Comissão da Verdade: quem cala, consente
Eu presenciei, no dia 18 de novembro, no Palácio do Planalto, a presidenta Dilma sancionar a Comissão
da Memória e da Verdade.
Pode ser um passo histórico para o país. Não somente para as famílias de adolescentes, mulheres
e homens marcados por tortura, prisões arbitrárias, mortes e desaparecimentos no período da ditadura.
Afinal,
até hoje, incontáveis brasileiros, especialmente os mais pobres, os
menos brancos e os homossexuais
ainda têm seus direitos violados, são cotidianamente agredidos sem
defesa nas ruas ou presos arbitrariamente, sem respeito à integridade
física e moral.
Como a juíza Patrícia Acioli, muitos ainda são brutalmente assassinados quando buscam justiça.
Nossa
história familiar é, portanto, uma entre tantas já testemunhadas. A
exposição sobre Rubens
Paiva, que viaja o Brasil, mostra a vida do jovem estudante da UEE que
lutou pelo "Petróleo é Nosso", depois eleito deputado federal e cassado
pelo golpe de 1964.
Pai
de cinco filhos, bem-sucedido engenheiro e democrata preocupado com o
seu país, foi preso em
casa quando voltava do vôlei da praia, feliz em almoçar com a família
no feriado. Dirigiu seu carro até o quartel, cujo recibo de entrega é a
única prova de que foi preso.
Minha
irmã de 15 anos e minha mãe, sequestradas no dia seguinte, ficaram dias
no DOI-CODI, cenário
de horror naqueles tempos. Reencontrei-as esquálidas e com a alma
partida. Minha mãe por anos a fio tentou encontrá-lo, ou pelo menos ter
notícias. Nenhuma notícia.
Quarenta
anos depois, nós da família e os amigos honramos juntos sua memória na
inauguração da exposição,
finalmente. Descobrimos que a data em que cada um decidiu que Rubens
Paiva tinha morrido variava muito, meses e anos diferentes: aceitar que
ele tinha sido assassinado seria matá-lo mais uma vez.
Essa cicatriz ficará menos dolorida se nada disso se repetir, se o Brasil consolidar sua democracia
e seu caminho para a paz.
Na cerimônia em que ouvi o bom discurso da presidenta Dilma e recebi seu abraço carinhoso, não tive
a oportunidade de falar.
Lembraria
em minha fala que em 1977, numa das primeiras manifestações pós-1968
pelas liberdades
democráticas e contra prisões arbitrárias de colegas, como estudantes
organizados no DCE da USP distribuíamos pacificamente uma carta aberta à
população.
Parados pelas bombas do coronel Erasmo Dias, sentamos no viaduto do Chá e lemos em voz alta a carta
que recitava: "Hoje, consente quem cala".
Essa será uma "Comissão da Meia Verdade" se calarmos ou consentirmos, não é mesmo?
Autonomia, soberania e uma grande equipe de apoio são necessárias à Comissão para que a Memória
e a Verdade venham à tona.
Será fundamental para que os violadores de direitos humanos, os armados torturadores de hoje, não
se sintam impunes e impeçam a paz e a justiça de todos os dias.
Chile,
Argentina e África do Sul deram exemplos de como fazê-lo. Entidades
internacionais concordam
conosco que a impunidade e o sigilo sobre a violação de direitos
humanos, ontem e hoje, serão cúmplices do sofrimento dos brasileiros
cotidianamente afetados por essa herança de horror.
Embora
não mais apoiada em leis de exceção, essa herança segue pela ação
daqueles que desrespeitam
sua obrigação constitucional, dos que perpetuam a cultura que alimenta a
intolerância e a violência institucionalizada. A democracia deve ser
reconstruída e valorizada a cada geração. Somos todos responsáveis,
civis e militares.
Hoje, quem calar consentirá.
VERA PAIVA,
filha de Rubens Paiva, é professora do Instituto de Psicologia da USP.
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