Considerada uma das cidades mais bonitas do mundo, a cidade de Dresden (a Florença do norte) foi reduzida a cinzas depois de três dias de bombardeio, em fevereiro de 1945.
O uso de bombas incendiárias pelos aviões britânicos e americanos foi agravado pelo desencadeamento de uma "tempestade de fogo". O fenômeno surge quando o calor de um incêndio termina sugando o ar em volta do seu foco inicial, o que naturalmente alimenta novas chamas.
Existiam fábricas e entroncamentos ferroviários em volta daquela cidade alemã, mas nada que justificasse a extensão do morticínio. Os cálculos das autoridades municipais, feitos e refeitos, convergem em cerca de 25 mil mortos, mas como Dresden naquela época estava cheia de refugiados, muitas vítimas não foram registradas.
Simpatizantes do nazismo falam em 200 mil ou mais. Quando escreveu "Matadouro Cinco", em 1968, o americano Kurt Vonnegut Jr. fixou-se em 130 mil, o que ultrapassaria a marca de Hiroshima, com 80 mil mortos diretamente pela bomba atômica e pelos incêndios que se seguiram.
O romance de Vonnegut está sendo relançado no Brasil pela editora Intrínseca, em comemoração dos 50 anos de sua publicação original.
Descendente de alemães, Vonnegut era soldado do exército americano quando foi capturado pelos nazistas já no fim da Segunda Guerra.
Foi levado como prisioneiro para Dresden, onde o confinaram num antigo matadouro; já não se matavam mais bois e vacas naquele tempo de guerra.
A óbvia ironia da situação deu o título para seu romance, que conta as experiências de Billy Pilgrim, rapaz despreparado para o combate, que só se salva de ser morto pelos próprios companheiros porque os alemães o prendem antes.
"As partes da guerra, pelo menos, são bem verdadeiras", diz o próprio Vonnegut no início do romance --que já seguia o hábito pós-moderno de incluir no texto a pessoa do autor e as peripécias da sua publicação.
É também "pós-moderna" a estratégia do autor em misturar os procedimentos de romance sério com os da ficção científica barata. Com prazer e desconforto, o leitor se descobre diante de um livro muito engraçado (e olhe que, em geral, eu detesto o humor negro).
Quanto de mau gosto cabe numa literatura de bom nível? "Matadouro Cinco" expandiu, sem dúvida, os limites permitidos.
Não porque existam descrições horrorosas de cadáveres queimados ou da deformação das vítimas. Os efeitos do bombardeio ocupam poucos parágrafos desse livro rápido de ler. De resto, Billy Pilgrim estava abrigado no matadouro, de modo que, quando sai para o ar livre, não vê mais do que uma paisagem lunar, um deserto de pó e cinzas.
O mau gosto de "Matadouro Cinco" está em outra parte. O romance é montado em torno das memórias disparatadas de Billy Pilgrim, que foi abduzido num disco voador pelos habitantes de um planeta distante. Os tralfamadorianos ignoram a distinção entre presente, passado e futuro.
Pilgrim —e seu sobrenome, "peregrino", é outra ironia fácil— pula de um lado para outro no tempo. Conhece não apenas o momento de sua morte como também os prazeres do convívio com uma terráquea belíssima, tipo loira burra, levada como ele à jaula de vidro de um zoológico no planeta Tralfamadore.
É trash, naturalmente, assim como os personagens —um americano nazista ou um fracassado escritor de ficção científica— que Billy Pilgrim encontra no caminho.
Consolidou-se a tese de que grandes massacres —em especial o genocídio dos judeus— desafiam qualquer representação. Expor o inominável num filme ou relato ficcional sempre haverá de diminuir o horror que aconteceu na realidade.
A solução seria o puro e sóbrio testemunho, em primeira pessoa, do que se viveu —como fez de forma inesquecível Primo Levi em "É Isto um Homem?".
O método maluco de Kurt Vonnegut não deixa de ser uma alternativa. O contraste se dá entre a imaginação desvairada da narrativa e a objetividade muda, morta e imutável dos fatos reais.
É também o contraste que se dá entre a demência frívola da cultura americana do entretenimento e, de outro, a barbárie de outros bombardeios incendiários: aqueles que os Estados Unidos promoviam no Vietnã, quando o livro foi publicado.
Isso foi em 1968; mas, como no planeta de Vonnegut, o passado está sempre a ponto de reaparecer.
Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo.
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