Ignorantes somos todos, porque é sempre pouco o tempo que temos para estudar, ler e tentar entender.
Os menos ignorantes, aliás, concordam com Sócrates (segundo Cícero): “Só sei que nada sei”. Agora, há uma diferença grande entre ignorantes e ignorábimus (com acento, como substantivo da língua portuguesa). O que é um ignorábimus?
“Ignorabimus”, em latim, é uma voz verbal, que significa ignoraremos, e que ficou famosa por causa de um fisiologista alemão que, no fim do século 19, escreveu que sempre haveria coisas que a ciência não alcança: ignoramos e ignoraremos, foram as palavras dele. Isso pode parecer uma banalidade: afinal, o campo do saber é infinito.
Mas eis que um grande matemático, David Hilbert, ao se aposentar em 1930, achou bom responder com uma frase que está hoje na lápide da tumba dele, no cemitério de Göttingen, na Alemanha, que visitei (iniciativa de meu pai) no fim dos anos 1950: “Wir müssen wissen, Wir werden wissen”, devemos saber e saberemos.
Hilbert aparentemente achava que qualquer fatalismo da ignorância podia estar ao serviço de um obscurantismo preguiçoso.
Falando em ignorância, Nicolau de Cusa, filósofo cristão, em 1440, publicou o famoso “De Docta Ignorantia”, sobre a douta ignorância. Para o cusano, que simpatizava com Sócrates, saber que somos ignorantes é o que alimenta nossa paixão de saber e entender mais.
Sem entrar em detalhes, o que importa é que nem Nicolau de Cusa acreditava na ignorância como virtude, longe disso. Trocadilho irresistível: o cusano não justificava os cuzões.
Mas quem faz, então, a apologia da ignorância? Quem acha a ignorância legal? Não acredito que o Deus cristão seja apologista da ignorância, mas certamente ele serviu e serve de boa desculpa. Veja-se o começo do sermão da montanha:
“Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus” (Mateus 5:1-3).
Entendo que Cristo dava o passe do paraíso para os pobres de espírito porque eles não puderam estudar numa escola boa, ou não tiveram um professor decente ou cresceram numa casa tosca, em que o saber não tinha valor, ou algo parecido ou pior.
Mas houve os que entenderam que Cristo, no sermão da montanha, fazia a apologia dos preguiçosos. Por exemplo, entre os séculos 12 e 16, houve cristãos para pensar que a ignorância e a burrice deles fossem uma bênção. Eles achavam, aliás, que, se cultivassem bem sua ignorância, Cristo lhes garantiria mais que um passe: um verdadeiro “hall pass” —um passe livre para a suruba. Ou seja, os simplórios, como já ganharam o paraíso por sua ignorância, podiam fornicar livremente.
A Igreja não gostou, e eles foram eliminados.
Hoje, parece que os pobres de espírito voltaram. Só que, desta vez, a pobreza de espírito não serve para fornicar livremente (quem dera), mas para reprimir os outros. A lógica é: do alto de minha ignorância (que mantenho inalterada pois ela me garante o paraíso), imponho a todos o que acho certo ou errado.
Esses novos pobres de espírito têm a ignorância como programa de vida (de governo deles mesmos e dos outros). Não sabem e não querem se instruir. Eles são os ignorábimus. Como reconhecê-los?
São os mentecaptos que proíbem livros que nunca leram, aqueles que desprezam filmes que nunca viram, aqueles que organizam testes de conhecimentos nos quais eles mesmos nunca passariam, são os mentirosos (ou as mentirosas) que se declaram mestres e especialistas, mas não têm diploma algum, são aqueles que acham que nos livros de texto para crianças há palavras demais e é preciso “aliviar”, são aqueles (ou aquelas) que declaram que, lendo o Gênesis, os alunos aprendem geografia, história e matemática —por que estudar mais?
Os ignorábimus têm uma verdadeira paixão da ignorância. Talvez seja esta a maior descoberta da psicanálise —o que sobrará dela daqui um século ou dois: a paixão da ignorância começa, em cada um, pela vontade de ele ignorar seu próprio desejo e suas fantasias, sobretudo (mas não só) sexuais.
Por isso, o ignorábimus odeia a cultura, porque a cultura sempre nos revela coisas que ignoramos sobre nós mesmos.
Mas talvez essa explicação toda da paixão da ignorância não seja necessária. Talvez o ignorábimus, vestindo a carapuça do pobre de espírito do evangelho, esteja apenas procurando uma desculpa para sua infindável preguiça.
Texto de Contardo Calligaris, na Folha de São Paulo.
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