quinta-feira, 12 de novembro de 2020

Estamos mesmo dispostos a não tratar nossos adversários como inimigos?

 Joe Biden fez um apelo interessante em seu discurso de vitória. Pediu que as pessoas parassem de demonizar e tratar os adversários como inimigos. Linhas à frente, disse que havia vencido para “restaurar a decência e defender a democracia”.

Observe-se como mesmo um político moderado e boa gente como Biden tropeça. Se um lado “organiza as forças da decência” e expressa, ele mesmo, os valores da democracia, o que sobra exatamente para o outro lado?

Acho que foi apenas uma escorregada de Joe Biden. Sua história o credencia para ajudar a “curar a América” do diálogo de surdos em que se transformou a política americana. Vamos finalmente testar a tese de que basta que o exemplo venha de cima e tudo se ajeita.

Não acho que as coisas sejam tão simples. O processo de polarização nas democracias é mais profundo do que costumamos reconhecer. O discurso radicalizado de quem está no poder ou de quem faz oposição é antes consequência do que causa desse processo.

Apenas um exemplo. O Pew Research Center mostrou que 74% dos eleitores de Biden acham que é “muito mais difícil ser um negro do que um branco neste país”. Entre os eleitores de Trump, apenas 9% concordam com isso.

Estamos tratando de temas que vão muito além dos limites convencionais do debate político. Não apenas a distância entre as visões de mundo duplicou, desde os anos 1990, como se ampliou o arco dos temas sobre o qual se diverge, em um quadro em que tudo ganhou dramaticidade.

Há muitas razões que explicam isso. Piketty vem observando, com base em boa pesquisa acadêmica, como os setores à esquerda do espectro político refletem cada vez mais a mentalidade de elites metropolitanas e bem educadas, e à direita o interiorano, menos culto e tradicional. A clivagem entre “globalistas” (alta educação, alta renda) vs. “nativistas” (baixa educação, baixa renda).

Em grandes linhas, foi o que se viu na eleição americana. É apenas um indicador. As razões do crescimento da polarização política dizem respeito a uma mudança de eixo do debate público em boa medida determinada pelo impacto da revolução tecnológica sobre a democracia.

Ocorre que o ingresso massivo e direto dos indivíduos na cena pública mudou a pauta do debate político. Temas de identidade passaram a definir muito da pauta política e, na direção contrária, a defesa da tradição. Questões por definição menos abertas à argumentação e à geração de consensos relativamente aos temas tradicionais da politica institucional.

Pode-se discutir com alguma frieza e eventualmente chegar a um acordo sobre déficit orçamentário ou política previdenciária, mas não há chance quando a pauta gira em torno de convicções mais profundas envolvendo religião, raça, gênero, o começo da vida ou papel da família.

Além da incomunicabilidade, são temas próprios à atitude típica do ativista digital: a sinalização de virtude, para si, e a regulação da vida e da linguagem, para os outros. Atitude que só gera conformidade fácil, na própria tribo, e raiva, na do vizinho.

John Stuart Mill deu pistas sobre isso, século e meio atrás, em seu livro sobre a sujeição das mulheres. Ele dizia que uma opinião fortemente enraizada nos sentimentos “fica ainda mais sólida quando enfrenta uma massa de argumentos contra ela”. A lógica do diálogo, central na democracia, é estranha e pouco efetiva diante da barreira cultural.

Talvez é disso que Biden esteja tratando quando fala em “abaixar a temperatura” da politica americana. Quem sabe voltar aos termos das eleições de 2008. À época, tanto Obama quanto McCain deixaram claro que não havia questão de “decência” ou de amor ao país entre eles, mas apenas de visões sobre a política.

Vai aí o desafio. Desdemonizar a política significa aceitar seus limites. Aceitar que a falibilidade, a ideia de que em uma democracia ninguém tem monopólio da virtude e da verdade. Na prática, parar de imaginar que a sua posição casualmente corresponda ela mesma à própria democracia.

Um pouco de humildade. Sou meio cético, mas acho que Biden pode, de fato, dar uma grande contribuição aí.


Texto de Fernando Schüler, na Folha de São Paulo

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