Pode-se dizer que foi o momento mais maduro de uma carreira que trazia atrás de si uma sequência de filmes marcantes. Desde o início dos anos 1970, Wim Wenders parecia imbuído da tentativa de se servir da linguagem de gênero, em especial do road movie e dos filmes noir, para falar de pessoas deslocadas de seus lugares naturais, tocadas por encontros improváveis e aparentemente impossíveis.
No que ele recuperava o antipsicologismo, ou seja, a compreensão de que uma vida não era o desdobramento de uma personalidade psicológica em desenvolvimento e progressão, de uma de suas maiores influências: Michelangelo Antonioni.
Sua capacidade de reviver como alemão (o que, neste caso, só podia significar como um estrangeiro) os fundamentos da linguagem cinematográfica americana parecia caminhar em um crescendo.
Então veio "Paris, Texas", com seu deserto, suas vidas desertificadas, seu blues traumatizado na guitarra de Ry Cooder. O filme e sua história, sobre um marido e pai que enlouquecera de ciúme, incendiando a própria casa e desaparecendo no deserto, para depois retornar, a fim de procurar aproximar o que ainda poderia ser aproximado e novamente desaparecer.
Depois disso, veio "Asas do Desejo" como a figuração de um encontro que o filme anterior não permitira. Encontro em uma Berlim dividida sobrevoada por dois anjos passivos, que apenas observavam o correr das vidas humanas, mas sem poder fazer muita coisa, com um olhar que misturava complacência e indiferença.
Um desses anjos era Bruno Ganz, o ator que morreu na semana passada. Desde "O Amigo Americano", todos sabiam que se tratava de um grande ator, mas agora havia algo de deslumbrante.
A história de um anjo que se apaixona por uma trapezista, que se humaniza e larga a imortalidade para poder sentir o calor de uma xícara de café, o frio do vento e trabalhar em um circo estava no limite do melodrama e facilmente poderia redundar em fracasso.
Mas todos que viram o filme sabem da força de seu magnetismo e muito disso se deve a Bruno Ganz. Seu olhar surpreso e infantil, seus gestos lentos, como quem descobre uma terra completamente desconhecida e testa a sua segurança, com sua fala de quem está a recitar um poema mesmo quando descreve as cenas banais a que assistira no dia, tudo isso foi marcante para toda uma geração que cresceu nos anos 1990.
O teatro e o cinema guardaram um sentido de "expressão" que se modificou no interior de outras artes após o romantismo. Se, para a música ou para a literatura, expressão significará exteriorização da singularidade de quem serve de suporte à produção das obras, o teatro e o cinema admitirão "expressão" como conformação a um papel, como o desaparecer no interior de um outro.
Uma das maiores ironias do cinema contemporâneo é ver aquele que mais bem soube expressar um anjo aparecer uma década depois como a mais crível representação de Hitler que se tem notícia.
Quando "A Queda" apareceu, não foram poucos os que criticaram Ganz por ter criado um Hitler "demasiado humano". Sua mistura de explosões impotentes de raiva, de certa empatia por algumas figuras, seu ar cansado e rígido: tudo isso retirava Hitler das caricaturas psicológicas e lhe colocava ao alcance da mão, como se ele pudesse ter aparecido em qualquer lugar.
Sua loucura advinha próxima, e o que os críticos de Ganz não entenderam era como essa era a mais aterradora representação da catástrofe. Descobrir que alguém como Hitler, o responsável pela destruição enfurecida de tudo à sua volta, pelo assassinato industrial de milhões, não estava assim tão longe de nós. A força da reflexão sobre a catástrofe é mais presente quando lembramos como o que é monstruoso pode ter nossos traços.
Assim, caminhando do céu ao inferno, Bruno Ganz mostrou o que pode um ator. Quanta vida é capaz de criar aquele que empresta o seu corpo a uma ideia.
Texto de Vladimir Safatle, na Folha de São Paulo.
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