A celebração da queda de quase 20% no número de homicídios dolosos no estado do Rio de Janeiro em 2019, divulgada semana passada pelo Instituto de Segurança Pública (ISP), não pode esconder um dado igualmente importante e intolerável.
A taxa de mortos pela polícia foi de 10,5 para cada 100 mil habitantes no ano passado, o que representa 30,3% de todas as mortes violentas no estado.
Há muitas razões para acreditar que a brutalidade policial é um indicativo das tendências autoritárias de um país.
Ao contrário do que muitas pessoas podem acreditar, a violência policial coloca em xeque o uso legítimo da força, essência do Estado democrático de Direito.
Pode também ser um lembrete de que o Estado perdeu o controle sobre sua responsabilidade básica de prover segurança pública para todos.
Portanto, o fato de que três em cada dez mortes intencionais no Rio tenham sido cometidas por policiais no ano passado não tem nada de normal e precisa ser contestado pela sociedade, sobretudo ao olharmos para o contexto histórico e nacional.
Os 1.810 casos representam crescimento de 18% com relação a 2018 e o maior número de vítimas desde o início da série histórica, em 1998.
E o Rio de Janeiro não é um caso isolado. Em São Paulo, houve um aumento de 12% no número de mortes praticadas por policiais civis e militares em serviço em 2019.
Nacionalmente, o primeiro semestre registrou 2.886 pessoas mortas por policiais, 120 a mais que no mesmo período de 2018, de acordo com dados do Monitor da Violência. A alta foi puxada por dez estados.
Em meio a esse cenário, as reduções de crimes são, por vezes, usadas para legitimar o abuso da força. A relação no entanto, é falsa. No caso do Rio, Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, teve uma das mais significativas reduções das mortes por intervenção de agente do Estado (24%) em 2019, e também uma importante queda de homicídios dolosos, de 17%.
Documento produzido pelo Ministério Público do Rio de Janeiro em setembro analisou os números de homicídios dolosos e as mortes por intervenção de agentes do Estado por Áreas Integradas de Segurança Pública (Aisp), entre janeiro e agosto de 2019. A conclusão é que não existe padrão na relação entre os dois fenômenos.
A narrativa enganosa de que uma polícia que mata muito pode conter a violência é disseminada e, em alguns casos, promovida por autoridades que, não por acaso, costumam expressar simpatia por restrições às liberdades civis, à expansão da impunidade das forças de segurança e à redução de freios e contrapesos sobre a democracia. No Brasil, temos exemplos disso nas esferas estaduais e federal.
Vale lembrar que essa estratégia coloca em risco a vida dos próprios agentes de segurança. Pelo menos 343 policiais foram mortos em 2018, como mostra o Anuário Brasileiro de Segurança Pública.
Milhares sofrem com lesões físicas e problemas de saúde mental, números também inaceitáveis. Além disso, cidadãos que são repetidamente expostos a violações dos direitos humanos são menos inclinados a denunciar crimes, auxiliar em investigações ou testemunhar, o que alimenta o ciclo de insegurança.
Uma das tragédias do Brasil é que, depois de anos de brutalidade —incluindo uma ditadura militar— muitos ficaram insensíveis ou anestesiados. A sociedade precisa despertar.
Líderes estão reduzindo problemas complexos a discussões binárias e reforçando a violência como solução. A história do Brasil e do Rio mostra claramente que esse não é o caminho. A próxima geração de líderes precisará entender bem isso para que nossa democracia possa avançar.
Texto de Ilona Szabó de Carvalho, na Folha de São Paulo.
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