quarta-feira, 18 de novembro de 2020

Em cima do muro, Guilherme Boulos prefere construir um teto

 Tenho saudades do tempo em que era isento. Morei, durante anos, em cima do muro, e a vista de lá era espetacular. Os seres humanos, coitados, brigando por qualquer besteira, mas eu não era um humano, eu era um comediante! Sentava-me ao lado de jornalistas, economistas, técnicos em geral —e nos divertíamos às custas do desespero daqueles que tinham lado. Como era cômica a turba ensandecida dos que se importavam!

Lembram do centro político? Ficava precisamente debaixo dos meus pés. Em volta das minhas dúvidas gravitavam as convicções. Ao meu redor, orbitavam os extremismos —fascismo, socialismo, feminismo, antifascismo, antirracismo. Todos os "ismos" eram idênticos em sua devoção à ideologia. Votava, é claro, em Cristovam Buarque, o único que levantava a bandeira da educação.

Lá, do alto, todos soavam patéticos, lutando por um mundo melhor. As eleições, vistas de cima, não passam de brigas de facção. O país não ia pra frente por causa deles, os apaixonados. A política seria melhor gerida por algum algoritmo desenvolvido no Vale do Silício.

Foi em junho de 2013, quando vi, n'O Globo, o rosto de jovens que nem tinham sido julgados, acusados sem provas, devassados sem motivos, por protestarem contra o governo.

Foi ali que eu vi a verdadeira face do observador técnico. O mesmo jornal que fazia vista grossa pra corrupção de Sérgio Cabral, o mesmo jornal que tinha interesse financeiro nos grandes eventos agora criminalizava aqueles que protestavam contra Cabral e a Copa. A história provou, vale lembrar, que tanto Cabral quanto a Copa terminaram em 7 a 1 —o jornal ainda não fez a autocrítica que pede à esquerda.

O muro da isenção fica dentro de um condomínio particular. Cada um põe o centro político onde quer, geralmente em volta do próprio umbigo. A festa da democracia não tem espectadores.

Jornalistas imparciais têm falado, de cima do muro, contra o extremismo de Boulos. Nunca conheci, em toda a minha vida, ninguém tão sensato, lúcido, situado tão no centro do compasso político. Boulos luta pela Constituição. "Ah, mas o direito à propriedade?", perguntam. Toda a sua batalha é pra garantir, e expandir a todos, o direito à propriedade.

A questão, me parece, é de ordem prática. Dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço. Em cima do muro onde muita gente está, Boulos prefere construir um teto.


Texto de Gregorio Duvivier, na Folha de São Paulo

Nenhum comentário:

Postar um comentário