sábado, 28 de novembro de 2020

Meu amigo é mulher

 Ele andava sumido nos últimos dois anos, morando fora do país. Quando retornou a São Paulo, me ligou, e eu já fui dando bronca: “Como assim você desaparece tanto tempo da minha vida?”. Foi quando ELA revelou que ELE, de fato, estava mesmo sumindo, desaparecendo. E que precisava me encontrar para explicar tudo.

Meu amigo chegou com os cabelos mais compridos e com mechas loiras, brincos, anéis, unhas pintadas, um macacão de linho preto com jaqueta musgo e tênis branco (uma jovem descolada, bem diferente das mulheres muito peruas por quem antes costumava se apaixonar). Pediu que dali em diante eu me referisse a ele com pronomes e artigos femininos. E foi o que tentei fazer instantaneamente, apesar de muitas vezes errar e pedir desculpas. Como provavelmente errei, e peço desculpas, em vários momentos neste texto.

Algumas pessoas lançaram olhares quando ela entrou no restaurante. Não me pareceu julgamento, e sim curiosidade. Tive a impressão de que sua atitude firme, seus anos de terapia, o amor de amigos e alguns familiares e, sobretudo, a liberdade e a força de enfim poder se tornar quem sempre foi, a transformaram em um ser tão charmoso e admirável que fica impossível não a seguir com os olhos.

Eu, que sou progressista por fora, fiquei com medo de me descobrir uma conservadorazinha babaca por dentro. Ter um ataque de riso ao ver meu amigo sempre tão metido a másculo agora com a voz e os trejeitos delicados. Ou ficar tão nervosa a ponto de o papo não render. Mas o que aconteceu foi muito bonito: eu estava, pela primeira vez em 12 anos de amizade, muito à vontade e feliz ao lado daquela pessoa. E então eu entendi por que tinha insistido na nossa relação.

Por um bom tempo, enquanto minha amiga era amigo, ou pelo menos quando era assim que se apresentava, era “ele” que reparava e julgava, compulsivamente, toda mulher que passava. Eu insistia: “Nós não existimos pra receber suas notas ou ser escolhidas por você”. Mas ele não ouvia. Umas ele atirava para o lado direito de uma tela imaginária, outras para o lado esquerdo. Sair com ele era estar dentro de um Tinder 3D. “Essa não porque é baranga.” “Essa não porque, como você, não parece uma fêmea, e sim um garotinho com roupa de escritor.” Até que via alguma perua sensual e subitamente me largava falando sozinha enquanto a encarava, até ter a cara de pau de atrapalhar o jantar dela para lhe entregar seu cartão de macho alfa.

O teatrinho da caça sexual, aprendeu com alguns amigos de infância —os mesmos que hoje em dia acham que ser mulher é apenas “uma fase” e que “ele” precisa de psiquiatra. Era um desfile intragável de machismo. E eu em muitas ocasiões voltei para casa jurando ser a última vez, mas lhe dava mais e mais chances, apostando minhas fichas em sua imensa capacidade de ser generoso, verdadeiro e divertido. E, não fosse flexionar os adjetivos no masculino, eu estava certa.

Minha amiga me pediu desculpas. Disse que desejar desenfreadamente aquelas mulheres era uma tentativa atabalhoada de ser tornar, de modo superficial, uma delas. Uma mulher sem defeitos era o que queria na cama e também em seu espelho. E a queria perfeita porque estava com medo de lidar com a realidade. Agora que se assumiu mulher, tem nojo quando algum homem a trata de forma condescendente, quando a xingam no trânsito (“tinha que ser mulher!”) ou quando não a deixam falar.

Aprendeu que nosso charme reside justamente em nossas “incorreções” e, até que enfim, pudemos conversar de mulher não ideal para mulher não ideal.

Minha querida amiga, como esperei para ter você em minha vida.


Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo

terça-feira, 24 de novembro de 2020

'O conflito de uma mulher negra cadeirante lésbica plus size é universal'

 “Então, chamei você aqui porque a gente está com uma oportunidade muito interessante em uma plataforma de streaming, e acho que você é O Cara que vai me ajudar a contar essa história e roteirizar esse filme como ninguém.”

“Opa, já fiquei empolgado. É sobre o quê?”

“Ah, superação, protagonismo feminino, racismo, essas coisas.”

“Essas coisas… Como assim? Porque eu sou um homem branco. O lance da superação até vá lá, teve uma vez que meu cartão foi bloqueado em um bordel em Berlim e foi o maior perrengue, mas de resto acho que me falta um pouco de vivência.”

“Não se preocupa, essa questão da representatividade a gente resolve no elenco. Pensei em chamar a Bruna Linzmeyer para o papel principal.”

“A Bruna é excelente, só não é negra.

“E se ela sofrer racismo reverso? Esse filme eu nunca vi.”

“Melhor não ir por aí, vai por mim. Será que a gente não repensa o casting?”

“Esse casting foi muito bem pensado, a atriz é lésbica assim como a nossa protagonista. Inclusive, a trama B do filme é ela correndo atrás de seu grande amor. Porque o fato de ela ser cadeirante não a impede de conquistar a mulher que ama e romper todas as barreiras.”

“Então, não sei como te falar isso, mas talvez eu, e você, não sejamos as pessoas mais indicadas para contar essa história.”

“Isso é discriminação. O conflito de uma mulher negra cadeirante lésbica plus size é um conflito universal. O que importa é o objetivo da personagem. O que a protagonista quer? O que ela precisa?”

“E qual seria esse objetivo?”

“Um pênis.”

“Mas ela não era lésbica?”

“Ela quer mudar de sexo.”

“Então ela é trans.”

“Ele é trans, Celso! Entendeu por que eu te chamei? Por fora, a protagonista pode ser uma cadeirante lésbica negra plus size atormentada por traumas sexuais do passado e que foi abandonada pela mãe narcisista. Mas, por dentro, ela é apenas um homem. Como eu, como você. Isso é lugar de fala. E aí, vamos pra Hollywood? Vamos trazer esse caneco pra casa? Topas?”

“Tá, mas posso contar com uma consultoria pelo menos?”

“Claro, eu tenho um sobrinho que está louco para entrar nesse mercado, o Enzo. Ele fez intercâmbio na África do Sul.


Texto de Manuela Cantuária, na Folha de São Paulo.

Racismo no Carrefour

 Até mesmo o torpe assassinato de Beto Freitas em um supermercado em Porto Alegre foi capturado pelas guerras culturais, com vozes conservadoras acusando os progressistas de enxergar racismo onde não havia e dividir uma sociedade racialmente integrada.

A principal crítica desses conservadores tem sido quanto ao emprego do conceito de racismo estrutural. Para eles, o racismo se restringiria apenas àqueles episódios de preconceito e intolerância com motivação racista manifesta.

Seria preciso, então, entender as circunstâncias que levaram à morte de Beto Freitas: se havia algum fato anterior que pudesse justificar o uso excessivo de força e se haveria evidência de motivação racista, como alguma injúria racial que tivesse sido proferida. Sem esses elementos, a alegação de racismo seria prematura e injustificada e mostraria apenas um esforço da esquerda em promover a divisão em uma sociedade conhecida por ter uma integração racial bem-sucedida.

Não é, no entanto, o que dizem as estatísticas. Raça é importante, mesmo quando comparamos índices dentro de uma mesma classe de renda. Entre negros de baixa renda, por exemplo, 42% relatam terem sido desrespeitados pela polícia (contra 34% dos brancos de baixa renda): 35% já receberam agressões verbais e 18% sofreram agressões físicas (contra 27% e 12% dos brancos de baixa renda).

Enquanto 56% da população brasileira é negra ou parda, negros e pardos são 67% dos encarcerados e 76% das vítimas de homicídio. Esses não são números de uma sociedade não racista.

Independentemente das circunstâncias que levaram os seguranças a agredir Beto Freitas, é incontestável que houve uso excessivo de força, já que as agressões foram desproporcionais e não cessaram quando ele foi rendido.

O uso da força pelos seguranças teria chegado a esse grau de excesso e violência se Beto Freitas fosse branco? Quinze pessoas assistiriam passivamente um homem branco ser covardemente espancado e asfixiado por seguranças sem tentar impedi-los? Provavelmente não.

É esse racismo insidioso, não explícito e não manifesto que condiciona as ações individuais e o funcionamento das instituições que vemos atuar em casos como esse. É ele que anui, que consente o exercício de uma violência brutal contra um homem negro que dificilmente seria autorizada contra um homem branco.

É esse racismo furtivo, enfim, que faz com que negros sejam mais interpelados pela polícia, sejam mais encarcerados, sejam mais agredidos e sejam mais assassinados. As estatísticas não são fruto do acaso.


Texto de Pablo Ortellado, na Folha de São Paulo

domingo, 22 de novembro de 2020

 "Acendo um cigarro. Ou por outra: não acendo um cigarro (o Dr. Stans Murad não pode saber que ainda fumo)". Isso é Nelson Rodrigues em uma de suas crônicas no Globo e que considero um dos maiores trechos de crônica que já li. Nelson, aos 60 anos, fora proibido de fumar por seu cardiologista e, com naturalidade, contou o que estava fazendo ao escrever. Só aí se lembrou de que, no dia seguinte, o médico o leria no jornal. Mas, em vez de apagar o cigarro e a frase, entregou-se com hilária sinceridade.


As crônicas de Nelson Rodrigues eram diárias, sempre na primeira pessoa, e tinham um título geral de "As Confissões". Porque era isso o que elas eram —confessionais ao absurdo. Em outra, contou que, certa noite, ao chegar em casa vindo do trabalho, foi informado por sua mulher, Lucia, de que Guimarães Rosa morrera. "De quê?", perguntou. "Enfarte", ela respondeu. Ele então fora para a varanda e, com a cidade iluminada aos seus pés, descobriu-se intimamente satisfeito pela morte de Guimarães Rosa.

Tinha "inveja literária" de Guimarães Rosa, admitiu. Rosa não podia espirrar sem ser chamado de gênio, ao passo que ele, Nelson, só levava pancada das plateias, dos críticos e da censura. Mas Rosa morrera e ele estava vivo, pensou. E só aí se deu conta da monstruosidade de tal sentimento. Como pudera pensar aquilo? De repente, convertido, admirou em Rosa o homem que dedicara sua vida a construir uma obra, indiferente aos apelos externos, políticos ou de qualquer ordem. O artista total.

Quem, além de Nelson Rodrigues confessaria coisas assim? Mas era o que ele fazia todos os dias, ano após ano: expor-se pelos jornais, ao mesmo tempo em que reservava o inconfessável do ser humano para seu teatro —que, hoje, ninguém mais discute, também é obra de gênio.

No dia 21 de dezembro, serão 40 anos da morte de Nelson Rodrigues. O Brasil não produziu outro.


Texto de Ruy Castro, na Folha de São Paulo

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

É tetra!

 Ver se essa piada “é tetra!” é boa para falar de tetra-hidrocanabinol. Não tenho certeza. Comecei um óleo com THC pra dor crônica e quero escrever sobre isso. Eu digo “quero” porque ainda não escrevi e porque eu preciso pesquisar se se chama mesmo óleo de THC, mas eu tô. Eu chamava de. Não se fala óleo com THC.

Há dez anos, quando morei no Rio, eu. Amigos paulistanos, nós conseguimos. Não moramos perto do mar, não temos montanhas embelezando nossas caminhadas e eu jamais fui a um caixa eletrônico de biquíni. Mas nós conseguimos: deixamos os cariocas com inveja.

Estou em pelo menos uns quatro grupos de WhatsApp cheios de amigos do Rio de Janeiro lamentando não ter, no segundo turno, um Boulos e uma Erundina pra chamar de seus (Freixo, volte!). O que aconteceu no último domingo foi grande parte da cidade dizendo “pega aqui no meu boleto” para os faria limers. Ou, talvez, arrisco sonhar, até mesmo alguns faria limers cansados do seu lado mais obscuro podem ter participado desse coro, ousando apostar em dias melhores para todos os mercados, incluindo o mercadinho de frutas de Sapopemba.

Essa piada com mercado não é de todo ruim. Estou há horas olhando pro papel e não veio mais nada a dizer. Em reuniões no Zoom vocês prestam de fato atenção no que está sendo dito ou ficam olhando a decoração cagada da casa dos mais abastados e selecionando a galera que você pegaria em festas? CBD não dá barato e tira a dor. Tomo o CBD durante o dia. Posso escrever “foco e fé?”. O THC só tomo à noite.

Eu agora só escrevo com dicionário de sinônimos ao lado porque não lembro exatamente a palavra, mas lembro algo parecido. E nem sempre é sinônimo.

Aguentei o topiramato por três dias. Rapaz, eu tentei ler a bula do topiramato pra ver se dizia algo lá sobre dificuldade em ler. Se você tem enxaqueca, preste atenção: não tome Depakote, não tome topiramato, não abuse do Sumax 100mg. Mas não era isso que eu tava falando. Pare de escrever sobre remédios: nota mental.

Minha mãe virou maconheira junto comigo. Minha mãe tem fibromialgia assim como eu. Tão fofas, mamãe e filhinha. Mas está tomando um óleo diferente, que, segundo ela, tira a dor e ainda tira a fome. Que saudade de ter alguém que chega tirando tudo.

Fui falar num podcast que tenho horror de engordar e há semanas estou sendo xingada. Eles têm razão. Porque o corpo livre e acima do peso é belo e. Tá errado dizer “acima do peso”, porque não deveria existir “o peso”. Padrão é algo que inventaram pra te dominar e deprimir. Me sinto péssima dizendo frases bonitas, porque o que me levou a escrever foram todos os infinitos anos de escola em que eu só escutava frase feia. Cansaço de final de ano, abuso de remédios pra enxaqueca ou THC? Porque o belo corpo livre. Legal, minha gente, mas meu corpo pode ser livre pra não querer engordar? Por que tanta gente tem salas medonhas? Desculpa, mas é só o que eu penso nas reuniões por Zoom. E analiso se pegaria aquelas pessoas também.

Eu quero o óleo da minha mãe e ligo pro médico. Ele diz “já te respondo” e some. Na verdade, eu mandei a mensagem tem meia hora. Sei que eu devo estar ansiosa em algum lugar e daí fico ansiosa em respeito ao meu passado ansioso. Amigos, a dor melhorou. Mas dizem que em estudos com placebo a dor também melhora. Eu odeio a galera dos estudos com placebo dizendo que nosso cérebro pode tudo menos fazer remédios que funcionem.

O médico disse que meu aumento de fome não é por causa do óleo de maconha. Disse que estar chapada é coisa da minha cabeça. Disse que eu estar esquecida não tem nada a ver com os óleos, deve ser porque andei abusando de remédio pra enxaqueca. E disse mais umas coisas que anotei pra não esquecer, mas eu fui comer de novo e quando eu voltei não achava mais o papel.


Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo

Paulo Henrique Machado (1967 - 2020): Morador do HC da USP desde os dois anos, faleceu aos 53

 “Uau! Olha! Vale muito a pena viver!” Era assim que Paulo Henrique Machado, 53, começava as suas lives no YouTube, sempre transmitidas do leito no Hospital das Clínicas de São Paulo, onde viveu por 51 anos preso a um respirador artificial.

Paulinho, como era conhecido por amigos e seguidores, chegou ao HC em 1969, vítima da poliomielite, que paralisara seu sistema respiratório.

Mas ele tinha movimento em um dos braços. E uma cabeça cheia de projetos e sonhos. Na cama do hospital, aprendeu a ler e a escrever, concluiu o ensino médio e fez vários cursos de informática.

Em 1992, escreveu para uma empresa e recebeu a doação do seu primeiro computador, um MSX. Mais tarde, passou a montar computadores.

Era aficionado por jogos eletrônicos e, em 2013, criou uma animação 3D em que retratou as aventuras do personagem Léco, inspirado na sua própria história e na de amigos.

À época, tentava um financiamento coletivo para o projeto, mas enfrentava dificuldade. Após a Folha revelar a história, conseguiu R$ 120 mil, e o filme saiu no ano seguinte.

Na infância, Paulinho conviveu no HC com outras crianças vítimas da pólio, doença erradicada no Brasil há mais de 25 nos, mas que enfrenta hoje baixa taxa de vacinação.

De todos aqueles amigos, a artista plástica Eliana Zagui, autora do livro “Pulmão de Aço - Uma Vida no Maior Hospital do Brasil” (Belaletra Editora), é a única sobrevivente. Ela não vive mais no HC.

Paulinho morreu na quarta (18) em consequência do agravamento dos problemas respiratórios que tinha. Seu corpo será cremado nesta sexta (20).

Nas redes sociais, centenas de amigos de todo o país recordaram seu bom humor, otimismo, alegria e motivação.

“Meu verdadeiro irmão, família, companheiro, confidente, meu fiel amigo. Obrigada por mostrar que mesmo em meio às circunstâncias VALE MUITO A PENA VIVER!!!”, escreveu Zagui no Facebook.

“A imagem que ficará do Paulinho é do seu sorriso de menino e do seu dom de levar com uma leveza de invejar a qualquer um”, escreveu a senadora Mara Gabrilli (PSDB). “Não é à toa que o Paulinho gostava de super-heróis. Ele se sentia em família.”

A Comic Con Experience também lamentou a morte. “O mundo perdeu um herói. Paulo Henrique Machado nos deixou hoje, mas sua história viverá para sempre em nós. Porque não existe nada mais poderoso do que uma boa história e a dele foi incrível.”


Por Claudia Collucci, na Folha de São Paulo

Ser pessoa negra é uma conquista árdua e se desenvolve pela vida afora

 Para a pessoa negra, a consciência de sua negritude é parte fundamental do "tornar-se negro", expressão imortalizada na obra de Neuza Santos Souza que é bibliografia obrigatória em cursos de psicologia sérios neste país.

Negro, na acepção política do termo, vai além da epiderme de negritude clara ou escura.

Ou seja, um diretor da Fundação Palmares que é usado pelas pessoas brancas para ficar falando agressividades contra pessoas negras, ainda que seja de pele retinta como a noite, não é negra.

Uma pessoa que tenha a pele clara como caramelo e é contra cotas e usa de seu capital político a serviço de estruturas brancas para atacar pessoas negras também não é negra, independente de uma autodeclaração política como sendo de esquerda ou de direita.

É no sentido de que Lélia Gonzalez traz quando diz que "a gente não nasce negro, a gente se torna negro".

"É uma conquista dura, cruel e que se desenvolve pela vida da gente afora. Aí entra a questão da identidade que você vai construindo. Essa identidade negra não é uma coisa pronta, acabada. Então, para mim, uma pessoa negra que tem consciência de sua negritude está na luta contra o racismo. As outras são mulatas, marrons, pardos etc."

Ser negro é entender que estamos num país de quatro séculos de escravidão e que não teve nenhuma política de inclusão da população; que negou, e ainda se nega, a encarar de fato as entranhas desse sistema racial que dá oportunidades para que pessoas de um grupo social estejam no topo e que seu discurso seja a norma, ao passo que um grupo enfrente historicamente a invisibilidade.

Ser negro ou ser negra é entender que um grupo social angariou ao longo de séculos todo poderio econômico herdado das casas grandes e dos soldos pagos pelos senhores aos funcionários que controlavam a população negra.

E entender que o capital está para além da empresa do pai, da casa da praia do vovô mas também está escancarado na própria pele que, muitas vezes, fará a diferença entre a vida e a morte, bem como em todas as situações mais sutis do cotidiano.

Ser negro ou ser negra é conhecer a história do movimento negro brasileiro.

Das lutas históricas desde as revoltas de pessoas escravizadas, ainda tão pouco estudadas e trabalhadas nas escolas e na mídia como um todo, até a luta pela criminalização do racismo, pelo ensino da história afro-brasileira nas escolas, pelas cotas raciais que dão o mínimo de oportunidades de acesso às universidades.

É estudar e reverenciar aqueles que vieram antes, como aqueles que são nossos contemporâneos, fazendo história diante de nossos olhos.

Ser negro/ser negra é honrar os povos quilombolas, os povos de terreiro. É partir da lógica da encruzilhada para multiplicar com a força do oceano todas as nossas tecnologias que tivemos que desenvolver para sobreviver aos horrores do colonialismo.

Ser negro ou ser negra é nunca se deixar ser o chicote na mão de uma pessoa branca a ser desferido contra o lombo de uma pessoa negra.

É não compactuar com a misoginia, com a violência doméstica, com o abuso infantil.

Ser negro, ser homem negro, sobretudo, é jamais compactuar com o assassinato de saberes imposto pelo patriarcado, é não fechar os olhos para agressão às mulheres negras. É jamais querer reproduzir-se socialmente como um homem branco historicamente se fez.

É apoiar o trabalho editorial negro, histórico desde as imprensas negras do século 19, começo do século 20, passando por Cadernos Negros, Quilombhoje, entre tantos outros.

Trabalho desenvolvido com primor pela minha geração —e nessa data saúdo a Coleção Feminismos Plurais elas vitórias conquistadas, como também a todas as pessoas que estão ocupando espaços em editoras que estão se atualizando e publicando quem, de fato, deve estar em todos os lugares, assim como a branquitude esteve historicamente.

Pensar como um negro, como brilhantemente expõe meu querido amigo Adilson Moreira, é um exercício de interpretação que é alcançável a todas as pessoas. Por isso, no Dia da Consciência Negra, como em todos ou outros dias do ano, apoie projetos desenvolvidos por pessoas negras, invista, troque oferecendo o que possa oferecer para uma empreitada negra, expanda a consciência e pense como um negro, na acepção política do termo.

Assim, faremos dessa consciência um método poderoso para combater esse gigante inimigo de toda a sociedade, que é o racismo.


Texto de Djamila Ribeiro, na Folha de São Paulo

quinta-feira, 19 de novembro de 2020

A borboleta de Rubem Braga

 Em setembro de 1952, o cronista Rubem Braga (1913-1990) fez uma experiência literária e tanto: manteve os leitores pendurados no suspense de um minifolhetim em três capítulos protagonizado por uma borboleta.

Carro-chefe do livro “A Borboleta Amarela”, de 1955, o tríptico saiu no jornal Correio da Manhã como “Borboleta” só (sem número, II e III). Seu sopro de enredo é o voo do bichinho nos arredores da Biblioteca Nacional, no centro do Rio.

Nada acontece propriamente, mas isso não era novidade para os cultores de um gênero que, nas palavras do crítico Antonio Candido, “pega o miúdo e mostra nele uma grandeza”.

A maestria com que o autor extrai grandeza do miúdo lepidóptero com o qual esbarra na Cinelândia é que dá peso e permanência —por prazo indeterminado— a uma criatura que é a própria encarnação do leve e do fugaz.

Isso se deve primeiro ao talento de Braga para o borboleteio textual. De sua cobertura arborizada em Ipanema, aquele cara rabugento era um especialista em batucar uma prosa de jornal que dizia muito mais do que parecia dizer.

Ocorre que, naquele momento, o voo atingia uma altura rara até para seus padrões. Consta que Clarice Lispector acabou de ler a terceira crônica, passou a mão no telefone e ligou para ele em prantos.

Qual é o segredo desse texto? Bom, não tenho a menor intenção de “empalhar a borboleta”, expressão usada por Millôr Fernandes para criticar os tradutores de Shakespeare que julgava eruditos demais —e escritores de menos.

Seria ridículo tentar destrinchar aqui a mágica que faz o maior cronista brasileiro da história atingir aquela voltagem lírica dele. Melhor desfrutar seus textos e pronto. Mas arrisco dizer que a excelência de “A Borboleta Amarela” deve muito à sua duração.

Que os cronistas batiam asas por aí como vadios era sabido. Embora pudessem falar —e muitas vezes falavam, pois encher jornal atrás de jornal era dureza— de notícias, sua matéria-prima principal era o oposto delas.

Braga e seus colegas brilhavam mais ao lidar com o banal, o detalhe revelado por um olhar mais atento ao que constitui o cotidiano do que àquilo que dele se destaca.

Nesse sentido, a borboleta é, para o cronista, uma espécie de assunto ideal: frágil, desimportante e efêmera, mas também bela, “poética”, indutora de sorrisos.

Contudo, ao se desdobrar por dias e virar heroína de série, a borboleta de Braga se torna algo mais enigmático e aflitivo. Pela força de séculos de tradição narrativa, passa a carregar em seu fiapo de corpo o peso da ansiedade leitora. De certa forma, vira notícia.

Trecho do último parágrafo: “Cheguei a receber telefonemas: ‘eu só quero saber o que vai acontecer com essa borboleta’. Havia, no círculo das pessoas íntimas, uma certa expectativa, como se uma borboleta amarela pudesse promover grandes proezas no centro urbano”.

Não podia. No fim ela simplesmente some, ou melhor, o cronista a perde de vista entre edifícios e estátuas, e para disfarçar sua decepção se põe a contemplar umas rolinhas.

Nada aconteceu —ou sim? Que a pergunta sirva de convite à leitura de Braga e da grande crônica brasileira, também conhecida como “gênero menor”.

Há muito tempo tenho vontade de imitar o cronista, fugir das graves notícias que nos assolam e escrever sobre a desimportância de uma borboleta amarela. Que pode acabar sendo, ao seu modo, o mais importante de tudo. Cheguei a pensar que nunca fosse conseguir.


Texto de Sergio Rodrigues, na Folha de São Paulo

Mensagens no grupo As Jardinders traduzem a pandemia gourmet

 Mensagem nova no grupo "As Jardinders".

Tete: "Meninas, bom dia. Acho melhor cancelarmos o jantarzinho de sexta :(".

Antonella: "Como assim??? Agora que consegui aval do marido? Fora que já marquei com a folguista".

Tete: "Essa segunda onda tá vindo com tudo".

Lola: "Nem vi a primeira. Tô sem tempo até pra malhar. Imagina surfar?".

Tete: "Estou falando da pandemia, @Lola! Tá voltando".

Regininha: "Meu médico falou que pega mais em favela, onde o povo fica amontoado. Não em gente como a gente".

Antonella: "Aqui nos Jardins é tudo espaçoso. O coronga nem acha a gente, kkk".

Lola: "Mas eu estou me cuidando, ficando em casa".

Antonella: "Eu também".

Tete: "Mentira @Antonella! Eu vi no seu Insta você comendo fondue com um monte de amigos, tomando espumante".

Antonella: "Minha casa em Campos. Não deixa de ser em casa, kkk".

Lola: "Minha irmã acabou de pegar Covid. A família toda pegou. Aí tiveram que se trancar no apartamento por dez dias, sem empregada! :o".

Regininha: "Horror! Pegou como, @Lola?".

Lola: "Não sei. Eles até ficaram surpresos, porque tavam se cuidando super".

Tete: "Mentira! Eu vi no Insta eles no casamento da Ju Piva".

Antonella: "Virou fiscal da pandemia, @Tete?".

Lola: "Foi superíntimo. Só uns 40 convidados. Eu fui e estava super tranquilo".

Tete: "Você não falou que estava em casa? >:(".

Antonella: "Mas a gente nem sente essa doença. Minha dermato me receitou cloroquina profilática. Junto com umas agulhadinhas de botox. Dra. Ligia é mara".

Tete: "Olha só, chegou no grupo de mães um comunicado do Einstein".

Lola: "Achei que ele tivesse morrido".

Tete: "O hospital, anta! Tá falando que o número de internados disparou!".

Regininha: "No Einstein? Gente, imagina se lota?".

Antonella: "Terrível. Aí não dá nem pra pegar Covid em paz".

Tete: "Pois é, meninas. A gente tem que se cuidar. Ficar mais em casa".

Antonella: "Posso ficar em casa, mas na minha casa na Baleia? Vou chamar a turma".

Tete: "Tá... Mas só se você me convidar".

Antonella: "Vou comprar mais espumante, kkk".


Texto de Flavia Boggio, na Folha de São Paulo

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

Em cima do muro, Guilherme Boulos prefere construir um teto

 Tenho saudades do tempo em que era isento. Morei, durante anos, em cima do muro, e a vista de lá era espetacular. Os seres humanos, coitados, brigando por qualquer besteira, mas eu não era um humano, eu era um comediante! Sentava-me ao lado de jornalistas, economistas, técnicos em geral —e nos divertíamos às custas do desespero daqueles que tinham lado. Como era cômica a turba ensandecida dos que se importavam!

Lembram do centro político? Ficava precisamente debaixo dos meus pés. Em volta das minhas dúvidas gravitavam as convicções. Ao meu redor, orbitavam os extremismos —fascismo, socialismo, feminismo, antifascismo, antirracismo. Todos os "ismos" eram idênticos em sua devoção à ideologia. Votava, é claro, em Cristovam Buarque, o único que levantava a bandeira da educação.

Lá, do alto, todos soavam patéticos, lutando por um mundo melhor. As eleições, vistas de cima, não passam de brigas de facção. O país não ia pra frente por causa deles, os apaixonados. A política seria melhor gerida por algum algoritmo desenvolvido no Vale do Silício.

Foi em junho de 2013, quando vi, n'O Globo, o rosto de jovens que nem tinham sido julgados, acusados sem provas, devassados sem motivos, por protestarem contra o governo.

Foi ali que eu vi a verdadeira face do observador técnico. O mesmo jornal que fazia vista grossa pra corrupção de Sérgio Cabral, o mesmo jornal que tinha interesse financeiro nos grandes eventos agora criminalizava aqueles que protestavam contra Cabral e a Copa. A história provou, vale lembrar, que tanto Cabral quanto a Copa terminaram em 7 a 1 —o jornal ainda não fez a autocrítica que pede à esquerda.

O muro da isenção fica dentro de um condomínio particular. Cada um põe o centro político onde quer, geralmente em volta do próprio umbigo. A festa da democracia não tem espectadores.

Jornalistas imparciais têm falado, de cima do muro, contra o extremismo de Boulos. Nunca conheci, em toda a minha vida, ninguém tão sensato, lúcido, situado tão no centro do compasso político. Boulos luta pela Constituição. "Ah, mas o direito à propriedade?", perguntam. Toda a sua batalha é pra garantir, e expandir a todos, o direito à propriedade.

A questão, me parece, é de ordem prática. Dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço. Em cima do muro onde muita gente está, Boulos prefere construir um teto.


Texto de Gregorio Duvivier, na Folha de São Paulo

terça-feira, 17 de novembro de 2020

O senhorinho na fila do voto

 Ai, meus Deus, tem fila. Eu percebi ao chegar para votar, por volta das 10 horas deste domingo (15), na Fundação Getúlio Vargas, na praia de Botafogo. E não era pequena: estendia-se por mais de 100 metros, entrando pela rua Farani. O sol na cabeça.

A fila é um momento especial na chamada festa da democracia. Ficamos ali olhando as pessoas e tentando identificar, pelo jeitão delas, em quem vão votar. É mais difícil do que descobrir por qual time elas torcem. A minha era uma fila aparentemente normal, casal discutindo, garota usando uma discreta saída de praia, rapaz de bermuda e chinelo de dedo. A tentação de dar um mergulho tornava a espera mais irritante.

Aí notei o senhorinho a minha frente. Do nada, começou a fazer um discurso, comportamento típico em dia de eleição. Mas ele não pedia votos para seu candidato ou partido, tampouco reclamava do ministro Luís Roberto Barroso, presidente do TSE, pela desorganização. O tema era a prevenção à pandemia: "Os médicos não mandam a gente ficar em casa? Então o que estamos fazendo aqui?". Baixinho, barbudo, uma figuraça: boné verde e amarelo, camisa da CBF, duas bandeiras do Brasil que ele, sabe-se lá como, conseguiu pendurar nas axilas.

Mal andávamos e, chegando à entrada da FGV após 30 minutos, descobrimos o motivo da demora. As seções ficavam no alto do prédio, e só eram liberados três eleitores por elevador —quem quisesse subisse de escada.

Começou um pequeno tumulto: o meu patriota se recusava a usar máscara. "Isso é fantasia!", gritou ele, balançando os braços e as bandeiras do sovaco. Concordou a custo em pôr a máscara (também verde e amarela) que estava escondida no bolso. Antes deu a todos mais uma lição: "Essa Fundação Getúlio Vargas foi comprada pelos chineses!".

Enfim votei. Na saída, ainda procurei o senhorinho, mas ele havia sido tragado pelo mundo real.


Texto de Alvaro Costa e Silva, na Folha de São Paulo

quinta-feira, 12 de novembro de 2020

Estamos mesmo dispostos a não tratar nossos adversários como inimigos?

 Joe Biden fez um apelo interessante em seu discurso de vitória. Pediu que as pessoas parassem de demonizar e tratar os adversários como inimigos. Linhas à frente, disse que havia vencido para “restaurar a decência e defender a democracia”.

Observe-se como mesmo um político moderado e boa gente como Biden tropeça. Se um lado “organiza as forças da decência” e expressa, ele mesmo, os valores da democracia, o que sobra exatamente para o outro lado?

Acho que foi apenas uma escorregada de Joe Biden. Sua história o credencia para ajudar a “curar a América” do diálogo de surdos em que se transformou a política americana. Vamos finalmente testar a tese de que basta que o exemplo venha de cima e tudo se ajeita.

Não acho que as coisas sejam tão simples. O processo de polarização nas democracias é mais profundo do que costumamos reconhecer. O discurso radicalizado de quem está no poder ou de quem faz oposição é antes consequência do que causa desse processo.

Apenas um exemplo. O Pew Research Center mostrou que 74% dos eleitores de Biden acham que é “muito mais difícil ser um negro do que um branco neste país”. Entre os eleitores de Trump, apenas 9% concordam com isso.

Estamos tratando de temas que vão muito além dos limites convencionais do debate político. Não apenas a distância entre as visões de mundo duplicou, desde os anos 1990, como se ampliou o arco dos temas sobre o qual se diverge, em um quadro em que tudo ganhou dramaticidade.

Há muitas razões que explicam isso. Piketty vem observando, com base em boa pesquisa acadêmica, como os setores à esquerda do espectro político refletem cada vez mais a mentalidade de elites metropolitanas e bem educadas, e à direita o interiorano, menos culto e tradicional. A clivagem entre “globalistas” (alta educação, alta renda) vs. “nativistas” (baixa educação, baixa renda).

Em grandes linhas, foi o que se viu na eleição americana. É apenas um indicador. As razões do crescimento da polarização política dizem respeito a uma mudança de eixo do debate público em boa medida determinada pelo impacto da revolução tecnológica sobre a democracia.

Ocorre que o ingresso massivo e direto dos indivíduos na cena pública mudou a pauta do debate político. Temas de identidade passaram a definir muito da pauta política e, na direção contrária, a defesa da tradição. Questões por definição menos abertas à argumentação e à geração de consensos relativamente aos temas tradicionais da politica institucional.

Pode-se discutir com alguma frieza e eventualmente chegar a um acordo sobre déficit orçamentário ou política previdenciária, mas não há chance quando a pauta gira em torno de convicções mais profundas envolvendo religião, raça, gênero, o começo da vida ou papel da família.

Além da incomunicabilidade, são temas próprios à atitude típica do ativista digital: a sinalização de virtude, para si, e a regulação da vida e da linguagem, para os outros. Atitude que só gera conformidade fácil, na própria tribo, e raiva, na do vizinho.

John Stuart Mill deu pistas sobre isso, século e meio atrás, em seu livro sobre a sujeição das mulheres. Ele dizia que uma opinião fortemente enraizada nos sentimentos “fica ainda mais sólida quando enfrenta uma massa de argumentos contra ela”. A lógica do diálogo, central na democracia, é estranha e pouco efetiva diante da barreira cultural.

Talvez é disso que Biden esteja tratando quando fala em “abaixar a temperatura” da politica americana. Quem sabe voltar aos termos das eleições de 2008. À época, tanto Obama quanto McCain deixaram claro que não havia questão de “decência” ou de amor ao país entre eles, mas apenas de visões sobre a política.

Vai aí o desafio. Desdemonizar a política significa aceitar seus limites. Aceitar que a falibilidade, a ideia de que em uma democracia ninguém tem monopólio da virtude e da verdade. Na prática, parar de imaginar que a sua posição casualmente corresponda ela mesma à própria democracia.

Um pouco de humildade. Sou meio cético, mas acho que Biden pode, de fato, dar uma grande contribuição aí.


Texto de Fernando Schüler, na Folha de São Paulo

Não tome vacina

 Todos os dias, em ocasiões distintas, as consequências de não ter recebido uma das doses da vacina que evitaria minha contaminação pelo vírus da poliomielite têm um papo com minha consciência, com meu futuro e com minhas emoções.

Não tome você uma vacina, qualquer, não dê a seus filhos a proteção descoberta e trabalhada pela ciência e ganhe para sempre a ausência de um sossego, às vezes, atormentador, chamado refletir a respeito do “e se”.

E se eu pudesse correr, como seriam meus cabelos e como andaria a minha pressa? E se eu pudesse jogar minha filha para o alto, como seria a risada de nós dois? E se eu pudesse ter amado alguém num canto, num encanto de ondas, numa cabana lá longe, no teto ao luar, meu coração teria outra batida, minhas inquietações seriam mais bem assistidas?

Ter contraído paralisia infantil de maneira severa e bastante incapacitante, a ponto de me limitar o andar por toda a existência, fez de mim uma pessoa que, também para sempre, cultivaria a prática de pensar a respeito de como seria uma outra vida possível.

Não tome vacinas e flerte com o risco de ter um corpo desencontrado, por dentro e por fora, daquilo que é a referência de quase todos ao seu redor. Não há pecado nem nada de muito errado nisso, mas prepare-se para ter muita energia e muita companhia para praticar o “eu me amo, eu me gosto, eu sou feliz assim”.

Preciso concordar com o presidente Bolsonaro quando ele diz que ninguém pode ser obrigado a jogar para dentro do próprio organismo um avanço humano que tente garantir-lhe que não sofra dores lancinantes, não passe grande tempo de sua existência tentando amenizar sequelas, não conviva com um tormento mental por seu corpo não responder adequadamente à sua mente.

Preciso concordar que ninguém é obrigado a se vacinar por ser isso também um ato fraterno, um ato de compaixão com os mais vulneráveis, mais expostos, mais dispostos à ação dos organismos desestabilizantes.

Não vacinar, no caso do coronavírus, pode ser atentar contra a própria vida, mas e daí? Se a gente não obrigar as pessoas a se vacinarem, também ninguém vai ter de se preocupar em saber como os pobres irão se imunizar, como a vacina irá chegar aos ermos —foi em um ermo que fui abatido—, como proteger os velhos, os indefesos, os ingênuos, os desprotegidos…

Cada um tem de ter o poder de saber o que é melhor para si, mesmo aqueles cujo “si” se harmoniza, se protege e se resguarda com o “nós”. Tudo tão reluzente, tudo tão livre, tudo tão triste.

Não tome vacina para colaborar com o recrudescimento do climinha egoísta, arrogante e intolerante do mundo.
Esse climinha que faz a quem guarda algum tipo de diferença– física, sensorial, intelectual, de gênero, de tonalidade– penar um pouquinho mais para ser gente.

Direitos individuais não podem jamais se sobrepor ao princípio nato do “serumano” de agir diante da fatalidade alheia, de tentar estender a mão a quem se afoga, de acalorar aquele que treme.

O que a gente faz pelo outro, a ciência já demonstrou, catapulta o cérebro, faz apaziguar a alma e as angústias, engrandece o caminho.

O planeta está em uma situação de desespero extremo, em via de enfrentar novos cenários de um desastre humano em todos os cantos.

Elixires com o potencial de evitar novas ondas de tristeza profunda e devastação mental estão em curso e são promissores. Tomar vacina é opção. Eu não tive. Use bem a sua.


Texto de Jairo Marques, na Folha de São Paulo

O mundo enlouquecedor dos olhares que não se cruzam

 Outro dia encontrei uns amigos. A pior parte não foi o cumprimento de cotovelos, nem manter a distância. O mais estranho foi perceber que, num encontro presencial, já não faço ideia de onde colocar os olhos. Será que penduro meus olhos no chapeleiro? Guardo no bolso? Escondo no banheiro?

Os globos, claro, mantenho na cara. Mas o olhar, eis a questão: onde descansá-lo numa interação presencial? Esqueci o protocolo. Por quantos segundos se deve olhar pros olhos de alguém antes que comece a ficar estranho? Olho sempre pro mesmo olho? Devo alternar entre um olho e outro ou olhar pro espaço entre os dois olhos?

Faz oito meses que moro dentro de uma reunião de Zoom —com breves temporadas no Google Meet. Passo horas olhando pra pessoas que, por sua vez, olham pra mim, mas em nenhum momento cruzamos o olhar, porque a interface tornou isso impossível.

Pra que o outro tenha a sensação de que estou olhando nos seus olhos, precisaria olhar pra lente, mas se eu olhar pra lente já não consigo ver seus olhos. Quando olho pros olhos de alguém, a pessoa estará sempre, fatalmente, olhando pra outro lugar —geralmente pra baixo, como se fosse um súdito, ou um dalit. Não é à toa que você tá estressado: você passa o dia olhando pra alguém que olha pra outro lugar. Todo mundo se vê, ninguém se olha.

Antes das videochamadas não existia esse tipo de relação. Ou pelo menos não no Brasil. O japonês considera o contato visual invasivo e costuma olhar pra baixo, mas, pra mostrar que tá ouvindo, fica dizendo "hai hai", como se cumprimentando uma criança imaginária. Entendo o japonês. Quem não olha no olho tem que provar que tá prestando atenção. Passo o dia tentando interpretar o olhar perdido de interlocutores: será que a pessoa está, de fato, olhando pra mim? Quantas abas estarão abertas no navegador? Digo isso porque, no meu, nunca são menos de 12.

Cara a cara, fica muito mais difícil de mentir —já diz o cancioneiro. "Olhos nos olhos, quero ver o que você diz", canta Chico Buarque. Pelo Zoom, o eu lírico não conseguiria mostrar que "tantos homens me amaram bem mais e melhor que você". Thiaguinho, por sua vez, convidou: "Olha nos meus olhos, lê a minha mente, vai que de repente a gente tá pensando igual". Duvido que o Google Meet tenha a mesma "energia surreal".

Não sei se o Brasil tá pronto pra uma conversa olho no olho. Eu não tô.


Texto de Gregorio Duvivier, na Folha de São Paulo

Por que há tantos pobres, desempregados e 'losers' que votam em Trump?

 A recusa de Donald Trump em aceitar sua derrota é tão ridícula, e tão coerente com seu perfil psicológico, que, no fim, estou torcendo para que continue por um tempo.

Acho que terá o efeito de isolá-lo mais e de fortalecer o lado minimamente pragmático do Partido Republicano.

Trump, como sempre, aposta na divisão e no radicalismo —o que tendia a ajudá-lo quando estava forte. Mas a coisa muda quando ele se sente ferido.

Por mais indigno e absurdo que seja o comportamento de um presidente, o próprio cargo é capaz de lhe conferir certa legitimidade. Algum respeito pelos símbolos —a bandeira, o palácio, o carro oficial, os seguranças— se transfere para o ocupante da Presidência, mesmo que ele faça tudo para não ser levado a sério.

"Mister president! Mister president!" —essas simples palavras, mesmo se pronunciadas pelo mais crítico dos repórteres, já modificam um pouco a realidade deprimente, a palhaçada abjeta, a imbecilidade inflacionada.

Insistindo em ser tratado como vencedor, Trump se vê destituído dessa aura oficial.

Os grupos extremistas e fanáticos que apoiam Trump continuarão em sua cruzada, certamente. Vivem em outra realidade. Mas era diferente quando o fanatismo se via confirmado pelos fatos reais, e pelos votos que deram a Trump a Presidência em 2016.

O membro mais maluco de uma minoria supremacista estava coberto, e protegido, pelo fato de que Trump vencera a eleição. Agora, o mecanismo se inverte: é Trump quem precisa da cobertura dos mais fanáticos. E isso dificulta as coisas.

Afinal, o fascista médio tem, sobretudo, adoração pela força, pelo poder, pela truculência. Um líder enfraquecido, choramingão e acuado nunca é tão sexy. Para usar uma palavra tão ao gosto dos americanos e da direita, Trump vai se transformando naquilo que ele mais despreza —o "loser", o perdedor, o fracassado.

Fico pensando por que políticos de extrema direita, dedicados explicitamente a beneficiar apenas o 1% mais rico da população, acabam fazendo sucesso entre muita gente pobre, sem chance nenhuma no chamado sistema "meritocrático".

A razão talvez seja, simplesmente, a de que esses eleitores não querem ver o que são de fato. Receber ajuda do governo, ter acesso a educação e saúde gratuitas talvez lhes pareça um rebaixamento, uma humilhação. Votariam em Trump, assim, por amor próprio. "Não sou um pobre coitado." Maldito seja o esquerdista "de bom coração" que me vê desse modo!

Destituído de tudo, ameaçado de perder a casa, mergulhado em dívidas, desempregado e burro, esse eleitor tem um único patrimônio: sua crença no livre mercado, na competição e na meritocracia.

É algo que pode ostentar de comum com Trump e todos os milionários que este simboliza.

Há outra coisa, entretanto.

Esse eleitor tem mais um tesouro que ninguém vai tirar: é branco. Sua raça é o que o afasta da desgraça completa; bem-vindo o presidente que não o confunde com negros e latinos.

Espero, naturalmente, que num futuro próximo todas as aberrações que Trump estimulou e legitima, nos Estados Unidos e no resto do mundo, entrem em declínio.

Tomara que o bando de malucos que até agora se beneficiaram de alta projeção pública venha a se recolher na própria e merecida insignificância.

Ia dizer: que todos voltem para o buraco de onde saíram.

Mas eles tiram força de uma parcela da população importante. Nesse caso, não se trata de mandar milhões de iludidos e idiotas de volta ao buraco; trata-se de tirá-los de lá.

O desempregado fascista, o pequeno empresário falido, o evangélico fanático, o racistazinho adolescente, a dona de casa que admira torturadores e milicianos não podem ser vistos, a meu ver, como "caso perdido" para a política de esquerda.

Há derrota, sofrimento e desamparo em cada uma dessas pessoas. Para elas, certamente fazem pouco sentido nossas mensagens de "justiça social", "igualdade" e "direitos humanos". Meu impulso é desprezar gente assim.

Mas é preciso encontrar outro caminho. A vitória de Biden foi precária, sabemos disso. Muita imaginação será necessária para entender e conquistar os pobres de direita; sem isso, o fascismo não se vence.


Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo

terça-feira, 10 de novembro de 2020

A masculinidade é muito frágil e devemos protegê-la com esses produtos

 ob a luz fria do projetor da sala de reuniões, a funcionária faz uma apresentação para o seu chefe.

"Foi assim que nós chegamos a essa nova linha de produtos voltada inteiramente para o público masculino. Hoje em dia, os homens são tão vaidosos quanto as mulheres, ou até mais, segundo pesquisas."

"Mais vaidosos do que as mulheres? Duvido."

"O que nos leva a uma segunda característica fundamental do nosso público-alvo, que tem muita dificuldade em admitir esse cuidado com a beleza, com a higiene. Isso exigiu que a gente trouxesse uma nova roupagem para esses produtos. Por exemplo, esse é o nosso creme dental para homens."

"Qual a diferença para uma pasta de dentes normal?"

"Na composição, nenhuma. Mas a embalagem é azul e vem escrito FOR MEN em caixa alta. Ah, e ela é bem mais cara. Agora, para nossa linha de banho fomos além e desenvolvemos uma fórmula exclusiva, com fragrâncias apropriadas ao gosto masculino, como cerveja, churrasco, carro novo e tatame suado. O sabonete em barra vem no formato de radiador, com um grip para que ele não escorregue, caia no chão e o consumidor tenha que se abaixar para pegá-lo."

"Que sacada. Como eu não pensei nisso antes?"

"E desse produto eu sou suspeita para falar, é o meu queridinho. Um sabonete íntimo masculino. No rótulo de trás ainda tem um passo a passo ilustrado com instruções de uso. Até as mulheres vão aprovar, posso garantir."

"Olha, não é todo homem que não sabe fazer a própria higiene íntima."

"Foi o que a maioria dos entrevistados dos nossos grupos de pesquisa disse. Curiosamente, todos levaram as amostras para casa. Alguns até enviaram mensagens cobrando a data de lançamento. Não é ótimo?"

"Quer dizer que o consumidor está disposto a pagar mais por causa de um detalhe no rótulo?"

"O nosso público-alvo rotula os produtos de duas maneiras: ou é coisa de homem, ou de mulher. Na cabeça do consumidor, um simples gole de Guaraná Jesus, por ser uma bebida cor de rosa, pode pôr tudo a perder. A masculinidade é muito frágil e é nosso dever protegê-la com essa linha de produtos. Sem contar o potencial de retorno milionário para a nossa empresa. Mais alguma dúvida ou sugestão?"

"Essas amostras que você falou... sobrou alguma?"


Crônica de Manuela Cantuária, na Folha de São Paulo