Depois de uma reunião longa para tentar aprovar sem sucesso um comercial de bebida alcoólica, meu chefe da época me disse, na carona de volta para a agência, que achava que eu deveria usar sapatos mais abertos. Ele falou algo como: “Você é bonita, Tati, mas precisa de outros sapatos. Dê preferência para algum que faça parecer que o seu pé é maior. Pés muito pequenos são bem estranhos”.
Eu não tinha nem 30 anos e resolvi encarar o dito como um conselho. Pelo menos ele não estava dando em cima de mim ou me demitindo, o que fazia semanalmente com outras mulheres.
Logo depois que saí da propaganda e comecei a trabalhar com roteiros para cinema e televisão, um produtor me pediu que parasse de fazer caretas enquanto pensava. Ele disse que ficava me observando de sua sala e precisava comentar isso. “Você é bonita, Tati, mas mexe demais a boca, os olhos, as mãos.” Pensei em responder que é o que costuma acontecer com seres vivos, mas, na época, eu ainda nem tinha 30 anos e resolvi absorver aquela crítica como algo construtivo.
Esses dias me perguntaram por onde andava fulano, que por anos tinha sido um dos meus melhores amigos. Eu dei um longo suspiro de preguiça e respondi: “Ai, sei lá, peguei bode”. “Mas por quê?”, a pessoa insistiu. “Vocês estavam sempre tão juntos, tão animados.” É verdade, a gente vivia rindo. E a piada variava bem pouco: ou era sobre o meu cabelo ou sobre a minha roupa.
Na hora me voltou esta cena: eu entro no carro dele, cheia de saudade, e ele aponta minha calça: “Nós vamos jantar ou você vai pedir esmola na porta do restaurante?”. Morri de rir, como sempre. Mas por dentro morri mais um pouco, como sempre. Tentei argumentar que era necessário ser muito chique e madura pra usar moletom e que, como ele não era um pretendente, me dei ao luxo de estar ainda mais à vontade. Porém aí é que estava o problema. Alguns homens não suportam estar ao lado de uma mulher não montada. Isso os ultraja como machos inseguros que são. Uma mulher não pode ser apenas uma pessoa normal, cansada, tranquila, profissional, amiga, amamentando, jantando, dormindo. Ela tem que ser um objeto o tempo todo.
Quando eu tinha sete anos, tive uma alergia que cobriu meu corpo inteiro com pintas vermelhas. Era verão e eu tinha, é importante frisar aqui, sete anos. Minha mãe me botava vestidinhos de alcinha, mas meu pai e alguns tios comentavam: “Aff, esconde essas manchas dela”. Minha mãe respondia palavrões,
e eu a amo demais por isso.
e eu a amo demais por isso.
Antes de conhecer meu marido, tive um breve e estranhíssimo affair com um rapaz que vivia me pedindo que escurecesse as sobrancelhas (oi?). O cara era professor da USP e nem assim tive sossego: “Você é bonita, Tati, mas...”.
A maioria dos homens que cruzou meu caminho, fossem namorados, amigos, conhecidos, colegas de trabalho, chefes, parentes, desconhecidos completos na fila da padaria, queria me arrumar. Eles pediam que eu falasse mais baixo ou menos, ou que andasse mais rápido ou devagar. Pediam que eu fosse mais feminina ou menos mulherzinha. Pediam que eu fosse mais dependente ou menos disponível. Pediam que eu consertasse, endireitasse, alinhasse… dentes, colunas, posturas. Pediam que eu não escrevesse sobre eles ou não escrevesse sobre nada além deles. No fundo, o que eles queriam, penso agora, era ver enormes falos tão perfeitos quanto improváveis através dos olhos de uma impossível feminilidade sem furos.
Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo.
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