Insultos à memória
Em Rondônia, há uma pequena cidade chamada Presidente Médici. Este é o mesmo nome de um estádio de futebol em Sergipe.
Os paulistanos que quiserem viajar de carro para Sorocaba conhecerão a rodovia Castello Branco. Aqueles que procurarem uma via sem semáforos para o centro da capital paulista poderão pegar o elevado Costa e Silva.
Há mesmo alguns paulistanos que moram na rua Henning Boilesen: nome de um empresário dinamarquês, radicado no Brasil, que financiava generosamente a Operação Bandeirante e que, em troca, podia assistir e participar de torturas contra presos políticos na ditadura militar.
Há alguns anos, os são-carlenses foram, enfim, privados da vergonha de andar pela rua Sérgio Fleury: nome de um dos torturadores mais conhecidos da história brasileira. Estes são apenas alguns exemplos da maneira aterradora com que o dever de memória é praticado no Brasil.
Se monumentos, cidades e lugares públicos podem receber o nome seja de ditadores que transformaram o Brasil em um Estado ilegal resultante de um golpe de Estado seja de torturadores sádicos é porque muito ainda falta para que a memória social sirva como garantia de que o pior não se repetirá. Sem esta garantia vinda da memória, os crimes do passado continuarão a destruir a substância normativa do presente, a servir de ameaça surda à nossa democracia.
Lembremos como o Brasil foi capaz de legalizar o golpe de Estado em sua Constituição de 1988. Basta lermos o artigo 142, no qual as Forças Armadas são descritas como "garantidoras dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem". Ou seja, basta, digamos, o presidente do Senado pedir a intervenção militar em garantia da lei (mas qual? Sob qual interpretação?) e da ordem (social? Moral? Jurídica?) para legalizar constitucionalmente um golpe militar.
Tudo isso demonstra como ainda não há acordo sobre o que significou nosso passado recente. Por isso, ele teima em não morrer. Um núcleo autoritário e violador dos direitos humanos nunca foi apagado de nosso país. Não é por acaso que somos o único país latino-americano onde o número de casos de tortura em prisões cresceu em relação à ditadura.
O que não deve nos surpreender, já que ninguém foi preso, nenhuma mea-culpa dos militares foi feita, ninguém que colaborou diretamente com a construção de uma máquina de crimes estatais contra a humanidade foi objeto de repulsa social.
Que a criação de uma Comissão da Verdade possa, ao menos, fazer com que o Brasil pare de insultar a memória dos que sofreram nas mãos de um Estado ilegal governado por usurpadores de poder.
Que ninguém mais precise morar em Presidente Médici.
Em Rondônia, há uma pequena cidade chamada Presidente Médici. Este é o mesmo nome de um estádio de futebol em Sergipe.
Os paulistanos que quiserem viajar de carro para Sorocaba conhecerão a rodovia Castello Branco. Aqueles que procurarem uma via sem semáforos para o centro da capital paulista poderão pegar o elevado Costa e Silva.
Há mesmo alguns paulistanos que moram na rua Henning Boilesen: nome de um empresário dinamarquês, radicado no Brasil, que financiava generosamente a Operação Bandeirante e que, em troca, podia assistir e participar de torturas contra presos políticos na ditadura militar.
Há alguns anos, os são-carlenses foram, enfim, privados da vergonha de andar pela rua Sérgio Fleury: nome de um dos torturadores mais conhecidos da história brasileira. Estes são apenas alguns exemplos da maneira aterradora com que o dever de memória é praticado no Brasil.
Se monumentos, cidades e lugares públicos podem receber o nome seja de ditadores que transformaram o Brasil em um Estado ilegal resultante de um golpe de Estado seja de torturadores sádicos é porque muito ainda falta para que a memória social sirva como garantia de que o pior não se repetirá. Sem esta garantia vinda da memória, os crimes do passado continuarão a destruir a substância normativa do presente, a servir de ameaça surda à nossa democracia.
Lembremos como o Brasil foi capaz de legalizar o golpe de Estado em sua Constituição de 1988. Basta lermos o artigo 142, no qual as Forças Armadas são descritas como "garantidoras dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem". Ou seja, basta, digamos, o presidente do Senado pedir a intervenção militar em garantia da lei (mas qual? Sob qual interpretação?) e da ordem (social? Moral? Jurídica?) para legalizar constitucionalmente um golpe militar.
Tudo isso demonstra como ainda não há acordo sobre o que significou nosso passado recente. Por isso, ele teima em não morrer. Um núcleo autoritário e violador dos direitos humanos nunca foi apagado de nosso país. Não é por acaso que somos o único país latino-americano onde o número de casos de tortura em prisões cresceu em relação à ditadura.
O que não deve nos surpreender, já que ninguém foi preso, nenhuma mea-culpa dos militares foi feita, ninguém que colaborou diretamente com a construção de uma máquina de crimes estatais contra a humanidade foi objeto de repulsa social.
Que a criação de uma Comissão da Verdade possa, ao menos, fazer com que o Brasil pare de insultar a memória dos que sofreram nas mãos de um Estado ilegal governado por usurpadores de poder.
Que ninguém mais precise morar em Presidente Médici.
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