Nosso passado político recente aqueceu o tempo histórico. Um dos consensos dessa conversa coletiva é que junho de 2013 marcou aceleração dos tremores institucionais e sociais. O impeachment de Dilma Rousseff e a eleição de Jair Bolsonaro são flashes do período, pontos culminantes a serem dissecados, interpretados e julgados.
A indicação ao Oscar do documentário “Democracia em Vertigem”, de Petra Costa, revigorou o embate sectário a respeito do impeachment. Até o governo se prestou a fazer campanha ilegal contra o filme e a diretora. Qualidades e defeitos do testemunho foram ofuscados pela camisa de força binária que engole todo esforço de contar essa história.
Apenas duas versões explicativas, mutuamente excludentes, encontram eco. Quem mete a colher nesse imbróglio está fadado a ser classificado: ou se é contra o impeachment, ou se é a favor, e não sobram outras distinções relevantes dentro de cada grupo. Cada um que pegue a sua “narrativa” conforme sua preferência e simpatia.
Permanece interditado o debate desarmado, que acredite em interpretações melhores que outras, em leituras mais fiéis aos fatos, aos atos e às leis. Nem que para isso tenham de fazer concessões e encontrar versões híbridas fora da dicotomia sectária.
O protagonismo judicial, direto e indireto, no processo de impeachment é uma dessas facetas mal contadas e mal disfarçadas.
Um dos mais frágeis argumentos em favor da legalidade e legitimidade do impeachment invoca a participação do STF como atestado de regularidade. Frágil porque o STF restringiu-se a fiscalizar o procedimento do impeachment e não tocou no mérito.
A divisão funcional entre STF e Congresso não impede avaliação técnica do julgamento do Senado (a demonstração do crime de responsabilidade). E por favor não apele à ideia de que o impeachment é processo político-jurídico, ou jurídico-político, para desviar dessa avaliação. Crime de responsabilidade não é pastel de vento.
Frágil, em segundo lugar, porque no exame do procedimento, o STF omitiu-se em julgar atos de Eduardo Cunha na presidência da Câmara enquanto o impeachment corria. Aprovada a abertura do processo em 17 de abril de 2016, dias depois uma decisão monocrática do STF suspendeu o mandato de Cunha por obstrução de investigações.
Não ocorreu ao STF que o impeachment pudesse ser contaminado por presidente da Câmara que tinha motivos escusos para manipular o processo (os mesmos motivos que justificaram sua suspensão logo depois). “Se havia urgência, por que levou seis meses?”, perguntou Cunha. Ninguém respondeu.
O protagonismo judicial indireto esteve no cozimento do caldo do impeachment, estado de temperatura e pressão na esfera pública que bloqueou alternativas institucionais ao impasse.
Havia duas plataformas. De um lado, a Operação Lava Jato, que sincronizava seus atos e as fases do processo de impeachment metodicamente. Não foi coincidência. A sincronia com o tempo político-eleitoral permaneceu até as eleições de 2018. A outra plataforma era encarnada por Gilmar Mendes, que se sentava tanto no STF quanto no TSE.
Gilmar oferece um compêndio de comportamentos judiciais impróprios: trocou ideias com Aécio sobre o questionamento das eleições de 2014 no TSE (além das interações telefônicas enquanto cuidava de casos de Aécio); reuniu-se com Cunha para falar sobre impeachment; reuniu-se com Temer para falar
sobre o julgamento do TSE.
sobre o julgamento do TSE.
Tem mais, mas não precisa. Na biografia intelectual de Gilmar, o impeachment é um divisor de águas: suas teorias jurídicas, tanto da Lava Jato quanto do caso Dilma/Temer no TSE, passaram por duplo twist carpado entre o antes e o depois. Hoje, ele acusa os outros pelos males da “desinstitucionalização”.
O cozimento foi administrado pelo sistema de justiça, e não há nada de natural nisso. No Judiciário da política partidária ou magistocrática, a degradação avança. Abusos continuam a ser abusos mesmo quando favorecem tua posição política. E abusos mudam de lado, sem te explicar o porquê.
Texto de Conrado Hübner Mendes, na Folha de São Paulo.
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