"Acendo um cigarro. Ou por outra: não acendo um cigarro (o Dr. Stans Murad não pode saber que ainda fumo)". Isso é Nelson Rodrigues em uma de suas crônicas no Globo e que considero um dos maiores trechos de crônica que já li. Nelson, aos 60 anos, fora proibido de fumar por seu cardiologista e, com naturalidade, contou o que estava fazendo ao escrever. Só aí se lembrou de que, no dia seguinte, o médico o leria no jornal. Mas, em vez de apagar o cigarro e a frase, entregou-se com hilária sinceridade.
As crônicas de Nelson Rodrigues eram diárias, sempre na primeira pessoa, e tinham um título geral de "As Confissões". Porque era isso o que elas eram —confessionais ao absurdo. Em outra, contou que, certa noite, ao chegar em casa vindo do trabalho, foi informado por sua mulher, Lucia, de que Guimarães Rosa morrera. "De quê?", perguntou. "Enfarte", ela respondeu. Ele então fora para a varanda e, com a cidade iluminada aos seus pés, descobriu-se intimamente satisfeito pela morte de Guimarães Rosa.
Tinha "inveja literária" de Guimarães Rosa, admitiu. Rosa não podia espirrar sem ser chamado de gênio, ao passo que ele, Nelson, só levava pancada das plateias, dos críticos e da censura. Mas Rosa morrera e ele estava vivo, pensou. E só aí se deu conta da monstruosidade de tal sentimento. Como pudera pensar aquilo? De repente, convertido, admirou em Rosa o homem que dedicara sua vida a construir uma obra, indiferente aos apelos externos, políticos ou de qualquer ordem. O artista total.
Quem, além de Nelson Rodrigues confessaria coisas assim? Mas era o que ele fazia todos os dias, ano após ano: expor-se pelos jornais, ao mesmo tempo em que reservava o inconfessável do ser humano para seu teatro —que, hoje, ninguém mais discute, também é obra de gênio.
No dia 21 de dezembro, serão 40 anos da morte de Nelson Rodrigues. O Brasil não produziu outro.
Texto de Ruy Castro, na Folha de São Paulo.
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