Ele andava sumido nos últimos dois anos, morando fora do país. Quando retornou a São Paulo, me ligou, e eu já fui dando bronca: “Como assim você desaparece tanto tempo da minha vida?”. Foi quando ELA revelou que ELE, de fato, estava mesmo sumindo, desaparecendo. E que precisava me encontrar para explicar tudo.
Meu amigo chegou com os cabelos mais compridos e com mechas loiras, brincos, anéis, unhas pintadas, um macacão de linho preto com jaqueta musgo e tênis branco (uma jovem descolada, bem diferente das mulheres muito peruas por quem antes costumava se apaixonar). Pediu que dali em diante eu me referisse a ele com pronomes e artigos femininos. E foi o que tentei fazer instantaneamente, apesar de muitas vezes errar e pedir desculpas. Como provavelmente errei, e peço desculpas, em vários momentos neste texto.
Algumas pessoas lançaram olhares quando ela entrou no restaurante. Não me pareceu julgamento, e sim curiosidade. Tive a impressão de que sua atitude firme, seus anos de terapia, o amor de amigos e alguns familiares e, sobretudo, a liberdade e a força de enfim poder se tornar quem sempre foi, a transformaram em um ser tão charmoso e admirável que fica impossível não a seguir com os olhos.
Eu, que sou progressista por fora, fiquei com medo de me descobrir uma conservadorazinha babaca por dentro. Ter um ataque de riso ao ver meu amigo sempre tão metido a másculo agora com a voz e os trejeitos delicados. Ou ficar tão nervosa a ponto de o papo não render. Mas o que aconteceu foi muito bonito: eu estava, pela primeira vez em 12 anos de amizade, muito à vontade e feliz ao lado daquela pessoa. E então eu entendi por que tinha insistido na nossa relação.
Por um bom tempo, enquanto minha amiga era amigo, ou pelo menos quando era assim que se apresentava, era “ele” que reparava e julgava, compulsivamente, toda mulher que passava. Eu insistia: “Nós não existimos pra receber suas notas ou ser escolhidas por você”. Mas ele não ouvia. Umas ele atirava para o lado direito de uma tela imaginária, outras para o lado esquerdo. Sair com ele era estar dentro de um Tinder 3D. “Essa não porque é baranga.” “Essa não porque, como você, não parece uma fêmea, e sim um garotinho com roupa de escritor.” Até que via alguma perua sensual e subitamente me largava falando sozinha enquanto a encarava, até ter a cara de pau de atrapalhar o jantar dela para lhe entregar seu cartão de macho alfa.
O teatrinho da caça sexual, aprendeu com alguns amigos de infância —os mesmos que hoje em dia acham que ser mulher é apenas “uma fase” e que “ele” precisa de psiquiatra. Era um desfile intragável de machismo. E eu em muitas ocasiões voltei para casa jurando ser a última vez, mas lhe dava mais e mais chances, apostando minhas fichas em sua imensa capacidade de ser generoso, verdadeiro e divertido. E, não fosse flexionar os adjetivos no masculino, eu estava certa.
Minha amiga me pediu desculpas. Disse que desejar desenfreadamente aquelas mulheres era uma tentativa atabalhoada de ser tornar, de modo superficial, uma delas. Uma mulher sem defeitos era o que queria na cama e também em seu espelho. E a queria perfeita porque estava com medo de lidar com a realidade. Agora que se assumiu mulher, tem nojo quando algum homem a trata de forma condescendente, quando a xingam no trânsito (“tinha que ser mulher!”) ou quando não a deixam falar.
Aprendeu que nosso charme reside justamente em nossas “incorreções” e, até que enfim, pudemos conversar de mulher não ideal para mulher não ideal.
Minha querida amiga, como esperei para ter você em minha vida.
Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo.