quinta-feira, 12 de novembro de 2020

O mundo enlouquecedor dos olhares que não se cruzam

 Outro dia encontrei uns amigos. A pior parte não foi o cumprimento de cotovelos, nem manter a distância. O mais estranho foi perceber que, num encontro presencial, já não faço ideia de onde colocar os olhos. Será que penduro meus olhos no chapeleiro? Guardo no bolso? Escondo no banheiro?

Os globos, claro, mantenho na cara. Mas o olhar, eis a questão: onde descansá-lo numa interação presencial? Esqueci o protocolo. Por quantos segundos se deve olhar pros olhos de alguém antes que comece a ficar estranho? Olho sempre pro mesmo olho? Devo alternar entre um olho e outro ou olhar pro espaço entre os dois olhos?

Faz oito meses que moro dentro de uma reunião de Zoom —com breves temporadas no Google Meet. Passo horas olhando pra pessoas que, por sua vez, olham pra mim, mas em nenhum momento cruzamos o olhar, porque a interface tornou isso impossível.

Pra que o outro tenha a sensação de que estou olhando nos seus olhos, precisaria olhar pra lente, mas se eu olhar pra lente já não consigo ver seus olhos. Quando olho pros olhos de alguém, a pessoa estará sempre, fatalmente, olhando pra outro lugar —geralmente pra baixo, como se fosse um súdito, ou um dalit. Não é à toa que você tá estressado: você passa o dia olhando pra alguém que olha pra outro lugar. Todo mundo se vê, ninguém se olha.

Antes das videochamadas não existia esse tipo de relação. Ou pelo menos não no Brasil. O japonês considera o contato visual invasivo e costuma olhar pra baixo, mas, pra mostrar que tá ouvindo, fica dizendo "hai hai", como se cumprimentando uma criança imaginária. Entendo o japonês. Quem não olha no olho tem que provar que tá prestando atenção. Passo o dia tentando interpretar o olhar perdido de interlocutores: será que a pessoa está, de fato, olhando pra mim? Quantas abas estarão abertas no navegador? Digo isso porque, no meu, nunca são menos de 12.

Cara a cara, fica muito mais difícil de mentir —já diz o cancioneiro. "Olhos nos olhos, quero ver o que você diz", canta Chico Buarque. Pelo Zoom, o eu lírico não conseguiria mostrar que "tantos homens me amaram bem mais e melhor que você". Thiaguinho, por sua vez, convidou: "Olha nos meus olhos, lê a minha mente, vai que de repente a gente tá pensando igual". Duvido que o Google Meet tenha a mesma "energia surreal".

Não sei se o Brasil tá pronto pra uma conversa olho no olho. Eu não tô.


Texto de Gregorio Duvivier, na Folha de São Paulo

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