terça-feira, 31 de maio de 2011

Política é o Diabo

Política é o diabo

FRANCO ZEFFIRELLI passou temporadas no Rio e numa delas montou uma ópera no Municipal. Convivi com ele, naquela ocasião. A ideia original era uma apresentação de "Tosca", mas ele preferiu "A Traviata", que é uma adaptação da "Dama das Camélias". Insisti pela ópera de Puccini, embora nada tivesse contra a obra de Verdi.
Ele não apreciava o drama de Victorien Sardou, no qual Puccini buscou a história de "Tosca", um quadro bastante amplo das lutas políticas do "ottocento", quando Napoleão invadiu a Itália, libertando-a do absolutismo e da tirania.
O amor entre a cantora Floria Tosca e o pintor Mario Cavaradossi foi um pretexto para Sardou colocar em cena a luta contra a tirania -quando, por mais que pareça absurdo, Napoleão, o invasor, era também o libertador.
Puccini havia assistido ao drama de Sardou em Paris e ficara impressionado não com o "background" histórico da peça, mas com a interpretação de Sarah Bernhardt. Até hoje, todas as Toscas do mundo copiam a sua atuação. Foi assistindo Sarah Bernhardt que Puccini decidiu-se pela obra de Sardou, dando-lhe a eternidade de uma das óperas mais populares.
Bem, o diretor Franco Zeffirelli que aprecia o Puccini de "Turandot" (é famosa a sua versão no Scala) e adora "La Bohème", simplesmente não se entusiasmava com uma ópera em que um preso político é torturado em cena aberta e morre fuzilado, porque se recusou a delatar um subversivo (em tempo: aqui no Brasil, já vimos esse filme, ou melhor, essa ópera). Zeffirelli acabou explicando a razão do seu repúdio: "A política é o Diabo!" Ele falou assim mesmo, como se a palavra "Diabo" começasse com letra maiúscula.
E não precisou falar mais: entendi o que ele quis dizer. Se o Diabo deixasse de existir, ou se nunca existiu realmente, tanto faz. Existe a política e todas as funções do Diabo podem ser exemplarmente cumpridas pela política.
Associar Zeffirelli, Puccini, Tosca e o Diabo pode parecer gratuidade, mas nem tanto. No dia a dia da luta ideológica, no fogo cruzado e nem sempre leal das posições e contestações, o homem transformado em animal político coloca a ideologia acima de qualquer outro valor. Daí ser justo e meritório, em nome da Causa (e não importa que causa seja), mentir, matar, roubar, difamar, torturar, aniquilar o adversário. Que muitas vezes nem chega a ser adversário, mas um amigo e aliado que, em algum momento, pensa com a própria cabeça e discorda da tese adotada pelo partido, pelo grupo, pela maioria eventual que domina a ala que detém o poder.
A luta ideológica do nosso tempo -como a de qualquer outro tempo- custou milhares de vítimas que foram assassinadas pela repressão. Mas milhares de vítimas também foram mortas, física e moralmente, pelos próprios companheiros, fanatizados pela verdade ocasional, pela estratégia ou pela tática da situação. Daí a constatação de que a revolução devora os seus filhos.
Exemplo: os comunistas condenavam à ignomínia os companheiros que acidentalmente discordavam da linha do partido. O chão ideológico está coberto de cadáveres mutilados pela Causa. Jorge Amado, que felizmente naquela época não chegou à condição de cadáver, sofreu discriminação e até mesmo boicote, porque, sem nunca abandonar o socialismo, não dizia amém aos donos da verdade gerada pelo Comintern.
Lembro também Agildo Barata, que foi acusado de roubar a caixa do partido (o velho PCB não tinha imaginação, e qualquer desvio ideológico terminava com a acusação de roubo da caixa).
Agildo foi um herói de 1930, podia ter sido um dos poderosos de sua época desde que acompanhasse os colegas militares que se bandearam para o grupo que colocou Getúlio Vargas à frente do movimento que derrubou a República Velha.
Ele preferiu continuar a revolução na qual acreditava, liderando a revolta de 1935. Preso, caluniado, odiado e perseguido pelo governo, manteve-se fiel ao partido até que, depois do primeiro terremoto na versão soviética do comunismo, passou a ser odiado, perseguido e caluniado pelos companheiros da véspera.
A política, como "la donna" da ópera de Verdi, é "mobile". Por meio dela, o Diabo não se dá por vencido, aliás, nunca se deu, desde que foi expulso do céu, na primeira rebelião que para sempre infernizaria, literalmente, demônios e homens.


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