“La Meglio Gioventú”, num italiano dialetal, significa “os melhores dos nossos jovens” e evoca um canto dos alpinos (tropas de montanha do Exército italiano). Mais de uma vez, com amigos, no breu e no frio, subi uma montanha para descer do outro lado, quando o sol nascia, deslizando entre as árvores, na neve intacta. Cantávamos a meia-voz “Sul Ponte di Bassano”: a música condizia com a abnegação no esforço.
“Sul Ponte di Bassano” fala do adeus dos alpinos que atravessavam o rio Brenta para enfrentar os austríacos, na Primeira Guerra Mundial. Entre 1915 e 1918, morreram mais de 600 mil soldados italianos.
Vinte e poucos anos depois, nova versão, “Sul Ponte di Perati”: a divisão alpina Julia teve que invadir a Grécia, e a ponte de Perati marcava a passagem entre Albânia (na época, “italiana”) e Grécia: era a ponte sem volta.
A primeira estrofe diz: “Sobre a ponte de Bassano [ou de Perati], bandeira preta, é o luto dos alpinos que vão para a guerra, a ‘meglio gioventú’ vai para baixo da terra”.
A mesma música e mesma menção à “meglio gioventú” serviu para “Pietá l’é Morta” (a piedade é morta), canto dos “partigiani” em 1944-1945.
Duas vezes, a 20 e poucos anos de distância, os jovens da “meglio gioventú”, soldados, resistentes ou fascistas que fossem, foram para baixo da terra.
E o que aconteceu a seguir com “la meglio gioventú”, que tinha 20 anos no fim da década de 1960? O filme de Giordana é de longe a melhor, mais comovente e mais certeira representação dessa geração de italianos. Reflexões na margem, sem spoilers:
1) Em 1966, um jovem viaja pelo norte da Europa e escreve cartas.
Aos 13 anos, passei dois meses em Londres, para cultivar meu inglês. Meu irmão (que tinha 18) estava na praia, perto de Veneza, com a namorada. E meus pais davam uma volta ao mundo.
Ninguém sabia o telefone de ninguém. Eu tinha um dinheiro, que devia bastar, e só. Escrevi três cartas a posta-restante de cidades que meus pais visitariam. Recebi três cartas. Se adoecesse, se o dinheiro acabasse (acabou, de fato), se me sentisse triste, nada: vire-se —como gente grande.
Houve mais uma geração que conheceu a liberdade de ter que se virar. Depois disso, as crianças passaram a crescer num mundo acovardado, em que todos aceitam serem constantemente controlados em troca da sensação de que, graças ao celular, sempre dará para pedir socorro.
Fomos a penúltima geração sem celular. Sorte nossa.
2) O filme começa com três jovens universitários preparando-se para os exames. Não era preciso ser universitário para que o estudo fosse prioridade absoluta. Uma vez, aos 11 anos, manifestei que estava com sono para terminar o dever de casa depois do jantar; meu pai sugeriu que tomasse um café forte.
Estudávamos para acumular um patrimônio comum que nos permitiria um dia ler um manuscrito medieval iluminado junto com um amigo, reconhecer o velho Firs do “Jardim das Cerejeiras” num mordomo que aparecesse com duas crianças ou explicar a um menino órfão que seu pai era triste como Aquiles. Sem esse patrimônio, a vida é infinitamente mais chata, menos complexa, diversa e bela (diria Nicola, no filme).
A cultura não evita que a gente tome as piores decisões. É possível tocar uma sonata em A menor de Mozart e, mesmo assim, cair na sedução da luta armada. A cultura apenas garante que, seja qual for a escolha, ela será intensa, parte de uma vida levada a sério.
Em 1940, um tenente da divisão Julia, antes de embarcar para a Grécia, passou a noite recitando líricos gregos, com meu pai. Ele foi morto no primeiro combate. Meu pai dizia que ele preferira ser morto a invadir a Grécia.
3) Os quatro filhos de uma família sem riqueza estudam. Isso só era possível porque a escola pública era a melhor e aberta a todos. O ensino era conteudista, sem dúvidas pedagógicas. Senta a bunda e estuda —porque é interessante, e tua vida será mais interessante com conteúdo do que sem.
4) Apesar dos processos de fascistas, brigadistas vermelhos e mafiosos que encerraram os anos de chumbo, entre 1969 e 1985, continuamos num mundo corrupto, vivendo uma história que nos escapa.
Mas, nos interstícios de infundáveis ignorâncias e ambições sórdidas, sempre é possível inventar vidas que valham a pena.
Texto de Contardo Calligaris, na Folha de São Paulo.
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