sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

Exatamente

Cara colunista, ao dizer que não respeita quem votou no Bolsonaro, você está querendo dizer que, contra tudo o que prega a democracia que tanto defende, você não aceita um voto diferente do seu? 
Exatamente. Nesse caso específico, votaram contra a democracia, e quem o faz não merece ser respeitado democraticamente.
Mas, ao dizer que não tolera quem votou no Bolsonaro, sobretudo em tempos violentos como os nossos, não estaria você fomentando brigas?
Exatamente. Sou adepta de muita briga. No espaço virtual, no elevador, nas festas, nas reuniões, nas universidades (se restar alguma) e, sobretudo, nos almoços em família.
Para garantir um país sem armas e agressões físicas, a fim de assegurar uma vida menos desgraçada para, por exemplo, mulheres, pobres, negros e LGBTs, é preciso, quem diria, quebrar o pau. Reclamar, escrever, discutir.
Quando escreve que considera ignorante, mal-intencionado ou perverso quem segue apoiando esse governo, não estaria você se julgando melhor que os outros?
Exatamente. Eu acho isso mesmo. Eu não tenho maturidade, bondade no coração e espiritualidade suficientes para pensar diferente.
Se você apoia o governo do preconceito, do racismo, da ignorância, das milícias, da perseguição a professores, do fim da cultura, do fim da ciência, do nazismo, me desculpe, mas ou você não entendeu nada e lhe falta leitura ou você entendeu tudo e lhe falta humanidade ou você se considera acima do bem e do mal (e, portanto, as leis civilizatórias não lhe servem).
Tati, metade dos meus amigos gosta do Bolsonaro e eles não são idiotas. Eles fizeram GV!
Exatamente! Eles fizeram GV e são idiotas! Que absurdo, né?! Para você ver que fazer GV não salva ninguém de ser imbecil. Nem USP nem mestrado nos Estados Unidos. 
Mas, Tati, você acharia melhor que o PT continuasse no poder?
Exatamente. Eu votei no Ciro no primeiro turno da eleição passada. E votaria até no PSDB se fosse para tirar o atual governo.
Eu também tenho bode do PT, porém apoiar esse governo é um crime contra a moralidade e a decência. E moralidade e decência, na minha opinião, nada têm a ver com religião e conservadorismo.
Tati, lembra de mim? A gente era primo de primeiro grau até 2018. Você sumiu, te chamei para a festa dos gêmeos no buffet Mickey Amigão e você não apareceu. Anda ocupada ou tudo isso é só porque eu votei no Bolsonaro? 
Exatamente. Perceba em minhas redes sociais: eu vou a restaurantes, viajo, leio, faço novos amigos e tatuagens.
Tentei na terapia e na meditação, mas meio que você morreu para mim em algum lugar muito profundo, ancestral e primitivo. Beijo nas crianças (e coitadas delas!).
Tatiana, você deve ter faltado mesmo às aulas de história. Você segue se recusando a discutir o que é o fascismo.
Exatamente. Faltei a algumas por motivo de putaria. Eu peguei geral na época da escola e no período da faculdade e até bem pouco tempo atrás. Putaria é um troço maravilhoso.
Alguém avisa a Damares que não faz sentido parar de transar antes do casamento porque é justamente durante o casamento que a gente para de transar.
Fascismo não se discute, tampouco se pondera. Ou é fascista ou não é. Se você insiste em debater se um governo fascista é fascista, sinto muito, não falo com fascistas. E meu nome é Tatiane.
Cronista da Foice de SP, estou cansado de você só escrever palavrão e papo furado de esquerda.
Exatamente, eu também estou. Contudo, até que pessoas como você entendam a merda em que nos metemos e como estamos fodidos, eu vou ter que continuar com essa porra.

Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo

quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

Ao contrário do que vendem, gravidez é fome, sofrimento, hemorroidas e flatulência

Acredito na teoria de que existe uma grande sociedade secreta de grávidas plenas que finge que a gestação é um momento pleno e maravilhoso. É um golpe sujo para convencer outras mulheres a
engravidar, porque, se elas soubessem o que viria pela frente, desistiriam da ideia. 
Eu caí nessa lorota e engravidei. Por isso, resolvi usar essa coluna para mostrar a real. Ao contrário do que vendem, gravidez é fome, sofrimento, hemorroidas e flatulências involuntárias.
Esqueça as imagens de futuras mães comendo frutas e saladinha. A gestação te transforma em uma zumbi sem educação em busca de comida. Você passa a filar comida alheia, comer sobras e pegar o último croquete da porção sem perguntar.
A criatividade gastronômica fica extremamente aguçada. Você tem ideias como jogar leite condensado no amendoim, queijo ralado no requeijão, Bis moído no sorvete ou, como estou fazendo agora, mergulhar Doritos no iogurte.
Para a gestante, não existe “meu corpo, minhas regras”. É “meu corpo, as regras da minha mãe, da minha sogra, dos parentes e dos passantes na rua”. Tudo o que você faz, come, respira é julgado por terceiros. 
“Tem certeza que pode comer sushi?” 
“Como seu marido deixa (?) você andar de bicicleta?”
Seu físico também vira objeto de análise. Opinam sobre sua barriga —que nunca está do tamanho certo—, seu rosto, seu umbigo. E o tamanho dos seus seios é debatido no cafezinho do escritório.
Os toques na barriga e comentários de estranhos perdem a importância quando seu organismo começa a se comportar de forma constrangedora. Não é raro você sair correndo de jantares e reuniões para urinar.
Espirrar é uma grande roleta-russa, na qual as únicas opções são xixi nas calças, pum ou sabe-se lá o que mais.
Uma das melhores coisas da gravidez é, justamente, passar por constrangimentos sem se constranger. 
Poder compartilhar intimidade intestinal com o chefe. Culpar o cachorro por barulhos estranhos (mesmo que seu marido saiba que vieram de você). Andar com a camisa aberta, coçando a barriga, como o personagem Nazareno do Chico Anysio. E ainda, de brinde, gerar um ser humano. Ou, como eu, dois. 
As grávidas plenas não sabem o que estão perdendo.

Texto de Flávia Boggio, na Folha de São Paulo

quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

Massacre

Um jovem de 24 anos, sem antecedentes criminais, sem histórico de doença mental, ex-militar, membro de uma “família estruturada”, defendia o porte de armas para “se defender de bandidos” e se declarava evangélico e temente a Deus. Após discussão banal de trânsito no Lami, zona sul de Porto Alegre, assassinou três pessoas de uma mesma família (marido, esposa e filho). O autor do triplo homicídio, atirador treinado, mirou nas cabeças das vítimas, acertando vários disparos, com uma pistola 9mm. Depois de trucidar a família, fugiu do local, tendo sido preso nesta terça-feira (28).No texto anterior nessa coluna (“As palavras no jornalismo”), mostrei que fatos criminais costumam ser divulgados de forma muito diferente no Brasil a depender da classe social das vítimas e dos autores. O massacre do Lami o confirma amplamente. O tom geral das notícias foi extremamente cuidadoso. Aliás, não houve matéria que tenha sequer chamado o massacre de massacre. Ninguém empregou a palavra “bandido” tão ampla e rapidamente empregada em outros contextos e não houve quem propusesse “caçada ao assassino”. O responsável pelo crime foi designado, pela polícia e nas matérias jornalísticas, como “suspeito” o que, tecnicamente, é o tratamento correto visto que apenas o Poder Judiciário pode definir quem são os culpados. A polícia não divulgou o nome do suspeito, o que também deveria ser procedimento padrão.Esses cuidados só se fizeram presentes, entretanto, porque o autor é considerado um “cidadão de bem”. “Gente como a gente”, um rapaz de “boa família”. Essa abordagem está presente, inclusive, na fala do delegado que disse: “ele cometeu o maior erro da vida dele. É melhor ele assumir a responsabilidade do que viver se escondendo”. Sim, o autor cometeu “um grande erro”. Segundo o Código Penal, esse “erro” se chama triplo homicídio duplamente qualificado, por motivo torpe e pelo uso de meio que impossibilitou a defesa das vítimas. Pode-se descrever o delito de forma simples e técnica, sem permitir que a indignação que atravessa a alma de qualquer pessoa normal aflore e estimule sentimentos de vingança, OK, mas não se deveria chamar um crime de tamanha gravidade de “erro”, nem usar a imprensa para aconselhar o foragido.
A pistola 9mm, arma predileta do FBI, é anunciada pela Taurus como tendo “um cartucho poderoso, com bom desempenho, que fará o trabalho, desde que tenha o posicionamento adequado para o tiro. Uma arma compacta com boa mira, um gatilho decente e controles ergonômicos é uma companheira fiel em tempos difíceis.” Muito fiel. Até há pouco tempo, armas com esse calibre eram classificadas como de uso restrito pelas Forças Armadas, mas decreto do presidente Bolsonaro (Dec. nº 9.847, de 25 de junho de 2019), estabeleceu, para alegria da indústria, que pistolas .40, .45 e 9mm podem ser compradas amplamente. O atirador não possuía porte, fato que tem sido divulgado como se isso fizesse alguma diferença. O que importa, entretanto, é saber: o que o impediria de ter o porte? Ou: se ele fosse abordado pela polícia e flagrado portando arma sem autorização legal deveria ser preso, como determina o art. 14 do Estatuto de Controle de Armas, ou essa medida seria uma violência contra o “cidadão de bem”? Antes do Estatuto, é bom lembrar, porte ilegal de armas era considerado uma contravenção e tratado como fenômeno banal. O ideal almejado pelo presidente e por todos os que ao longo da última campanha eleitoral posaram fazendo “arminhas” com seus dedos, em uma espécie de regressão à infância, não é, exatamente, o de “armar o cidadão de bem”?
O fato é que a retórica pró-armas, que caracteriza o discurso do lumpesinato que chegou ao poder no Brasil, tem estimulado, concretamente, a compra de armas de fogo em uma escala impressionante. O aumento no número de armas em circulação trará consigo o aumento dos casos de furto e roubos de armas (nos EUA, criminosos furtam ou roubam 237 mil armas de fogo a cada ano), o aumento do uso irregular de armas de fogo – como foi o caso do atirador do Lami – e o aumento das ocorrências criminais com armas pelos chamados “cidadãos de bem”. Um dos mais recentes estudos nos EUA (Right-to-Carry Laws and Violent Crime: A Comprehensive Assessment Using Panel Data and a State-Level Synthetic Control Analysis) mostrou que leis que autorizam o porte de armas de fogo estão associadas a um aumento médio entre 13 a 15% dos crimes violentos em um espaço de dez anos. Aqueles que adquirem armas para defesa pessoal imaginam que, assim, evitarão crimes. Na vida real, poucos terão a chance de prevenir qualquer crime (How Often Do People Use Guns In Self-Defense?). Entre esses poucos, a maior parte será vitimada em casos de reação. Agravando o quadro, uma parcela maior entre os que adquirem armas para defesa as usará, efetivamente, para o ataque em disputas banais, em feminicídios (Disarming Domestic Abusers), e para a prática do suicídio (Suicide, Guns, and Public Policy)
O que o massacre do Lami evidencia é aquilo que já foi demonstrado exaustivamente desde que Hannah Arendt assinalou, em “Eichmann em Jerusalém”, que, para se cometer um crime monstruoso, não é necessário monstros. Basta alguém incapaz de refletir. Vivemos um momento histórico mundial onde a irreflexão se tornou orgulhosa. O que já seria grave o suficiente, está se tornando bem pior no Brasil, porque muitos entre os que se negam a pensar estão, agora, armados. Todos nós sempre desejamos um País melhor e penso que, independente das posições políticas e do tóxico contencioso ideológico em curso, sempre demandamos a redução da violência. A verdade, entretanto, é que fomos arrastados para dentro de um filme de Tarantino e ele está apenas no começo.

Não tinha título. Coloquei um que achei apropriado. 

Violência policial e autoritarismo

A celebração da queda de quase 20% no número de homicídios dolosos no estado do Rio de Janeiro em 2019, divulgada semana passada pelo Instituto de Segurança Pública (ISP), não pode esconder um dado igualmente importante e intolerável.
A taxa de mortos pela polícia foi de 10,5 para cada 100 mil habitantes no ano passado, o que representa 30,3% de todas as mortes violentas no estado.
Há muitas razões para acreditar que a brutalidade policial é um indicativo das tendências autoritárias de um país.
Ao contrário do que muitas pessoas podem acreditar, a violência policial coloca em xeque o uso legítimo da força, essência do Estado democrático de Direito.
Pode também ser um lembrete de que o Estado perdeu o controle sobre sua responsabilidade básica de prover segurança pública para todos. 
Portanto, o fato de que três em cada dez mortes intencionais no Rio tenham sido cometidas por policiais no ano passado não tem nada de normal e precisa ser contestado pela sociedade, sobretudo ao olharmos para o contexto histórico e nacional.
Os 1.810 casos representam crescimento de 18% com relação a 2018 e o maior número de vítimas desde o início da série histórica, em 1998.
 
E o Rio de Janeiro não é um caso isolado. Em São Paulo, houve um aumento de 12% no número de mortes praticadas por policiais civis e militares em serviço em 2019.
Nacionalmente, o primeiro semestre registrou 2.886 pessoas mortas por policiais, 120 a mais que no mesmo período de 2018, de acordo com dados do Monitor da Violência. A alta foi puxada por dez estados.
Em meio a esse cenário, as reduções de crimes são, por vezes, usadas para legitimar o abuso da força. A relação no entanto, é falsa. No caso do Rio, Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, teve uma das mais significativas reduções das mortes por intervenção de agente do Estado (24%) em 2019, e também uma importante queda de homicídios dolosos, de 17%.
Documento produzido pelo Ministério Público do Rio de Janeiro em setembro analisou os números de homicídios dolosos e as mortes por intervenção de agentes do Estado por Áreas Integradas de Segurança Pública (Aisp), entre janeiro e agosto de 2019. A conclusão é que não existe padrão na relação entre os dois fenômenos.
A narrativa enganosa de que uma polícia que mata muito pode conter a violência é disseminada e, em alguns casos, promovida por autoridades que, não por acaso, costumam expressar simpatia por restrições às liberdades civis, à expansão da impunidade das forças de segurança e à redução de freios e contrapesos sobre a democracia. No Brasil, temos exemplos disso nas esferas estaduais e federal.
Vale lembrar que essa estratégia coloca em risco a vida dos próprios agentes de segurança. Pelo menos 343 policiais foram mortos em 2018, como mostra o Anuário Brasileiro de Segurança Pública.
Milhares sofrem com lesões físicas e problemas de saúde mental, números também inaceitáveis. Além disso, cidadãos que são repetidamente expostos a violações dos direitos humanos são menos inclinados a denunciar crimes, auxiliar em investigações ou testemunhar, o que alimenta o ciclo de insegurança.
Uma das tragédias do Brasil é que, depois de anos de brutalidade —incluindo uma ditadura militar— muitos ficaram insensíveis ou anestesiados. A sociedade precisa despertar.
Líderes estão reduzindo problemas complexos a discussões binárias e reforçando a violência como solução. A história do Brasil e do Rio mostra claramente que esse não é o caminho. A próxima geração de líderes precisará entender bem isso para que nossa democracia possa avançar.

Texto de Ilona Szabó de Carvalho, na Folha de São Paulo

Matança de porcos guiada por chef nos aproxima daquilo que comemos

Na recepção do hotel, aviso que deixarei uma mala ali por uma noite. “Vou ao campo matar um porco, comer, e então volto”, disse, observando que impacto a declaração provocaria sobre as duas jovens portenhas.
Abriram um sorriso. “Que bom, tenha uma boa viagem”, apenas comentaram. De volta a São Paulo, ante um comentário parecido, as reações foram de horror, descrença, quase repulsa. Tudo o que a maioria não sente ao comprar em qualquer o mercado urbano a calabresa ou o lombinho pudicamente embalados.
Los Cardales. Neste vilarejo, 70 km a noroeste de Buenos Aires, fica o sítio onde ocorrerá a “faena”, a matança do porco promovida pelo proprietário do restaurante Don Julio, a melhor parrilla da Argentina.
O programa quase foi adiado pela previsão de tempestade (ou, no termo mais dramático dos argentinos, de tormenta). Mas contrariando os prenúncios, ela desabou ruidosamente só durante a madrugada, dissipando-se ao raiar do dia, que se abriu num sol generoso.
Tudo pronto então para a carneada —expressão também usada no Brasil, originária do espanhol do rio da Prata, para descrever o abate e o corte do gado— em que aquela turma de cozinheiros, ao lado de apreensivos jornalistas, testemunharão o corte no pescoço que fará a vida do porco se esvair em sangue recolhido num balde, enquanto os guinchos de sua agonia reverberam naquela placidez rural.
“Você está bem? Tem certeza de que quer participar?”, me pergunta Pablo Rivero. É uma experiência forte, avisa pela enésima vez. Há três anos ele promove esse ritual com membros de sua equipe, mas também convidados a quem quer mostrar sua preocupação com a forma como encaramos o sacrifício animal.
“Diz respeito à nossa filosofia e à ética de nosso trabalho”, afirma Rivero. “Nós trabalhamos com animais que são sacrificados para termos alimento. A melhor maneira de entender esse dilema é vivê-lo, para ter sua real dimensão e dar verdadeiro valor ao animal. É uma experiência transformadora, que nos vincula com a comida de outro ponto de vista.”
O ato impressiona os neófitos. Na minha infância, numa casa com quintal em São Paulo, meu pai, criado num sítio do agreste pernambucano, comprava galinhas vivas (ou peru, no Natal) para deixá-las soltas até que lhes quebrassem o pescoço, a caminho da panela.
Mas não havia ainda presenciado o abate a sangue frio de uma porca de dois anos de idade e 180 quilos. Uma aflição que começa quando o animal é deitado, amarrado e carregado para a mesa de madeira onde viverá seus últimos minutos.
E são vários minutos. Imobilizada por meia dúzia de homens, ela tem o pescoço examinado pelo experiente Guido Tassi, cozinheiro e especialista em embutidos que é também sócio (com Rivero) do restaurante El Preferido, na capital argentina.
Há quase 20 anos ele começou, com amigos cozinheiros, a carnear porcos que compravam no verão, alimentavam e abatiam no inverno para fazer embutidos para seu consumo.
Agora ele faz a precisa incisão, e o sangue começa a jorrar num balde do qual, misturado com sal, é recolhido para mais tarde compor a melhor morcilla —ou chouriço— que já experimentei.
Mas neste momento ainda é difícil olhar para o porco como alimento —ele é um animal em agonia. O animal que vai nos alimentar, e cuja transformação merece ser observada não com salivação, mas com respeito e até uma ponta de contrição.
Cinco longos minutos finalmente se escoam junto com a vida do animal. Que ainda não parece comida, enquanto mantém sua pelugem. Hora de escanhoar demoradamente seu corpo com facões e água quente.
Sem os pelos, ele ganha a tonalidade rosada mais familiar. Hora de abrir a barriga e retirar os órgãos, que serão aproveitados. Logo, separado da cabeça e das patas, o corpo é suspenso no galho de um rijo carvalho e serrado ao meio.
Enquanto cabeça, miúdos e parte das peles e gordura já passarão para o preparo dos embutidos, as duas metades do porco —agora já capazes de despertar apetite— passarão toda a noite penduradas em repouso. 
Tassi lidera, com ajudantes, a transformação do animal em iguarias. Ele explica que o porco foi criado solto e alimentado com milho e vegetais, nada de ração.
“Nós cozinheiros trabalhamos com a matéria-prima morta; entender sua origem é uma mudança substancial. Aqui está a chave para conhecer o que comemos”, diz.
O dia seguinte é de festa. Em torno da fogueira se assam cordeiros, mas também os frutos do ritual iniciado na véspera —a costela do porco, linguiças frescas, a morcilla, “queijo de cabeça” (embutido de língua, rins, pele e pés), depois de todos provarem uma sobrasada (receita espanhola) do ano anterior (gordura e aparas de porco com pimentão). Uma celebração à vida que os animais nos proporcionam.
“Conhecer esse processo desde o início ajuda a transformar o consumidor, que só pensa na gôndola e no produto terminado num açougue, em algo mais, em um homem que é parte da natureza e que tem que atravessar esse dilema de sacrificar para se alimentar”, diz Rivero.
“Faz com que o homem se vincule mais a esse animal, se interesse em como foi criado, alimentado, como foi seu bem estar e seu sacrifício. O valor que se dá ao produto depois desta experiência é o que vai transformar a produção animal nos próximos anos —ao menos é o que almejamos”, acrescenta.

O texto é de Josimar Melo, na Folha de São Paulo

Com o fiasco do Enem, só resta aos jovens transar o ano inteiro

Jovem, aperte seu cinto de castidade: o governo não quer que você transe. Em pleno 2020, o Brasil quer promover políticas de abstinência sexual. “Escolhi esperar”, diz o movimento, que ironicamente faz muito sucesso em países atrasados, onde esperar virou um hábito. Afinal, pra quem espera há 500 anos por reforma agrária, o que é que custa esperar uns aninhos por um boquete?
Não é a primeira vez que esse governo quer controlar seus órgãos. Primeiro, Bolsonaro tentou controlar seu intestino, pedindo que você fizesse cocô dia sim, dia não. Bolsonaro propôs uma alternativa mais barata ao saneamento básico: a abstinência de cocô. Agora é a vez da abstinência de pinto e de pepeca, uma alternativa barata às aulas de educação sexual.
O argumento, devo admitir, faz algum sentido: “A única maneira realmente segura de não engravidar é não transar”. Devo alertar, no entanto, que há controvérsias sobre a eficácia do método. Maria, por exemplo: não transou. Olha no que deu. 
Todo cristão deveria saber que a abstinência não funciona. Se funcionasse, a gente não estaria em 2020, mas em 5780, sem comer porco e fazendo babyliss no cabelo ao redor das têmporas. Todo o cristianismo deve sua existência ao fato de que Deus não respeita o hímen de ninguém. Se ele quiser te engravidar, amigo, babau. Não precisa nem ter útero. “Me dá aqui uma costela. Pronto.”
Damares, se você quiser que o povo não transe, talvez seja melhor parar de falar em Deus. Os países que têm menos gravidez na adolescência são, também, os mais laicos. Esse papo de pecado dá uma vontade danada de cometer. Abstinência gera desejo. Pra quem tá de jejum, farinata é Amandita. Pra quem tá com sede, água da Cedae é cerveja.
Dizer que “Deus tá vendo”, de alguma maneira, atiça o pessoal —todo mundo capricha mais quando tem uma webcam. Pior ainda é a ideia de que Ele “está no meio de nós”. Qualquer rapidinha vira um ménage. 
Tem coisas, no entanto, que broxam. O Estado devia investir em fomentá-las. Por exemplo: longas horas de estudo. A escolaridade de um povo é inversamente proporcional à taxa de gravidez na adolescência.
Quer que o pessoal pare de transar? Põe todo mundo na faculdade. Mas vai ter que conversar com o Weintraub. Com o fiasco do Enem, não sobrou alternativa a essa juventude senão transar o ano inteiro.

Texto de Gregório Duvivier, na Folha de São Paulo

quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

Paulo Guedes age como uma frequentadora do shopping Iguatemi, cliente da loja Sinhá

Durante uma conferência no Fórum Econômico Mundial, em Davos, Paulo Guedes declarou que “o pior inimigo do meio ambiente é a pobreza”. Para o ministro da Economia, pessoas pobres são as maiores causadoras do desmatamento e da poluição, “porque precisam comer”.
Ele já tinha mostrado sua aversão às classes mais baixas, quando as responsabilizou pela própria situação financeira. Para ele, é culpa do pobre gastar todo o dinheiro para pôr comida na mesa. O certo seria aplicar no Tesouro Direto.
Paulo Guedes representa exatamente a fatia da sociedade que o defende. Aquela pequena parcela mais rica da população que usa a “meritocracia” como desculpa por achar normal ver crianças dormindo na rua. “Ah, se os pais tivessem investido o salário, não estariam nessa situação. Estariam abrindo uma startup.”
Ele age como a frequentadora do shopping Iguatemi, cliente da loja Sinhá, que faz cara feia quando divide elevador com funcionário. Que paga uma miséria para empregada trabalhar 12 horas por dia e ainda a acusa de ter roubado o comida da despensa.
Ele representa o eleitor cansado de corrupção, mas que compra imóvel com dinheiro passado por fora.
Que traz importado sem pagar imposto, mas acha que muambeiro é coisa de pobre. A blogueira que faz “namastê” em Fernando de Noronha, hospedada em pousada construída ilegalmente em área de preservação. Mas vota no Bolsonaro porque basta de injustiça.
Para Guedes, o maior inimigo do meio ambiente não é o rico, que anda de SUV a diesel e come um bife de Kobe importado do Japão, mas do pobre que anda quatro horas prensado em um ônibus para
pôr uma salsicha no prato.
Assim como os eleitores “liberais”, que votaram num defensor de tortura e preconceito em nome da economia, Guedes não faz cerimônia ao abrir mão de qualquer princípio moral em nome dos interesses financeiros.
No mesmo Fórum Econômico de Davos, o ministro faz de tudo para mostrar aos investidores que o Brasil tem uma democracia estável. Isso depois de ameaçar a população insatisfeita com um AI-5. A arrogância dele termina onde está o dinheiro.
Para Paulo Guedes, a maior causa da pobreza é o pobre. E ele não pretende extingui-los tornando-os mais ricos.

Texto de Flavia Boggio, na Folha de São Paulo.

Sempre anunciaram o fim do mundo, mas agora não é a Bíblia, é a comunidade científica

Toda a nossa sociedade se baseia na ideia de que a gente herdou o mundo dos nossos antepassados, e tudo se organiza pra honrar o seu legado. Nosso nome carrega o nome deles, as ruas carregam o nome deles, os estádios, as cidades, as doenças, as ideias. “I see dead people”, dizia o garoto de “O Sexto Sentido” —e ele não estava maluco. 
As leis que nos governam foram escritas, em maioria, por gente que já morreu. Os discursos que nos moldaram? Não tá mais aqui quem falou. O brexit foi votado por gente que não estará mais viva quando ele ocorrer. “Os vivos são e serão cada vez mais governados pelos mortos”, dizia Auguste Comte, um morto que nunca imaginou que governaria o Brasil. 
Wendell Berry, poeta e ambientalista, foi quem primeiro propôs a inversão: “Nós não herdamos o mundo dos nossos antepassados, nós pegamos emprestado dos nossos filhos”. O mundo é uma casa alugada e o proprietário acabou de nascer. Normal que esteja revoltado com o estado em que ela se encontra. A geração anterior pensa que é dona do mundo, mas é o cupim.
“Todo millennial é um mimado! O jovem tem tudo de mão beijada e nunca tá feliz.”
Por “tudo” eles querem dizer: um smartphone, um wifi e uma patinete elétrica. Obrigado por tudo, foi muito legal da parte de vocês, mas acho que o jovem trocaria o iPhone X por alguma perspectiva de futuro.
Greta Thunberg não deveria ter substituído a “paixão” pela “raiva”, reclamou o Eduardo Jorge, que continuou: “Mais compaixão e menos ressentimento vai nos ajudar mais”. Admiro a autoestima desse político que teve menos de 1% de intenção de voto à vice-presidência e continua ensinando estratégias de comunicação. Tivesse mais humildade, estaria se perguntando por que o discurso de Greta comove tanta gente e o dele não.
É fácil manter a placidez quando você vai morrer antes do mundo. A raiva é um direito inalienável de uma menina que vai ver o mundo acabar antes dela.
Sempre anunciaram o fim do mundo, é claro, mas agora não é a Bíblia nem Nostradamus, é a comunidade científica —as mesmas pessoas excêntricas que dizem que a Terra é redonda. Negar o apocalipse iminente, hoje, é uma forma de terraplanismo.
Trump, Bolsonaro, Putin todos devem morrer antes do mundo. O fim do mundo, pra eles, é indiferente. Não vão estar aqui mesmo. Abaixo os mortos e todos os que querem que o mundo morra junto com eles.
Todo poder às pirralhas, aos secundaristas, aos recém-nascidos, a todos os que não têm planos de morrer tão cedo.

Texto de Gregório Duvivier, na Folha de São Paulo

quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

Não se fala sobre o que vem depois do 'felizes para sempre' quando se é a única negra na família real

Desde que o tempo é tempo, bravos príncipes salvam donzelas em apuros, presas em torres ou envenenadas por maçãs batizadas. A história, tal qual um conto de fadas, assim se repetiu, até tomar um rumo diferente, com o nascimento de um príncipe em terras britânicas. 
Mal chegou ao mundo, o infante já tinha seu destino traçado: ser o terceiro na linha de sucessão da coroa. Era uma posição ingrata, já que, em pleno século 20, príncipes não morriam mais por golpes de espada ou tuberculose.
É lógico que pertencer à família real tem suas vantagens. Não precisa se preocupar com boletos ou limpar uma calha entupida. Porém, uma vida fadada a frequentar chás da tarde pode ser um pouco enfadonha. Isso sem contar a maior das desventuras, mais hostil do que dragões medievais, a imprensa marrom inglesa. 
Tudo mudou com a chegada de uma bela donzela vinda da Califórnia. Diferentemente das princesas dos contos antigos, essa não estava presa em uma torre, tampouco comeu uma maçã batizada. Era uma atriz de sucesso, feminista, ativista e, pasmem, divorciada. Também não era parente direta de nobres, mas de escravos das plantações de algodão do sul dos Estados Unidos. Alguns, coincidentemente, trazidos a mando do heptavô do príncipe. Mundo pequeno.
O encontro do jovem herdeiro com a plebeia tinha tudo para ser um conto de fadas. Todavia, ninguém fala sobre o que vem depois do “felizes para sempre”. Principalmente quando se é a única negra na família real. 
Em pouco tempo, o dragão da imprensa marrom cuspiu críticas à princesa. Atacaram suas roupas, seu perfume, seu cabelo, até a aparência do seu filho.
Mas os dragões estão acostumados a atacar princesas indefesas. Ali não era o caso. Nossa heroína (sim, se você chegou até aqui e não entendeu quem é a heroína da história é porque não prestou atenção) é uma guerreira, do tipo que não leva desaforo para casa. 
Durante um dos chás da tarde, ela se levantou e bradou: “Olha aqui, queridinhos, para cima de mim, não!”. Pegou seu príncipe, sua criança e voltou para a América.
Esqueçam os antigos sonhos de princesa. Nos novos contos de fada, quem precisa ser salvo é o príncipe.
E viveram felizes para sempre.

Texto de Flavia Boggio, na Folha de São Paulo

Existem dois tipos de pais: os exaustos e os ausentes

Bom dia, o sol já nasceu lá na fazendinha, diz a canção, e minha filha, que acorda às 5h25, junto com o bezerro e as galinhas. Sim, já tentamos instalar um blecaute. Não fez diferença. Acho que ela tem um informante lá fora. No primeiro raio de sol, mesmo que o quarto esteja um breu, ela abre seus olhos imensos e pergunta: “Quem qué bincá comigo?”. Parece adorável, e realmente seria, se não fossem 5h25.
(Claro, tudo poderia ser mais fácil se ainda houvesse horário de verão. Bolsonaro, queria que soubesses que todo pai e toda mãe de bebê, todo dia de manhã, durante o verão inteiro, te amaldiçoa. E o resto do ano também, por outros motivos)
Às 5h25, a gente bate par ou ímpar e um de nós “binca” até as 7h. A gente troca os turnos ou, no melhor dos casos, a avó que mora perto vem buscá-la, e então ambos dormem mais um pouco. Deus salve a avó que mora perto.
Janeiro significa férias da escolinha, e férias da escolinha significam papai e mamãe inventando 15 horas seguidas de brincadeira —com uma horinha de sono no meio que os pais geralmente usam pra ir ao banheiro e checar o Instagram.
Eis que domingo os avós mineiros vieram buscá-la para uma muito aguardada semana em Araguari. Deus salve os avós mineiros. Faz um mês que minha mulher e eu imaginávamos tudo o que poderíamos fazer com essa semana de férias dentro das férias. Pensei em voltar a tocar trombone, escrever um romance e sair pra beber todos os dias, além de ver todos os filmes indicados ao Oscar. 
No primeiro dia, a euforia. Fui num samba, vi “Dois Papas”, liguei pro meu professor de trombone, marquei aulas. No segundo dia acordei às 5h35 sem despertador e não consegui mais voltar a dormir. Fui pro quarto dela e cheirei sua fronha.
A partir daí foi ladeira abaixo. Comecei a ver vídeos antigos dela e já faz cinco horas que me pergunto se ela ainda vai se lembrar de mim quando voltar.
Existem dois tipos de pais: os exaustos e os ausentes. E ambos estão culpados. O pai que dorme às sete horas da noite num sábado se lamenta por ter perdido a vida social. O pai que bebe no sábado e passa o domingo de ressaca se arrepende amargamente de ter bebido na véspera (poucas coisas são tão desesperadoras quanto o combo ressaca mais criança).
Não conheço quem tenha resolvido essa equação. Acho que paternidade em latim significa culpa. Não há nada a ser feito. Quer dizer, há sim. A volta do horário de verão. Volta, cacete.

Texto de Gregório Duvivier, na Folha de São Paulo

quinta-feira, 9 de janeiro de 2020

Estrepitosa ignorância

Em dezembro do ano passado, o professor Brito Cruz, diretor-científico da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), apresentou a uma plateia de colegas, reunidos pela Academia Brasileira de Ciências, dados pouco conhecidos sobre o sistema brasileiro de ciência e tecnologia e sobre o lugar que nele ocupam as universidades públicas de pesquisa. Da fala do professor destaco quatro coisas que, se não fosse tão primitivo, o governo deveria saber.
As universidades são o habitat natural de todos quantos se dedicam a produzir conhecimentos no Brasil. Nelas trabalham, em valores arredondados, 80% dos 330.670 pesquisadores ativos no país; 18% atuam em empresas e 2% no governo.
Por outro lado, 2/3 do pessoal em carreiras de pesquisa e desenvolvimento nas empresas se formou em oito universidades públicas, entre as quais se destacam as três estaduais e uma federal localizadas no estado de São Paulo.
Ao contrário do que sustenta a sabedoria convencional, aqui a colaboração entre universidades e empresas é importante e se expande. Entre 1980 e 2018, cresceu em média 14% ao ano o número de artigos científicos publicados em coautoria por pesquisadores sediados em empresas e universidades. A colaboração é especialmente estreita e significativa entre oito universidades públicas e 25 empresas brasileiras e multinacionais, entre as quais a Petrobras, a Novartis, a Vale do Rio Doce, a Pfizer, a IBM e a Embraer.
Finalmente, em toda parte, o avanço da pesquisa nas universidades depende de financiamento público. Isso é verdade tanto para o Brasil quanto para países mais ricos e desenvolvidos. Segundo Brito Cruz, a porcentagem de recursos privados investidos nas três universidades públicas paulistas é pequena —nem sequer alcança 6% de seus orçamentos—, mas semelhante ao valor observado em um conjunto de universidades norte-americanas de importância equivalente.
Aquelas oito universidades são a vanguarda de um sistema público bem maior e heterogêneo do ponto de vista da vocação para desempenhar funções normalmente atribuídas às instituições universitárias: educação de cidadãos, formação profissional qualificada, produção de conhecimentos novos e sua utilização para melhorar a vida das pessoas.
Para florescer, o sistema universitário público precisa de recursos e de autonomia acadêmica e administrativa, que hoje lhe faltam, para que cada instituição possa escolher e seguir sua vocação. Tudo que um governo que desdenha a ciência e se compraz com sua estrepitosa ignorância não é capaz de prover. Só quer controlar —e destruir.

Texto de Maria Hermínia Tavares, na Folha de São Paulo