O fogo começou à 0h50, no quarto andar do prédio.
Era um curto-circuito na geladeira. Saía fumaça, e o alarme de incêndio tocou na hora. Foi fácil chamar os bombeiros.
Eles chegaram seis minutos depois. Seria absurdo reclamar de atraso. Do lado de fora do edifício, que tinha 24 andares, só se via um pequeno clarão amarelo na janela do apartamento. Os moradores foram orientados a ter calma.
Depois de entrar na cozinha, à 1h07, os bombeiros trataram de apagar o fogo, que entretanto tinha encostado no batente da janela.
Dentro do apartamento, eles não chegaram a perceber o que acontecia do lado de fora, com as paredes do prédio.
A torre Grenfell, no oeste de Londres, tinha se transformado numa coluna de fogo. Morreram 72 pessoas; cerca de 70 ficaram feridas.
Os moradores eram na sua maioria imigrantes pobres. A primeira morte registrada foi de Mohammed Al-Haj Ali, um refugiado sírio.
Só no fim do ano passado as autoridades britânicas divulgaram o primeiro relatório da investigação sobre o acidente, ocorrido em junho de 2017.
Uma coisa já se sabia, entretanto. O prédio tinha passado por uma reforma no ano anterior. Havia sido instalado um revestimento externo de alumínio. Ou melhor, de duas lâminas de alumínio com um recheio de polietileno (que é plástico, afinal de contas).
Fico achando que aquilo era pouco diferente do que besuntar de graxa ou gasolina as paredes do edifício.
Muitos prédios na Inglaterra —no Brasil, nem pergunto— têm esse tipo de cobertura, e quem mora neles não sabe o que fazer. Vender o apartamento é impossível, trocar a fachada custa caro.
Temos tragédias suficientes em nosso país; não é o caso de perder o sono com o problema dos outros.
Com as chuvas em Minas Gerais no mês passado, foram mais de 50 mortos. Enquanto escrevo, São Paulo está coberta de água e lama. Nem é preciso falar de Brumadinho.
Chamo a atenção para o fogo na torre Grenfell porque a tragédia motivou uma resposta diferente daquilo que costumamos ver por aqui.
Recentemente, dois ótimos poetas britânicos lançaram livros tratando do caso. O primeiro, Roger Robinson, está perto dos 70 anos e é uma voz consagrada entre os escritores negros do Reino Unido. O segundo, Jay Bernard, é estreante.
Em “A Portable Paradise” (um paraíso portátil), da editora Peepal Tree Press, Roger Robinson escreve sobre “os desaparecidos”. São os que, durante o funeral das vítimas do incêndio, “começaram a flutuar/ e depois ficaram na horizontal, como se/ na cama.”
Eles passaram então “pelo corredor da igreja/ como se numa esteira rolante feita de ar”. Robinson descreve a ascensão desses mortos, que atravessam as portas góticas e “sobem para o céu, com os pardais dando exímios/ mergulhos entre eles.”
Dez ruas adiante, continua Robinson, “um marido tenta segurar pelos pés/ sua mulher que flutua”.
A imagem recupera e transfigura a lembrança terrível de um incêndio vertical, de um prédio em chamas de onde pessoas pulavam em desespero.
Outro poema de Roger Robinson fala dos que, da calçada, assistiam à tragédia, com a luz dos seus celulares brilhando na noite. “E então o mergulho de alguns corpos, como cisnes.”
Também negro, e não-binário, Jay Bernard talvez seja ainda mais impressionante.
Seu primeiro livro, que em inglês tem o título de “Surge” (levante) e foi publicado pela Chatto & Windus, compara o prédio queimado a um dique na frente de uma praia preta.
Quem passa pela calçada encontra os resquícios do incêndio, como coisas jogadas pela maré. Concha quebrada ou fragmento de osso? Pedra transparente ou olho de vidro? Com tudo carbonizado, seria isto “um lençol de cama”? Ou “a pele de um escravo”?
No livro, Bernard fala de outro grande incêndio, ocorrido em 1981, em que morreram adolescentes negros numa festa de aniversário. Não há espectadores para a tragédia.
Há apenas uma voz que diz: “Papai, você veio. Fiquei aqui deitado a noite toda —e não conseguia me mexer [...] fiquei na festa por um tempo e eu não sei mais o que aconteceu —vi que alguém me segurou e eu estava rígido [...] e agora fiquei esperando por você aqui, papai, nessa mesa, com corpos e mais corpos do meu lado”.
O Brasil, é claro, não é a Inglaterra. Sem dúvida, temos tragédias demais, e isso diminui nossa capacidade de reação. Mas, depois de ler Robinson e Bernard, espero que não tenhamos poetas de menos.
Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo.
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