O ópio do excepcionalismo nos EUA
Um nacionalismo nocivo e tipicamente norte-americano
Por SCOTT SHANE
Imagine um candidato à Presidência que falasse abertamente sobre os problemas norte-americanos e por que o país está ficando para trás no cenário mundial.
Esse candidato mítico poderia prometer reverter as péssimas estatísticas de pobreza infantil, declarando ser um ultraje que, entre os 35 países economicamente mais avançados, os EUA estejam em 34° lugar, à frente apenas da Romênia. Poderia citar também que os EUA ocupam apenas a 28a colocação em termos do percentual de crianças de quatro anos matriculadas na pré-escola. Ou mencionar a mortalidade infantil, quesito em que os EUA são superados por 48 países e territórios. Ou ainda mostrar que, ao contrário da fervorosa crença popular, os EUA estão atrás da maior parte da Europa, Austrália e Canadá em mobilidade social.
O candidato poderia tentar agitar a plateia invertendo uma frase familiar em campanhas: os EUA, declararia ele, de fato são o Número Um: em prender seus cidadãos, com um índice de encarceramento bem superior ao de Rússia, Cuba, Irã e China, em obesidade, quesito no qual esmaga facilmente o México, segundo colocado, e em uso energético per capita, com o dobro do consumo dos alemães.
Tal candidato é praticamente inimaginável na cultura política dos EUA. Os norte-americanos exigem constantes garantias de que seu país, seus feitos e seus valores são extraordinários.
Candidatos e presidentes geralmente cedem a isso, incluindo aí o presidente Barack Obama e seu rival republicano, Mitt Romney.
É admissível que os candidatos falem dos grandes problemas nacionais -desde que prometam soluções na mesma frase: "O desemprego é alto demais, então vou criar milhões de empregos". É inadmissível esmiuçar estatísticas que desafiem a noção de que os EUA comandam o mundo.
"As pessoas querem que o presidente seja um animador de torcida, um otimista, o arauto dos tempos melhores que virão", diz o historiador Robert Dallek, especialista em presidentes dos EUA. "Isso está quase incorporado ao nosso DNA."
Essa característica nacional, batizada de excepcionalismo norte-americano, pode inspirar alguns políticos a melhorar nossa autoestima. Mas, numa campanha presidencial, leva os problemas a não ser abertamente descritos e debatidos.
O excepcionalismo norte-americano tem sido defendido ultimamente por conservadores que acusam Obama de não respeitar suficientemente essa noção. Mas a autocensura que isso produz nos políticos é bipartidária.
Os democratas, mais do que os republicanos, evitam olhar para a crise da dívida pública. Já os republicanos, mais do que os democratas, relutam em admitir o aquecimento global. No entanto, os dois partidos preferem não analisar ambas as tendências em profundidade.
Para ambos, seria melhor que desviássemos o olhar desses desafios -porque nós, o povo, preferimos desviar o olhar. Converse com qualquer profissional da política sobre esse fenômeno, e um nome surgirá: Jimmy Carter.
Carter falou desastrosamente sobre uma "crise de confiança" nacional. Perdeu a reeleição para Ronald Reagan, que prometia um "amanhecer na América", e deixou lições indeléveis para candidatos de ambos os partidos: de que o eleitor pode se vingar de quem ousar criticar o país e, implicitamente, o povo.
Trata-se de um tipo peculiarmente norte-americano de nacionalismo. "Os políticos europeus exercem uma liberdade muito maior ao tratar francamente dos problemas sociais", diz Debora Lea Madsen, professora de estudos americanos na Universidade de Genebra. Um político norte-americano que seja sincero demais sobre as falhas do país corre o risco de ser tachado de antiamericano.
As raízes dessa característica norte-americana costumam ser atribuídas a um sermão feito pelo advogado puritano John Winthrop no barco que o levava para participar da fundação da colônia da baía de Massachusetts, há quase cinco séculos.
"Devemos", disse ele, "ser como uma cidade sobre um morro -os olhos de todos estão sobre nós".
A metáfora de Winthrop teve vida longa na retórica norte-americana, sendo citada com destaque tanto pelo presidente John Kennedy quanto por Reagan. Mas se, para Winthrop, a imagem era algo a que a colônia deveria aspirar, para os políticos modernos ela costuma servir para se gabar de um suposto feito, como uma forma de combater os pessimistas e afirmar a grandiosidade norte-americana, a despeito dos fatos.
Texto publicado no The New York Times, reproduzido na Folha de São Paulo, de 29 de outubro de 2012.
Nenhum comentário:
Postar um comentário