Talvez seja um engano típico de necrológios dizer que Sean Connery ficou famoso por ter sido o primeiro intérprete de James Bond no cinema. Talvez seja mais certo dizer que James Bond ficou famoso porque seu primeiro intérprete foi Sean Connery, que morreu neste sábado, aos 90 anos.
Sim, há tudo mais —a abertura, as “Bond girls”, começando por Ursula Andress, os “gadgets”, os carros, as armas inesperadas. Mas vale perguntar o que teria sido de 007 se em vez de Connery estivesse na tela o simpático Roger Moore, como queria o criador do personagem, Ian Fleming.
É verdade que Moore já tinha uma carreira consolidada àquela altura, em especial na TV, em que brilhou como “Ivanhoé” e depois em “Maverick”, tudo na virada dos anos 1950 para os 1960, enquanto Connery ainda tateava o cinema.
Mas tomemos o que veio depois. Em 1971, Connery se encheu de fazer o papel e passou o bastão a Moore, que foi Bond sete vezes e só parou porque, beirando os 60 anos, já não tinha as qualidades atléticas que o papel requeria. Não há por que desfazer de Moore, longe disso. Mas no período em que foi James Bond o filme que mais chamou a atenção foi mesmo “007 – Nunca Mais Outra Vez”, um Bond meio pirata em que o ator era, justamente, Connery.
Mesmo no tempo em que foi 007, Sean Connery deixou claro que não se acomodaria ao papel. Tanto que topou ser o ricaço Mark Rutland do hitchcockiano “Marnie, Confissões de uma Ladra”, de 1964. Não só ricaço como aparentemente tolo, porque o imbatível sedutor de “O Satânico Dr. No” de repente se arrastava aos pés da ladra Tippi Hedren e, em vez de a mandar para a cadeia, como sugeriria qualquer bolsonarista, tentava entender o que se passava naquela cabeça tão bela quanto estranha.
Da tensão entre os dois resultou essa obra-prima de sexualidade reprimida, de tensão sem fim entre dois amantes paradoxais. Mas isso não bastaria para Sean Connery.
Pouco depois ele estava na Líbia, mais precisamente em “A Colina dos Homens Perdidos”de 1965. Era plena Segunda Guerra e, no filme de Sidney Lumet, ele não era o herói imbatível —estava numa prisão britânica, onde foi parar por desobediência a ordens de cima (que ele achava absurdas, o que é outra história).
Mais um pouco e ele se arriscava no Velho Oeste e, em companhia de Brigitte Bardot, fazia “Shalako”, de 1968, um faroeste menos que mais ou menos do então decadente Edward Dmytrik. Em 1970 ele virava mineiro na Pensilvânia e líder dos Molly McGuires, organização secreta de autodefesa dos irlandeses que ali trabalhavam.
Como se vê, o glamour de James Bond não embaçou sua visão ou limitou seus horizontes. Pouco depois, em 1973, ele estava no futuro, bem futuro, na pele de Zed, em “Zardoz”, belo filme de John Boorman que fracassou nas bilheterias.
Com tudo isso, admitamos, entre bons filmes e outros nem tanto, a carreira de Sean Connery até certo ponto patinava. E voltar a James Bond em 1983 parece ter sido uma bela decisão. Não só por o levar de novo à linha de frente, em matéria de exposição, como por exorcizar de vez o velho herói de sua juventude.
É a partir daí que começa uma formidável série de sucessos. Por vezes pessoais, como “O Nome da Rosa”, de 1986. Ali ele foi William de Baskerville, o frade franciscano e detetive que investiga uma série de mortes num convento beneditino. O filme saiu do romance de Umberto Eco, e a escolha de Connery para o papel foi perfeita. Ele é uma espécie de 007 que tinha o formidável intelecto como arma para combater a Inquisição.
Há razão para perguntar de novo o que seria de “O Nome da Rosa” sem Sean Connery. Talvez uma ruína orquestrada pelos mil equívocos de Jean-Jacques Annaud ao adaptar o inteligentíssimo, belíssimo romance. Mas Annaud acertou na escolha de seu ator central —o resto estava salvo.
De “Os Intocáveis”, de 1987, não se poderá dizer que Connery salvou o filme. O trabalho de Brian De Palma podia destoar de seus grandes momentos, parece mesmo uma encomenda, nem por isso deixa de ser admirável ponto por ponto. Ainda assim, o grupo do incorruptível porém ingênuo Eliot Ness, papel de Kevin Costner, precisava de um comparsa cascudo para combater os mafiosos da Chicago.
Esse comparsa cascudo era um guarda de rua, honesto e intratável, de origem irlandesa, Jim Malone, isto é, Sean Connery. E o resultado é que Malone acabou por se tornar o grande personagem do filme, maior que Eliott Ness, maior que o Al Capone de De Niro.
O fenômeno se repetiria dois anos depois, quando Steven Spielberg introduziu Connery, na pessoa, do professor Henry Jones, o pai de Indiana Jones, papel de Harrison Ford, em “Indiana Jones e a Última Cruzada”, de 1989. E a série que ameaçava cair em decadência ganhou uma nova (embora efêmera) existência.
De certa forma, o círculo se fechava. “Os Intocáveis” rendeu a ele um Oscar de melhor ator coadjuvante; em 1991, recebeu a Legião de Honra do governo francês. Nove anos depois, a rainha da Inglaterra teve de se deslocar até a Escócia para conceder ao ator o título de “sir”. Muito justo pelos serviços prestados a Sua Majestade como James Bond.
Connery se vestiu com o típico kilt para receber a honraria. Que ficasse claro, para Elizabeth 2ª e para o mundo que ele continuaria a defender a independência da Escócia.
O mito de Sean Connery triunfou sobre o mito de 007. Desde então, aos poucos, discretamente, já podia se afastar de um cinema que já não tinha papéis para um ator como ele e viver sua aposentadora nas Bahamas, onde morreu em sua casa, em 31 de outubro de 2020, enquanto dormia.
Texto de Inácio Araújo, na Folha de São Paulo.
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