Depois de certa idade, é bom ir tomando providências.
Não se trata só de testamento. Nem de instruções para o funeral. É preciso cuidar de suas contas na internet. O Facebook, por exemplo, oferece diversas opções. Já escolhi a minha, que é morrer e pronto.
Mas você pode transformar a sua conta em “memorial”. O Facebook guarda todas as suas informações, acrescentando ao perfil uma frasezinha compungida: “Em memória de… (ponha seu nome)”. Será um túmulo inviolável. Ainda bem. Imagine se pudessem mexer nas suas coisas, fazer de você amigo de Donald Trump, palmeirense ou são-paulino.
Não está satisfeito? Clique em “configurações de herdeiro” e nomeie um administrador para sua página.
Segundo o Facebook, ele “pode aceitar solicitações de amizade em nome de uma conta transformada em memorial, fixar uma publicação de homenagem no perfil, bem como alterar a foto do perfil e a foto da capa”.
Bela linguagem. Só falta registrar tudo isso em cartório.
Mas os advogados do Facebook se esqueceram de um probleminha. Talvez o Facebook morra antes de mim. Pelo que ouço, com o Instagram e outras geringonças, o nosso querido “Face” já é coisa “de velho”, encaminhando-se para o vasto cemitério onde repousam o email, o Orkut, o fax, o telegrama, o orelhão e os aparelhos de baquelite.
Natural. A tecnologia avança. Veja o estranho caso de James, o robô fantasma. Foi recentemente criado por uma firma de tecnologia britânica.
James Dunn manda mensagens, faz piadinhas, dá “likes”, briga, faz as pazes, chora e dá risada. Os amigos reconhecem seu estilo, seus gostos, seu vocabulário.
Mas o verdadeiro James morreu em 2018. Para ele, foi uma diferença, claro. Para os amigos, nem tanto. Com a quantidade de informações que James deixou na sua vida online, é possível prever e fabricar suas atividades póstumas.
Sem recurso ao espiritismo, torna-se possível conversar com o morto a qualquer hora. Desaparece o médium, e a mídia entra em cena. O robô James é apenas um primeiro passo, uma intelectualização, um algoritmo semovente.
Na Coreia do Sul o jogo é mais pesado. Com ajuda daqueles óculos de realidade virtual, foi possível à pobre Jang Ji-sung interagir com a projeção de sua filha, uma menina que morreu aos sete anos.
É o que leio no jornal The Sunday Times do dia 16 de fevereiro. Não é impossível que, em breve, inventem um jeito de fazer a menina aparecer mais crescida, absorvendo as modas, comportamentos, roupas e cosméticos dos anos que virão.
Até o momento, certamente, em que sua mãe venha a morrer, e ambas se encontrem nos subterrâneos de um circuito de silício.
Pode-se rejeitar esse tipo de exagero tecnológico. De resto, a fantasmagoria virtual serve, em tese, para consolar os vivos. Não resolve, é claro, o problema do morto. Por definição, é a minha própria sobrevida o que mais me interessa.
Voltamos, então, à prancheta de projetos. Ou melhor, ao velho papel e lápis.
Sim, porque no sempre ativo mercado educacional americano já existem os “workshops” de obituário. Você aprende a escrever sua própria nota fúnebre.
Para que se preocupar com uma autobiografia, queixando-se das discriminações e injustiças que você experimentou ao longo da existência?
Faça justiça desde já. O curso te habilita a escrever uma notícia fictícia de como foi que você morreu, o que naturalmente é uma ajuda para quem precisa se acostumar com a coisa.
Além disso, ao escrever um obituário antecipado, cada pessoa pode avaliar desde já o que fez e o que está deixando de fazer na própria vida. Cai a ficha de todos os sonhos que não concretizou, de todas as oportunidades que perdeu, e de todas as horas que passou sem fazer nada. Corrijo.
De todas as horas que passou sem fazer nada na internet.
Mas —surpresa!— todo aquele tempo perdido se guardou na memória do computador. É capaz de ressuscitar, pela fabricação de um outro eu, um eu virtual e eterno.
Um eu proustiano, só que com o grave defeito de ser um eu sem consciência.
Nasce uma múmia eletrônica, que fala, pisca, conversa e dá lições (“de vida”?) para quem ainda está com a bateria carregada.
Uma última questão. A sobrevivência eletrônica talvez só seja possível porque, mesmo em vida, cada pessoa já está meio morta. Emite sinais robóticos, reage em bits; é um feixe de informações —e, quando morrer, talvez ninguém perceba de cara.
Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo.