Na recepção do hotel, aviso que deixarei uma mala ali por uma noite. “Vou ao campo matar um porco, comer, e então volto”, disse, observando que impacto a declaração provocaria sobre as duas jovens portenhas.
Abriram um sorriso. “Que bom, tenha uma boa viagem”, apenas comentaram. De volta a São Paulo, ante um comentário parecido, as reações foram de horror, descrença, quase repulsa. Tudo o que a maioria não sente ao comprar em qualquer o mercado urbano a calabresa ou o lombinho pudicamente embalados.
Los Cardales. Neste vilarejo, 70 km a noroeste de Buenos Aires, fica o sítio onde ocorrerá a “faena”, a matança do porco promovida pelo proprietário do restaurante Don Julio, a melhor parrilla da Argentina.
O programa quase foi adiado pela previsão de tempestade (ou, no termo mais dramático dos argentinos, de tormenta). Mas contrariando os prenúncios, ela desabou ruidosamente só durante a madrugada, dissipando-se ao raiar do dia, que se abriu num sol generoso.
Tudo pronto então para a carneada —expressão também usada no Brasil, originária do espanhol do rio da Prata, para descrever o abate e o corte do gado— em que aquela turma de cozinheiros, ao lado de apreensivos jornalistas, testemunharão o corte no pescoço que fará a vida do porco se esvair em sangue recolhido num balde, enquanto os guinchos de sua agonia reverberam naquela placidez rural.
“Você está bem? Tem certeza de que quer participar?”, me pergunta Pablo Rivero. É uma experiência forte, avisa pela enésima vez. Há três anos ele promove esse ritual com membros de sua equipe, mas também convidados a quem quer mostrar sua preocupação com a forma como encaramos o sacrifício animal.
“Diz respeito à nossa filosofia e à ética de nosso trabalho”, afirma Rivero. “Nós trabalhamos com animais que são sacrificados para termos alimento. A melhor maneira de entender esse dilema é vivê-lo, para ter sua real dimensão e dar verdadeiro valor ao animal. É uma experiência transformadora, que nos vincula com a comida de outro ponto de vista.”
O ato impressiona os neófitos. Na minha infância, numa casa com quintal em São Paulo, meu pai, criado num sítio do agreste pernambucano, comprava galinhas vivas (ou peru, no Natal) para deixá-las soltas até que lhes quebrassem o pescoço, a caminho da panela.
Mas não havia ainda presenciado o abate a sangue frio de uma porca de dois anos de idade e 180 quilos. Uma aflição que começa quando o animal é deitado, amarrado e carregado para a mesa de madeira onde viverá seus últimos minutos.
E são vários minutos. Imobilizada por meia dúzia de homens, ela tem o pescoço examinado pelo experiente Guido Tassi, cozinheiro e especialista em embutidos que é também sócio (com Rivero) do restaurante El Preferido, na capital argentina.
Há quase 20 anos ele começou, com amigos cozinheiros, a carnear porcos que compravam no verão, alimentavam e abatiam no inverno para fazer embutidos para seu consumo.
Agora ele faz a precisa incisão, e o sangue começa a jorrar num balde do qual, misturado com sal, é recolhido para mais tarde compor a melhor morcilla —ou chouriço— que já experimentei.
Mas neste momento ainda é difícil olhar para o porco como alimento —ele é um animal em agonia. O animal que vai nos alimentar, e cuja transformação merece ser observada não com salivação, mas com respeito e até uma ponta de contrição.
Cinco longos minutos finalmente se escoam junto com a vida do animal. Que ainda não parece comida, enquanto mantém sua pelugem. Hora de escanhoar demoradamente seu corpo com facões e água quente.
Sem os pelos, ele ganha a tonalidade rosada mais familiar. Hora de abrir a barriga e retirar os órgãos, que serão aproveitados. Logo, separado da cabeça e das patas, o corpo é suspenso no galho de um rijo carvalho e serrado ao meio.
Enquanto cabeça, miúdos e parte das peles e gordura já passarão para o preparo dos embutidos, as duas metades do porco —agora já capazes de despertar apetite— passarão toda a noite penduradas em repouso.
Tassi lidera, com ajudantes, a transformação do animal em iguarias. Ele explica que o porco foi criado solto e alimentado com milho e vegetais, nada de ração.
“Nós cozinheiros trabalhamos com a matéria-prima morta; entender sua origem é uma mudança substancial. Aqui está a chave para conhecer o que comemos”, diz.
O dia seguinte é de festa. Em torno da fogueira se assam cordeiros, mas também os frutos do ritual iniciado na véspera —a costela do porco, linguiças frescas, a morcilla, “queijo de cabeça” (embutido de língua, rins, pele e pés), depois de todos provarem uma sobrasada (receita espanhola) do ano anterior (gordura e aparas de porco com pimentão). Uma celebração à vida que os animais nos proporcionam.
“Conhecer esse processo desde o início ajuda a transformar o consumidor, que só pensa na gôndola e no produto terminado num açougue, em algo mais, em um homem que é parte da natureza e que tem que atravessar esse dilema de sacrificar para se alimentar”, diz Rivero.
“Faz com que o homem se vincule mais a esse animal, se interesse em como foi criado, alimentado, como foi seu bem estar e seu sacrifício. O valor que se dá ao produto depois desta experiência é o que vai transformar a produção animal nos próximos anos —ao menos é o que almejamos”, acrescenta.
O texto é de Josimar Melo, na Folha de São Paulo.
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