CRÍTICA LIVROS/MEMÓRIAS
Obra explora autismo a partir da ausência
Allen Shawn escreve sobre a irmã gêmea, enviada aos 8 anos para instituição dedicada a pessoas com deficiência
A decisão da família traduz como o autismo era visto na época: uma desgraça sobre a qual pouco se havia de fazer
O compositor Allen Shawn escreve, em "Gêmeos", sobre sua irmã autista e, em grande parte, sobre a ausência dela. Esta é a notável particularidade do livro.
Allen nasceu cinco minutos depois de Mary, em 1948. Aos oito anos, ela foi enviada pelos pais para uma instituição dedicada a pessoas com deficiências. Nunca mais voltou a viver em casa.
"A partida de Mary de nossa vida diária foi como uma morte pela qual não se fez luto", assinala ele. O percurso do livro de memórias é para preencher esse "espaço em branco", como ele diz. Assume, porém, que esta é uma empreitada impossível de se completar.
A obra traz muitas informações sobre o autismo, transtorno que afeta cerca de 1% da população mundial e que é marcado por problemas de comunicação, socialização e comportamentos repetitivos. Mas o autor as comenta de um ponto de vista pessoal, o de alguém em busca de entender a irmã e a si mesmo.
Não há informações sobre o cotidiano de Mary, pois o irmão não pôde acompanhá-la, estando com ela, ao longo dos últimos 60 anos, apenas em visitas esporádicas. Perpassa toda a narrativa essa distância, ainda mais angustiante por se tratar de gêmeos.
Lançado nos EUA em 2011, o livro tem especial interesse para o público americano, pois Allen é irmão de um importante ator e dramaturgo, Wallace Shawn, e filho de William Shawn, editor por 35 anos da revista "The New Yorker".
O fato de uma família provida de recursos materiais e intelectuais ter optado por afastar a filha deficiente traduz como o autismo era visto em meados do século passado: uma desgraça sobre a qual pouco se havia de fazer.
Ressalte-se que, de acordo com o livro, Mary viveu em instituições de qualidade, com bons cuidados e sem violências. Mas o quanto sentiu e sofreu a ausência de pais e irmãos? Allen se faz esta pergunta, mas não tem como saber a resposta.
Classificado em 1943, o autismo foi considerado por muito tempo um transtorno derivado de uma deficiência afetiva. A mãe, sobretudo, seria a responsável.
METÁFORAS
O psicólogo que levou mais longe essa ideia terrível –desmontada depois pela comprovação de que a base é genética– foi Bruno Bettelheim, curiosamente colaborador da "New Yorker" e admirado por William Shawn e sua mulher, Cecille.
"Gêmeos" não é um acerto de contas. Mas Allen –em meio a problemas de estilo, como excesso de metáforas e minúcias sobre a própria vida– traça um perfil dos pais para tentar compreender por que eles tomaram as decisões que tomaram.
Cecille, escreve o filho, pode ter aceitado a internação de Mary para, com isso, manter o marido por perto, sem a casa convulsionada pelo autismo. Não adiantou: William Shawn cultivou por 40 anos um relacionamento com a célebre repórter Lillian Ross. Cecille sempre soube.
"Nossa família conseguira fazer da negação uma quase religião", aponta ele. Allen diz carregar a culpa por ter sido "poupado" da convivência com a irmã. Ressalta a estranha simbiose que preserva em relação a ela. E relata encontros recentes dos dois.
Cita o escritor japonês Kenzaburo Oe, Nobel de literatura e pai de um jovem autista, para concluir como é menos sofrido, apesar das dificuldades, ter por perto as pessoas amadas. O conforto da ausência é pior.
GÊMEOS
AUTOR Allen Shawn
TRADUÇÃO Caroline Chang
EDITORA Companhia das Letras
QUANTO R$ 44,90 (248 págs.)
AVALIAÇÃO muito bom
AUTOR Allen Shawn
TRADUÇÃO Caroline Chang
EDITORA Companhia das Letras
QUANTO R$ 44,90 (248 págs.)
AVALIAÇÃO muito bom