conseguirem.

Texto de Cristina Serra, na Folha de São Paulo

A ema não é o primeiro animal a ensinar uma lição ao povo brasileiro

O presidente da República passeava pelo jardim do Palácio da Alvorada. Queria mostrar à população que estava se recuperando de uma doença que tirou a vida de 80 mil pessoas no seu país, em parte por causa de sua gestão desastrosa.
Ele se aproxima de uma ema, desrespeitando, mais uma vez, o distanciamento social. Ao tentar alimentar a ave, ela reage com uma vigorosa bicada que o atinge em cheio.
O momento é flagrado por fotógrafos e jornalistas e a ema logo é alçada ao status de ícone antifascista.
Na semana seguinte, tentando provar que o ataque foi um caso isolado, o presidente volta a alimentar as emas, fazendo uma transmissão ao vivo em sua página do Facebook, quando é bicado novamente pelo destemido animal.
Se estivessem vivos, Esopo e La Fontaine certamente ficariam fascinados por esta narrativa com claro propósito educativo, cujos personagens são animais com características humanas —e vice-versa.
É uma fábula pronta.
Quando crianças, aprendemos com o sapo que topou atravessar o rio levando um escorpião no lombo, com a formiga workaholic que estocou mantimentos para o inverno e com a arrogante lebre que perdeu para o azarão da corrida, a tartaruga.
Eis que, na vida adulta, é chegada a hora de aprender com esta ave de grande porte que lavou a alma de muitos brasileiros com sua postura combativa perante um presidente autoritário que tentou domesticá-la oferecendo migalhas.
A ema não é o primeiro animal a roubar a cena no Planalto, e a ensinar uma valiosa lição ao povo brasileiro com suas atitudes.
No ano passado, um cavalo assustado —talvez com os rumos que o Brasil estava tomando— tentou impedir a posse de Jair Bolsonaro, marchando de ré diante do Rolls Royce presidencial, nos alertando para os retrocessos que estariam por vir.
Em mais uma alegoria de dar inveja aos fabulistas, um cachorro mordeu a mão direita do ministro da Economia, Paulo Guedes.
Ainda em Brasília, uma naja desbaratou um esquema de tráfico internacional de animais silvestres ao picar o estudante de veterinária que a mantinha em cativeiro ilegal.
As semelhanças com o caso da ema talvez não sejam mera coincidência.
Ao leitor, é lançado o desafio: qual a moral da fábula?

Texto de Manuela Cantuária, na Folha de São Paulo

quinta-feira, 16 de julho de 2020

Cama arrumada, alívio na pandemia

Dia desses, depois de sentar para almoçar às 17h na minha cela doméstica (estamos todos em prisão domiciliar), meio sem noção da hora (pois qualquer hora é hora de comer, de dormir, de varrer, menos de sair), ligo a TV.

Tentando relaxar diante da tela, coisa que em outra época seria incomum naquele horário, comecei a ver a segunda temporada da série brasileira “Coisa Mais Linda”, na Netflix.

Uma injeção de bossa-nova e de Rio de Janeiro na virada dos anos 1960, coquetel na veia capaz de acalmar até uma manada furiosa em disparada.

E aí aparece o Copacabana Palace, com a cara que tem hoje (passou por uma reforma há poucos anos), mas maquiado como se estivesse há 60 anos, reluzindo no esplendor nos tempos em que o Rio ainda por cima bebia as últimas glórias de ser a capital federal.

A imagem do hotel, inclusive de ambientes internos que já tive a sorte de conhecer, evocou-me aquilo que todos os hotéis têm em essência, sem precisar ser necessariamente um hotel icônico ou de luxo.

Trata-se da noção quase mágica de estar num universo onde podemos prescindir das preocupações comezinhas. Onde podemos ter a sensação de viver e agir impunemente. Onde quase tudo se resolve sem precisar que sejamos nós a resolver.

Num momento em que a maioria de nós (falo da classe média que compõe o grosso dos leitores aqui) tem que enfrentar as vicissitudes do cotidiano num nível de detalhes a que não estávamos habituados, acho que nunca foi tão verdadeira uma afirmação que li certa vez, numa entrevista de Rogerio Fasano, o restaurateur transmutado também em hoteleiro.

Dizia ele algo como: “Se uma pessoa vai a um hotel e fica feliz porque ali se sente em casa, então alguma coisa este hotel tem de errado”.

De fato, com ou sem pandemia, um hotel não é a reprodução da própria casa —no mínimo porque cada hóspede tem uma casa, uma família, um estilo de vida, impossível de ser reproduzido para todos.

O denominador comum a todos os hóspedes é o desejo de encontrar conforto e esta sensação que chamei de impunidade diante das pequenas tarefas do cotidiano.

Claro, quanto melhor for o hotel e o serviço, mais realizado será este modesto sonho. Mas nem é preciso tanto.

De muitas experiências que já tive em hotéis, me lembro com especial carinho de um pequeno estabelecimento em Paris: o hotel Fondary, na rua de mesmo nome.

Eu o frequentei durante um bom tempo, durante os cinco anos em que, depois de período no Japão, minha amiga Mari Hirata esteve uma temporada de volta à França (onde morara antes).

Nessa época, a cada vez que ia a Paris —ou mesmo a outros países europeus— separava ao menos um ou dois dias para encontrá-la. Apesar de seus convites para que ficasse em sua casa (onde vivia com o marido e dois filhos), sentia-me mais à vontade tendo meu próprio canto, um hotel.

Assim encontrei o Fondary, a poucos quarteirões de onde Mari morava, no 15º distrito. Sendo uma região pouco turística, o hotel era barato e fazia parte do guia de hotéis de charme de Paris (onde fiz minha procura), provavelmente por seu ambiente acolhedor que incluía um pátio onde eu podia tomar café ou passar horas trabalhando.

Virei um habitué. Nos poucos dias de cada estadia, passava a maior parte do tempo cozinhando na casa da Mari, ou fazendo compras em mercado, ou indo a restaurantes, ou encontrando outros conhecidos. A volta a meu quartel-general, com cama arrumada e desjejum me esperando manhã seguinte, eram o luxo simples de que eu precisava.

Em condições normais, sem uma pandemia catastrófica, as pessoas viajam em busca de experiências diferentes daquelas do cotidiano. O hotel tem que ter esta cabeça: a de propiciar este intervalo na normalidade do hóspede, poupá-lo de certos afazeres.

Se puder enchê-lo de mimos e luxos, ainda melhor. Mas, pressionados pelo peso do cotidiano que nos sufoca, estamos menos exigentes: uma viagem será ótima se proporcionar novas experiências de paisagens, gastronomia, cenários urbanos.

Mas suspeito que, hoje, o simples estar num hotel, sem nem sair para conhecer o destino, promete ser uma experiência emocionante. Um alívio.

Texto de Josimar Melo, na Folha de São Paulo

segunda-feira, 13 de julho de 2020

Tem que doer!

Dor é o que eu estou sentindo agora, pois é tão difícil entender este país! Também doía quando criança eu apanhava e às vezes não entendia o porquê. Confesso que mamãe não foi fácil! Ela sempre teve esperança de me manter no bom caminho. Trabalhava de manhã à noite, controlava a disciplina dentro e fora de casa mas, rebelde, segui minha estrada.
Certamente, a minha rebeldia foi devida à falta da figura paterna, como disse o ministro... A ausência de meu pai deve ter sido decisiva e o inimigo atacou! Pondero então com Albert Camus, escritor argelino, que escreveu: “Não é o sofrimento das crianças que se torna revoltante em si mesmo, mas sim que nada justifica tal sofrimento”.
Até hoje sou criança e rebelde, pois mamãe me diz ainda que eu não tenho remédio. Como cientista, pensei em acabar com essa dor cotidiana. Considerei tomar cloroquina, pois vi o presidente outro dia mostrando umas destas caixinhas na internet. Como este fármaco não tem aval científico para o vírus que nos causa tanta dor de cabeça … desisti. Lembrei daquela publicidade antiga que dizia "Tomou Doril, a dor sumiu!" Optei, então, pelo Doril! Agora uso todos os dias em prevenção da dor.
Nesta semana senti o meu caso piorar a cada notícia veiculada. Vi na televisão um imagem muito bizarra. O segundo homem do Ministério da Saúde enxotando de uma reunião um garçon que só tentava fazer o seu trabalho. Com gestos bruscos de braço, gritava "Sai daí. Eu falei 'não'. O que você não entendeu?". Eu, da minha parte não entendi nada. Parece que este homem é coronel de Forças Especiais do Exército. Se ele dá ordens desta maneira, decerto mistura autoridade e autoritarismo.
Senti uma dor súbita e me lembrei daquele fulano, na sala de espera do aeroporto, que com a máscara ostentada como uma coleira, andava de um lado para outro usando o seu telefone celular, falando alto e, provavelmente, cuspindo vírus por toda parte…
Eu, como não apanhei que chegasse da minha mãe, chamei o sujeito pedindo que por favor colocasse a máscara e pensasse nos outros à volta. Ele, além de me dizer que estava vindo de uma estação de esqui isenta de vírus por causa do frio (!), completou com o "Você sabe com quem está falando?".
Que agonia ao concluir que esse pateta brasileiro, cheio de arrogância, acredita que é qualquer coisa neste mundão de Deus… Como diria o Mário Sérgio Cortella, filósofo e educador, um indivíduo como esse é o "vice-treco do sub-troço".
Tomei Doril, mas como a cloroquina, não fez efeito. Lembrei das pessoas que lutam dia e noite para nos livrar da curva ascendente de infecções e mortes pela Covid-19, que as autoridades brasileiras despudoradas tentam ocultar do mundo.
Pensei na agenda ambiental do governo, na Amazônia e sua "Mata Atlântica" e logo na lei de medidas preventivas contra o coronavírus nas terras indígenas, que o presidente sancionou com vetos ao acesso à água potável, a materiais de higiene, leitos hospitalares e respiradores mecânicos.
Este povo brasileiro, os quilombolas e outros povos tradicionais também não terão direito à verba emergencial… Talvez Bolsonaro não tenha apanhado que chegasse da mãe dele, pois não aprende nem com calamidade pública!
A dor se agravou com a decisão do presidente da suprema corte brasileira de mandar as forças-tarefa da Lava Jato compartilharem dados sigilosos de investigações com o procurador-geral da República! Sabem o que é isso? Medo de que a Lava Jato possa passar a investigar pessoas com foro privilegiado.
Soltei um palavrão daqueles bem picantes e conquistei um tabefe bem ardido de minha mãe. Num rompante de rebeldia pedi: "bate mais, mamãe, pois com certeza ainda não estou disciplinada que chegue!".

Texto de Paula Minoprio, na Folha de São Paulo

A sorte do Queiroz, abençoado pela calvície, foi nunca roubar xampu

Noronha, Noronha, que vergonha. Poesia numa hora dessas? Não, a decisão do presidente do Superior Tribunal de Justiça, o juiz Noronha, que concedeu prisão domiciliar a ele, o Queiroz.
O homem, que já passou mais de um ano em domicílio alheio, agora vai para casa curtir seu futebolzinho na TV, seu churrasquinho no domingo, seu bom pagode e todas as demais regalias de um preso nada comum. Nasceu virado para a Lua esse Queiroz.
Queiroz vai para casa por causa do coronavírus. Para não se expor ao perigo da contaminação, já que tem câncer. Era por isso, inclusive, que estava mocosado em Atibaia, justificou seu BFF, Jair Bolsonaro. Ficava mais prático para ir ao hospital, o Albert Einstein, a 80 quilômetros dali. Carne no espeto e piscina faziam parte do tratamento.
Para o Queiroz não ficar sozinho, coitado, o juiz Noronha pensou lá na frente e concedeu um habeas corpus para a dona Queiroz, que estava foragida e se apresentou na noite de sexta para aproveitar seu benefício.
A supracitada agora pode se estabelecer confortavelmente no sofá para assistir a sua série preferida, “Orange Is the New Black”. O doutor Noronha, que já negou a domiciliar para outros apenados expostos ao vírus, decidiu com o coração. É que alguém precisava alcançar os remédios para o Queiroz, e ninguém melhor que a mulher para substituir os agentes de Bangu 8.
Menos sorte que o Queiroz teve o rapaz que furtou dois frascos de xampu, dez contos cada um. Apesar do delito sem violência, sua prisão domiciliar foi negada por não ser a primeira vez que roubava
—sentença do juiz Felix, companheiro de STJ do doutor Noronha. Com o que concordou a ministra Rosa Weber, do STF.
Abençoada a calvície do Queiroz, que nunca o fez meter a mão em xampu, só no dinheiro dos outros. A história dele poderia ser bem diferente.
Quem não teve sorte mesmo foi o jovem preto Lucas Morais de Trindade, preso com menos de dez gramas de maconha. Condenado a cinco anos e quatro meses, com todos os recursos negados, morreu de
Covid-19 em Manhumirim, interior de Minas. Acontece muito a quem não frequenta os amigos certos. E os filhos dos amigos. Se não nascer branco, então, aí desiste.
Enquanto isso, Queiroz e sua excelentíssima riem da nossa cara lá no seu ninho de amor. Mas isso todo mundo já sabe, todo mundo já viu. É só o Brasil.

Texto de Claudia Tajes, na Folha de São Paulo