sábado, 28 de novembro de 2015

Aborto

Toda geração tem o seu. O da minha atendia pelo nome de Dr. Chaim.
Dr. Chaim mantinha um consultório no Leblon, e era para lá que as meninas iam cada vez que a liberdade recém-adquirida de trepar na adolescência acabava numa gravidez indesejada.
Ainda não existia a Aids, esse complicador.
Terminado o procedimento, as pacientes eram dispostas em cadeiras reclináveis, numa pequena sala comunal, à espera de que recobrassem os sentidos.
Um amigo enfrentou o dia fatídico e presenciou dois ataques histéricos na sala de recuperação. Assustadas com o peso e o caráter criminoso da decisão, as moças muitas vezes acordavam aos gritos da cirurgia.
Não conheci o Dr. Chaim, mas passei por dois abortos espontâneos e tomei a pílula do dia seguinte.
Em todas as ocasiões, senti algo parecido com dar um cavalo de pau num Fenemê acelerado. Uma vez fecundado, o óvulo se apodera do corpo, enviando ordens para o centro nervoso da gestante, a fim de garantir a imortalidade do DNA egoísta.
Indivíduo, desejo, livre arbítrio, tudo o que prega a cartilha de direitos civis passa para terceiro plano.
Vômitos, suadouro, depressão, medo, tristeza, vazio são alguns dos sintomas que experimentei.
Por isso, percebo algo falho nos slogans das campanhas pró-aborto, que afirmam que a mulher é livre para fazer o que quiser do próprio corpo. Uma gestação envolve, no mínimo, o parceiro, além de um misterioso terceiro elemento chamado embrião.
Não sei se há consciência no embrião, mas existe a vontade.
A defesa do direito ao aborto peca pelo tom libertário, assim como a da legalização das drogas, por vezes, parece esquecer da dependência trágica do vício.
É nesse ponto que a bancada conservadora se sobressai, ao se firmar como guardiã da vida, ignorando fato de que a imaculada pauta escamoteia o fracasso da política antidrogas e o mercado clandestino de aborteiros de plantão.
Sou favorável à regulamentação do aborto pelo mesmo motivo que defendo a legalização das drogas. Sua proibição acarreta mais danos do que benefícios à população.
Mas uma coisa é liberar a droga, outra é se libertar da droga. Uma coisa é legalizar o aborto, outra é controlar o sexo sem camisinha, é criar horizontes para crianças sem perspectiva de futuro.
Choca assistir ao encaminhamento de propostas ao Congresso que visam retroceder no direito ao aborto para mulheres vítimas de estupro, enquanto leis que restringem o comércio de armas se veem ameaçadas pelos interesses da indústria bélica.
É a lógica distorcida, tão bem definida em "Haiti", de Gil e Caetano, sobre o Papa que vê tanto espírito em feto e nenhum no marginal.
O aborto, no Brasil, esbarra em crenças e convicções inarredáveis; um embate sem solução, entre ciência e religião, para precisar o momento em que a intervenção cirúrgica maquia um assassinato.
Por ora, aprovar o uso da pílula do dia seguinte já diminuiria, e muito, o sofrimento de inúmeras mulheres que arriscam a saúde em clínicas ilegais.
O lobby dos fármacos, tão poderoso quanto o das armas, poderia exercer uma pressão maior sobre o plenário do que a retórica em torno da liberdade individual.
Pragmatismo econômico no lugar de ideologia. É triste, mas é a norma do século 21. 


Texto de Fernanda Torres, na Folha de São Paulo

quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Que redação teria peito para repudiar um editorial como fizeram os argentinos?

Viralizou nas redes sociais uma foto em que jornalistas do diário argentino La Nación manifestam sua rejeição a um editorial.
Nele, os donos do jornal sustentam que é hora de perdoar, ou coisa parecida, os militares que cometeram atrocidades durante a ditadura.
A redação se incomodou. O repúdio se espalhou e disso resultou uma imagem épica, na qual os jornalistas aparecem com cartazes em que dizem o que pensam.
Nas redes sociais no Brasil, a pergunta que mais se fez foi esta: você consegue imaginar isso na Folha, no Globo ou em qualquer redação?
Claro que não.
Minha hipótese é que o similar brasileiro seria uma foto na qual os jornalistas diriam em cartazes: “Eu apoio o editorial!” (Com exclamação, provavelmente.)
Isso mostra quanto as redações brasileiras foram aparelhadas pelos donos e seus prepostos.
É uma lástima, uma vez que se perde o debate de ideias e visões que mesmo na ditadura militar vigorava nas redações. É destruído, também, um certo equilíbrio de forças do qual o beneficiário foi sempre o leitor.
A situação clássica no jornalismo, no Brasil e em qualquer parte, é mais ou menos a seguinte. Os donos são conservadores, por razões óbvias. E os jornalistas são progressistas, por motivos igualmente óbvios.
Internamente, os dois lados esgrimam em torno de seu pensamento. Uma síntese sai daí.
Alguns casos notáveis: a Folha nos anos 1970, quando teve no comando da redação o jornalista Claudio Abramo, de esquerda. Claudio negociava o espírito do jornal com Frias, de direita.
Durante muitos anos, a coexistência na Folha de duas mentalidades tão diferentes em posições-chave resultou num jornal interessante. A Veja no período Mino Carta-Civitas é outro bom exemplo.
Mas o que se viu nos últimos anos foi a virtual eliminação do progressismo nas redações.
Começou com os diretores – não mais Claudios, não mais Minos. E seguiu pelos escalões inferiores.
Os colunistas, hoje, repetem as opiniões dos donos. Todos falam, basicamente, as mesmas coisas. Você lê um e não precisa ler os outros.
E os repórteres publicam o mesmo tipo de vazamento, sempre contra aqueles dos quais seus patrões não gostam.
Há histórias icônicas. O diretor de mídias digitais da Globo, Erick Bretas, é mais Marinho que a família Marinho. Em sua conta no Facebook, ele convocou os seguidores a aderir às manifestações pelo golpe no auge delas. Bretas avisou que iria para a rua, e colocou como avatar no Facebook esta frase sepulcral: “Game Over”.
Acabou, numa tradução livre. Quer dizer, Bretas derrubou Dilma alguns meses atrás.
Este tipo de jornalista patronal ocupou as redações. São centenas de Bretas que diariamente produzem o conteúdo que chegará ao público da grande mídia.
É dentro desse quadro que se instalou o desequilíbrio que marca hoje jornais e revistas.
Já não há confronto de ideias. Vigora uma ideia única, a dos donos.
A foto da redação do La Nación mostra que na Argentina é outra a realidade – e muito mais arejada.
Existe algo de profundamente errado numa redação em que o repórter acha exatamente as mesmas coisas que o dono.
E é isso o que acontece nas redações brasileiras.

Texto de Paulo Nogueira, no Diário do Centro do Mundo

quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Religião é benéfica para tratamento psiquiátrico, diz associação


"É mole? Vou ao médico tratar da depressão e ele me manda rezar!". A recomendação que gerou surpresa na médica e professora universitária Maria Inês Gomes, 67, agora tem aval da Associação Mundial de Psiquiatria.
No mês passado, a entidade aprovou documento declarando a importância de se incluir a espiritualidade no ensino, pesquisa e prática clínica da psiquiatria. A SBP (Sociedade Brasileira de Psiquiatria) ainda não se posicionou sobre o assunto.
A proposta, obviamente, não é "receitar" uma crença religiosa ao paciente, mas conversar sobre o assunto.
O indexador de estudos científicos PubMed, do governo americano, lista mais de mil estudos sobre o tema.
Os recursos espirituais avaliados nesses trabalhos variam bastante, desde acreditar em Deus ou um poder superior, freqüentar alguma instituição religiosa ou mesmo participar de programas de meditação e de perdão espiritual, mas a grande maioria conclui que há correlação entre espiritualidade e bem-estar.
O maior impacto positivo do envolvimento religioso na saúde mental é entre pessoas sob estresse ou em situações de fragilidade, como idosos, pessoas com deficiências e doenças clínicas.
Não se trata, claro, da prova científica da ação de Deus –uma hipótese dos pesquisadores é que religiosidade sirva, por exemplo, para reforçar laços sociais, reduzindo a incidência de solidão e depressão e amenizando o estresse causado por doenças ou perdas.
Três meta-análises (revisões científicas) já realizadas sobre o tema indicam que, após controle de variáveis como estado de saúde da pessoa, a frequência a serviços religiosos esteve associada a um aumento médio 37% na probabilidade de sobrevida em doenças como o câncer. O desafio é entender exatamente como isso acontece.
Uma das explicações propostas é a ativação do chamado eixo "psiconeuroimunoendócrino", em que uma emoção positiva seria capaz de alterar a produção de hormônios que, por exemplo, reduziriam a pressão arterial.
"O impacto da religião e espiritualidade sobre a mortalidade tem se mostrado maior que a maioria das intervenções, como o tratamento medicamentoso da hipertensão arterial ou o uso de estatinas", afirma Alexander Moreira-Almeida, professor de psiquiatria da Universidade Federal de Juiz de Fora.
Um outro estudo recente publicado na revista "Cancer", da Sociedade Americana de Câncer, revisou dados obtidos com mais de 44 mil pacientes e concluiu que são os aspectos emotivos da espiritualidade e da religiosidade aqueles que mais trazem benefícios para a saúde física e mental de pacientes com a doença. O mesmo não acontece quando o paciente se dedica a meramente estudar ou pesquisar sobre a religião.

EFEITO NEGATIVO

Ao mesmo tempo, segundo Almeida, as crenças religiosas também podem atuar de modo negativo, quando enfatizam a culpa e a aceitação acrítica de ideias ou transferem responsabilidades.
"Piores desfechos em saúde são observados quando há uma ênfase na culpa, punição, intolerância, abandono de tratamentos médicos. A existência de conflitos religiosos internos ao indivíduo ou em relação à sua comunidade religiosa também está associada a piores indicadores de saúde."
Por essa razão, é importante que os profissionais tenham em conta a dupla natureza da religião e espiritualidade, segundo Kenneth Pargament, professor de psicologia clínica na Bowling Green State University (Ohio).
"Elas [religião e espiritualidade] podem ser recursos vitais para a saúde e bem-estar, mas eles também podem ser fontes de perigo", diz ele, que esteve no Brasil neste mês falando sobre o assunto no início do mês no Congresso Brasileiro de Psiquiatria.
Ele lembra que, por muitos anos, psicólogos e psiquiatras evitaram a religião e a espiritualidade na prática clínica. Entre as razões, estaria a antipatia pela religião que sempre houve entre os ícones da psicologia, como Sigmund Freud.
Para Pargament, é importante a compreensão de que a religião e a espiritualidade são entrelaçadas no comportamento humano e que os profissionais precisam estar preparados para avaliar e abordar questões que surjam no tratamento.
"Para muitas pessoas, a religião e a espiritualidade são recursos-chave que podem facilitar o seu crescimento. Para outros, são fontes de problemas que precisam ser abordadas durante o tratamento. Isso precisa ser compreendido pelos profissionais de saúde."
Entre as técnicas que estão sendo estudadas para essa abordagem estão programas, por exemplo, para ajudar pessoas divorciadas a lidar com amargura e raiva, ou vítimas de abuso sexual e mulheres com distúrbios alimentares.
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ESTUDOS SOBRE FÉ, ESPIRITUALIDADE E SAÚDE

Religião, espiritualidade e saúde física em pacientes com câncer
> Publicação: 2015, no periódico "Cancer"
> Resumo: A meta-análise congregou resultados obtidos com mais de 32 mil pacientes para concluir que a saúde física dos pacientes com câncer melhora com a experiência de religiosidade ou de espiritualidade. Isso ocorre mais pela relação emotiva do que por aquela mais racional com a religião/espiritualidade.

Caminhos distintos entre Religiosidade, Espiritualidade e Saúde
> Publicação: 2014, no periódico "Circulation"
> Resumo: Os autores do estudo propõem separar os efeitos na saúde física que poderiam ser atribuídos à religião e os que poderiam ser atribuídos à espiritualidade. A proposta é que a religião poderia fomentar hábitos saudáveis, enquanto a espiritualidade traria melhor equilíbrio emocional

Doenças mentais, religião e espiritualidade
> Publicação: 2013, no periódico "Journal of Religion and Health"
> Resumo: A meta-análise analisou 43 estudos do período entre 1990 e 2010 e viu que 72% deles mostram resultados positivos entre a dimensão espiritual/religiosa e a saúde física, especialmente para demência, depressão e dependência química. A Esquizofrenia e o transtorno bipolar não são afetados


Reportagem de Claudia Colucci, na Folha de São Paulo

Intolerância


Ando cansada do Facebook –ou, mais exatamente, das demonstrações de intolerância pelos meus "amigos" em resposta ao mais recente atentado terrorista no mundo ocidental, motivado por... intolerância. Depois dos radicais islâmicos matando a esmo, agora são judeus pedindo a cabeça de muçulmanos, cristãos exigindo contrição de muçulmanos-não-terroristas. Acho curioso: ateus recebem desconfiança generalizada pelo simples fato de não acreditarem em um Deus, mas quem vejo disseminar o ódio generalizado são aqueles cujas religiões pregam compaixão e tolerância. Ou será essa suspeita também intolerância enviesada de minha parte, eu que sou ateia declarada?
Ainda bem existe a ciência, com observações sistemáticas e controladas, para nos livrar de um mundo de "achismo". Um estudo recém publicado na revista "Current Biology" comparou o comportamento altruísta e as tendências punitivas de crianças de 5 a 12 anos, cristãs, muçulmanas ou não religiosas, nos EUA, Canadá, Qatar, Jordânia, Turquia, África do Sul e China.
No estudo, os pais religiosos avaliaram seus filhos como ainda mais empáticos do que pais não religiosos julgaram serem os deles. Mas não foi isso o que o comportamento das crianças mostrou.
No primeiro teste, as crianças tinham a oportunidade de doar a um colega de escola, em segredo, alguns dos 10 adesivos que haviam acabado de ganhar dos pesquisadores. Crianças criadas em famílias muçulmanas ou cristãs doaram em média três de seus dez adesivos; crianças de famílias não religiosas, quatro.
Também foram as crianças não religiosas as mais benevolentes com estranhos que elas viam agredir terceiros em vídeos: seu julgamento do agressor era menos negativo do que o de crianças muçulmanas ou cristãs, e a punição que crianças não religiosas achavam justa era mais branda do que a advogada pelas crianças muçulmanas.
Conclusão: o cérebro humano é intrinsecamente capaz de boas ações. Não é preciso ser religioso para ser uma criança altruísta, piedosa, ou para entender direitos humanos. Deixar a religião de fora de questões morais não reduziria a bondade humana -muito pelo contrário. Ao ser perguntada sobre o que o intolerante-mor Donald Trump deveria ler para entender melhor o Islã, a também norte-americana (e muçulmana) Dalia Mogahed respondeu bem: "Não quero que ele entenda o Islã. Quero que ele entenda a Constituição". 


Texto de Suzana Herculano-Houzel, na Folha de São Paulo

Em livro, professor de Yale reconstrói história da Comuna de Paris


"Paris já conhece o terror há tempos, o que é uma lástima. Em alguns momentos da história, foi o terror do Estado; noutros, o terror que extermina apenas porque o outro é diferente, de outra cor ou de outra religião", diz à Folha o professor de história da Universidade de Yale (EUA) John Merriman, que acaba de ter lançado no Brasil o livro "A Comuna de Paris".
O título em português é pouco feliz, pois não traduz o tom dramático do relato. Em inglês, a obra se chama "Massacre" e apresenta de modo vibrante o que ocorreu nas ruas da capital francesa em 1871, nos 72 dias da Comuna de Paris –insurreição que levantou os habitantes da cidade contra o governo, então recolhido em Versalhes, e criou uma forma alternativa de administração, transformando-se em inspiração para a esquerda no século seguinte.
A Comuna de Paris foi duramente reprimida pelas forças enviadas por Adolphe Thiers (1797-1877), provocando uma verdadeira chacina. Do lado da comuna, foram mortas cerca de 15 mil pessoas, enquanto os rebeldes executaram 68 prisioneiros.
"Os assassinatos cometidos pelos que integravam a comuna são deploráveis, mas a repressão foi tão brutal que ficou evidente a desproporção que a violência pode tomar quando é o Estado quem se prontifica a matar. Por isso, creio que o episódio oferece chaves para entender vários massacres do século 20", afirma Merriman.
Além de fornecer uma sólida contextualização geopolítica da França naquele tempo, logo após uma humilhante derrota para a Prússia, o livro centra a atenção nos personagens que participaram da comuna e numa descrição de como se organizava Paris.
Surgem, então, figuras como a professora anarquista Louise Michel, que recrutava prostitutas para ajudar a cuidar dos feridos nas barricadas. Ou Raoul Rigault, personagem boêmio e controverso que assumiu a polícia e perseguia espiões e líderes religiosos. O aspecto anticlerical da revolta, assim, é contado a partir de desafetos cotidianos. Durante a comuna, igrejas foram ocupadas para serem transformadas em centros comunitários.
Estão também no livro o pintor Gustave Courbet (1819-77), que partiu para o exílio após o episódio, e o arcebispo de Paris Georges Darboy (1813-71), assassinado pelos membros da comuna. "A quantidade de anotações, diários e correspondências que deixaram é imensa. Deixei-me levar por esses fantasmas da comuna e tentei relatar com os olhos deles o que viveram", diz Merriman.
Também há descrições de como a crise política e a guerra foram antecedidas por uma crise urbana. O rápido aumento da população de Paris, que dobrara em poucas décadas, vinha deteriorando setores da capital francesa. Um dos documentos citados conta: "É uma cidade gótica, um lugar de escuridão e cheio de excrementos, desordem, violência e sangue".
No curto período da comuna, foram estabelecidos a autogestão de fábricas, a laicidade do Estado e um sistema em que as decisões eram tomadas de modo horizontal.

AMADORISMO

A narrativa culmina na "Semaine Sanglante" (semana sangrenta), de 21 a 28 de maio, quando as tropas de Thiers invadiram a cidade.
"Ficou evidente o amadorismo das barricadas, a falta de estrutura e de armamento. E também que os soldados atuaram com especial brutalidade. Minha teoria é de que a derrota para a Prússia os havia deixado de orgulho ferido, e eles se vingaram contra a população de Paris", diz o historiador. Nos dias finais, filas eram formadas para execução nas paredes do cemitério de Père Lachaise.
Dono de um apartamento a uma quadra da Redação do "Charlie Hebdo", alvo de terroristas em janeiro, Merriman não estava em Paris no dia dos atentados de 13 de novembro. "Depois do ataque ao 'Charlie', eu sabia que outros iam vir. Também não acho que esse será o último. Há muita tensão em Paris."
Quanto ao tamanho do trauma que o episódio deixará na história, Merriman diz: "A Comuna de 1871 foi um dos quatro grandes traumas que eu considerava terem moldado a França. Além dele, estão a Revolução de 1789, a experiência de Vichy, em 1940, e Maio de 1968. Talvez 2015 entre nessa lista."
*
ASCENSÃO E QUEDA
1870
Trabalhadores parisienses obrigam a Assembleia Legislativa a dissolver o império de Napoleão 3º após sucessivas perdas na Guerra Franco-Prussiana. O novo governo é regido pelo burguês Louis Adolphe Thiers, que busca uma negociação com os prussianos. O ato leva à revolta do proletariado francês e de setores da Guarda Nacional. Liderados pelo socialista Louis Blanqui, eles tomam o Hôtel de Ville –a prefeitura de Paris– e se levantam contra o governo de Thiers que, para conter o levante civil, promete deixar o poder e organizar eleições. Os trabalhadores aceitam os termos, mas Thiers não deixa o poder. Blanqui é preso.
Thiers assina um acordo de paz com o chanceler prussiano Otto Von Bismarck. Revoltada, a classe operária e a Guarda Nacional tomam o poder em Paris, em março de 1871 –cercam o contingente de Thiers e substituem o governo republicano pela Comuna de Paris, composta por 90 socialistas de diversas vertentes. A cidade passa a ser administrada por funcionários eleitos, as fábricas ficam sob a responsabilidade dos operários, o salário dos professores é duplicado. Mas, em maio, sob o comando da burguesia que havia sido deposta, tropas matam aproximadamente 15 mil pessoas –incluindo mulheres e crianças–, aprisionam outras 38 mil e tomam o poder das mãos dos revolucionários.
A COMUNA DE PARIS
AUTOR John Merriman
TRADUÇÃO Bruno Casotti
EDITORA Rocco
QUANTO R$ 59,90 (400 págs.)

Reprodução de texto de Sylvia Colombo, na Folha de São Paulo

quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Os Porões da Contravenção: um livro essencial

A história do Brasil é feita de episódios oficiais e de uma infinidade de eventos subterrâneos que raramente são acessados por repórteres investigativos.
São esses repórteres que levantaram os problemas das privatizações, as aventuras do esquema José Serra e de seu parente Preciado – que acaba de aparecer também na Lava Jato – e outros episódios que, sendo do reino da contravenção, impactam a política formal dos salões.
O livro “Os Porões da Contravenção”, de Aloy Jupiara e Chico Otávio, é um desses livros fundamentais.
Chico Otávio é jornalista respeitado. Participou de uma brilhante geração de repórteres de O Globo, nos tempos em que a reportagem de fôlego ainda não tinha sido abolida das páginas dos jornais.
Coube a ele coordenar a série de reportagens no caso HSBC, depois que o jornalista Fernando Rodrigues amarelou.
Assim como muitos de seus colegas, Chico Otávio migrou suas grandes reportagens para o livro e, junto com Aloy, montou um vasto perfil da contravenção do jogo de bicho, a partir das ligações do crime com a linha torturadora da repressão.
Mostra o relacionamento íntimo do SNI (Serviço Nacional de Investigações) e dos militares que comandaram os atentados do Riocentro com o bicho.
Esse período termina com a sentença história da juíza Denise Frossard, mandando prender os chefões, graças a um trabalho do Ministério Público. Pena que não sejam mencionados os procuradores que participaram dessa operação histórica, para que possam ser colhidos seus depoimentos.
Depois disso, o jogo se espraiou por inúmeras atividades, entrou em outras áreas da corrupção pública, mas encerrou o ciclo da grande organização criminosa que juntava todos os mafiosos em torno de um cappo e mandava liquidar os adversários.
O livro termina com um final digno de filme de suspense: informa que o celebérrimo Capitão Guimarães é um dos correntistas do HSBC.
Fica aí a dica para uma continuação: a nova forma de atuar do jogo, agora no formato eletrônico em parceria com máfias italiana, espanhola e de Las Vegas. Foi essa abertura que permitiu o empreendedorismo de Carlinhos Cachoeira, aliando-se à revista Veja para tentar expandir seus domínios para além de Goiás.
Essa segunda fase do jogo é responsável pelas maiores crises políticas contemporâneas.
É importante que o Ministro Aloizio Mercadante tenha isso em mente, antes de se propor a patrocinar qualquer forma de legalização do jogo.

Reprodução do Blog do Luís Nassif

domingo, 15 de novembro de 2015

São Paulo do faz de conta

Era uma vez, em terras não tão distantes, um governo do faz de conta...
Ali, escolas eram fechadas para ajustar a situação fiscal. Quase cem escolas, gerando uma forte reação de estudantes, pais, educadores. Mas o governo dizia que não havia fechamento algum: as escolas estavam sendo "disponibilizadas" por motivos de readequação dos ciclos de ensino.
Ali, um pouco antes, professores cruzaram os braços e tomaram as ruas em manifestações. Foram 90 dias, mas o governo negava qualquer greve.
Ali também as torneiras andavam secas. Em algumas regiões por dias a fio, em outras por várias horas todos os dias. Mas o governo insistia em dizer que não faltava água nem faltaria.
Emissários enviados àquelas terras trouxeram a curiosa informação de que, apesar de tudo, por lá os jornais elogiam muito o governo do faz de conta e o têm em elevada estima.
Disseram ainda que o tal governo baixa decretos que tornam informações de interesse público secretas por até 25 anos. E que isso não costuma gerar grandes rebuliços por lá.
Acrescentaram inclusive que, não obstante as torneiras secas, o chefe do governo do faz de conta teria recebido um prêmio por "boa gestão hídrica", no que parece ser –por inverossímil– um exagero de nossos emissários.
Sorte nossa que trata-se de outras terras, já que por aqui os nativos da Pauliceia –pátria do trabalho e do civismo– não admitiriam ser ludibriados desta forma.
Ah, se tal despautério fosse aqui já teríamos lotado a avenida Paulista, na região central da cidade, no domingo e batido panelas em algum fim de tarde. É de se supor que essas terras fiquem em algum lugar do Nordeste. Ouvi dizer que lá o povo tem pouca cultura e é facilmente enganado por governantes. 


Texto de Guilherme Boulos, na Folha de São Paulo

sábado, 14 de novembro de 2015

“Eu tentei proteger as crianças e a PM desceu a borrachada”. Nosso repórter na ocupação de uma escola estadual

Uma escola cercada por policiais é uma cena inquietante.
Cerca de 50 estudantes estão ali desde o dia anterior. Do lado de fora, aproximadamente 300 pessoas entre pais, alunos e professores. No meio, um cordão policial compacto.
Tão logo a reportagem do DCM chegou à Escola Estadual Fernão Dias Paes, uma enorme confusão teve início. Um pequeno grupo de estudantes começou a sair da escola, porém a polícia abordou-os e começou o “fichamento” dos adolescentes (só estão podendo deixar as dependências da escola após fornecer os dados pessoais).
O professor José Roberto Guido revoltou-se com a forma truculenta e questionou o comando da polícia. Logo foi imobilizado pelos PMs. Os manifestantes tentaram intervir mas um agrupamento de policiais anvançou. Sobrou cacetada e agressões em todos que tentaram impedir sua detenção.
A visão de professores sendo agredidos é duplamente inquietante, triplamente revoltante.
“A polícia do governador é autoritária, agride e reprime a população. Aqui estamos lidando com jovens, crianças e adolescentes. É um absurdo essa atitude da polícia militar. E se você se manifesta, eles alegam desacato à autoridade. Nós estávamos negociando a saída de alguns alunos e fui agredido”, afirmou o professor Leandro Oliveira. Ele também foi agredido e jogado ao chão.
Rose é mãe de aluno e tomou um golpe de cacetete no braço direito. “Eu fui afastar as crianças pois vi que polícia ia passar por cima, como fazem sempre. Daí começaram a distribuir borrachada. Só quem não sabe negociar nem dialogar faz isso. Querem impor uma reorganização, sem diálogo”, afirmou. Ela não tem filhos naquela unidade porém é contrária à reformulação pois teme a superlotação.
A Fernão Dias Paes terá só o nível médio a partir de 2016, o que significa que 213 alunos do fundamental serão transferidos. Isso faz parte do plano de ‘reorganização’ do governo do Estado de São Paulo que pretende segmentar escolas por ciclos de ensino. Fundamental 1 (do 1º ao 5º ano), Fundamental 2 (do 6º ao 9º ano), e Ensino Médio serão ministrados em locais distintos. Sem aviso prévio nem consulta popular, a decisão da Secretaria de Educação do governo Alckmin desagradou a todos.
Desde a tarde de ontem, a Fernão Dias Paes está ocupada por alunos contrários ao plano de alteração no ensino estadual. Após uma noite em que a água chegou a ser cortada com o objetivo de desestimular os estudantes, muitos permaneciam nas dependências da escola durante todo o dia de hoje. Não se sabe por quanto tempo. A Procuradoria Geral do Estado informou já ter entrado com um pedido de reintegração de posse da escola. Enquanto isso, o acesso é proibido a todo mundo. Nem pais, nem professores, ninguém entra. A não ser, claro, a polícia.
Mas estudantes estarem na própria escola é uma ocupação?
“Para a polícia sim, pois ela entende que os jovens estão lá sem autorização. Mas é um direito dos alunos. É uma manifestação espontânea e acreditamos que acontecerá em outros lugares porque a Secretaria de Educação não quer dialogar. Ninguém sabe quem vai para onde. Professores, funcionários, pais e alunos estão apreensivos”, disse Audimar de Assis, advogado da Apeoesp. De fato, a Escola Estadual Diadema também está ocupada por estudantes desde às 19h de segunda-feira (dia 9).
Com o passar das horas a tensão vai aumentando pelo aguardo da ordem de reintegração. “O governo alega que tem uma liminar mas até agora não conseguimos localizar esse processo. De qualquer maneira estamos aqui acompanhando”, completou  Audimar.
A aluna Mariana Martins, 16 anos, é do 2º ano médio da Fernão Dias Paes e havia passado a noite na escola. Saiu para atender ao pedido da mãe que estava muito temerosa com a iminente violência policial. “A gente sabe que eles não vão entrar de forma pacífica.”
Há poucos dias, um policial dos Estados Unidos entrou em uma escola e arrancou uma aluna à força da sala de aula. Parece que estamos nos aproximando desse estágio. Para o governador Geraldo Alckmin, educação é um problema de polícia. Para o diálogo ele envia a Tropa de Choque. Aliás, já se tornou um clássico. Para todo e qualquer problema o governador envia sua PM. Até adolescentes como Mariana sabem. Não precisa cair no Enem, é muito fácil.

Texto de Mauro Donato para o Diário do Centro do Mundo.

terça-feira, 10 de novembro de 2015

O que passou pela cabeça de Roberto Civita ao usar um avião pago pelos cidadãos mineiros?

Tive uma relação franca e aberta com Roberto Civita em meus anos de Abril. Uma vez ele me disse que me tinha como a um filho, e em outra me chamou de um dos melhores publishers do mundo, uma “mosca branca”, para usar sua expressão, por eu reunir segundo ele habilidades de editor e de administrador.
Pessoalmente, era uma pessoa adorável, um contador de casos divertido e inteligente.
Roberto Civita teria sido um excelente embaixador da Abril, uma posição em que poderia usar as virtudes que lhe faltavam como editor.
Jornalistas, dizia ele, têm uma vantagem sobre todas as demais atividades. Podem saciar sua curiosidade sem parecerem fofoqueiros: é o jornalismo que as leva a fazer perguntas e mais perguntas, muitas delas indiscretas.
Até por causa disso, jamais deixei de perguntar nada a RC. Nos últimos anos dele, perguntei várias vezes como ele deixara a Veja chegar ao abismo editorial em que hoje está atolada.
Cheguei a cunhar uma expressão em 2006: a Veja se “mainardizara”. Tornara-se uma extensão do então colunista Diogo Mainardi.
Curioso notar, quase dez anos depois, que a imprensa como um todo se mainardizou, na fúria persecutória e desonesta contra Lula.
Tudo isso posto, eu perguntaria a Roberto Civita, hoje, se não lhe ocorreu que era uma indecência viajar no avião de Minas Gerais , com a mulher Maria Antônia, por convite de Aécio.
Milton Friedman, o brilhante economista conservador, tinha uma frase muito citada na mídia brasileira: “Não há almoço grátis.” Jornalistas da Folha dizem que era o motto de Octavio Frias, o velho.
Também não existe vôo grátis. Alguém paga, e no caso era o contribuinte mineiro. A gasolina, o piloto, a manutenção, tudo isso foi bancado, na viagem de RC e sua mulher, pelo cidadão de Minas.
É parte da cultura da plutocracia brasileira: nós podemos tudo.
Você pode imaginar como a Veja trataria o assunto se chegasse à revista a informação de que Lula e Mariza voaram de graça num avião cedido por um governador petista.
É uma lei não escrita segundo a qual os escravos têm que obedecer a leis que não vigoram para os donos.
O episódio joga luzes também nas relações entre Aécio e o PSDB e os barões da mídia.
Os tucanos optaram, em sua trajetória, em se acercar não do povo, mas dos donos das empresas de jornalismo.
É revelador o depoimento do jornalista Clayton Netz, que me substituiu na direção da Exame em 2000.
“Certa vez, no fim de 2002, eu estava na sala do Roberto Civita quando a conversa foi interrompida pelo Aécio, que à época era presidente da Câmara dos Deputados”, conta Clayton. “O Doutor Roberto disse: ‘Esse rapaz vive ligando para mim. Não toma nenhuma decisão sem me consultar’.”
Sim. Fora as mamatas concretas oferecidas com dinheiro público, os proprietários das corporações de mídia seviciaram em ser adulados abjetamente por políticos como Aécio.
Parte do ódio a Lula se explica no fim da bajulação. Lula não os consultava. Eles não podiam mais dizer para as mulheres, os amigos e mesmo subordinados como Clayton: “O presidente não toma nenhuma decisão sem me consultar.”
De volta à minha questão: o que RC teria pensado ao subir no avião?
A melhor resposta, para mim, é: nada.


Para ele e para seus colegas barões, privilégios com o dinheiro público eram, como na França dos Luíses, direitos adquiridos.

Texto de Paulo Nogueira, no Diário do Centro do Mundo

Desespero no estilo americano

Algumas semana atrás, o presidente Barack Obama zombou dos republicanos que estão "hostis com os Estados Unidos" e reforçou sua mensagem fazendo uma imitação bastante boa da Grumpy Cat [gata que tem cara mal-humorada e faz sucesso na internet]. Ele tinha uma teoria: com as taxas de crescimento de emprego inéditas desde os anos 1990, com a porcentagem de americanos cobertos por seguro-saúde atingindo picos recordes, as previsões catastróficas de seus inimigos políticos parecem cada vez mais distantes da realidade.
Mas, existe uma sombra que se espalha sobre parte de nossa sociedade. E não entendemos realmente por quê.
Houve muitos comentários, e com razão, sobre um novo trabalho feito pelos economistas Angus Deaton (que acaba de ganhar um Nobel) e Anne Case, mostrando que a mortalidade entre os americanos brancos de meia-idade vem aumentando desde 1999. Esta deterioração ocorreu enquanto os índices de mortalidade caíam constantemente tanto em outros países como entre outros grupos em nosso país.
Ainda mais notáveis são as causas relacionadas à crescente mortalidade. Basicamente, os americanos brancos estão se matando em números ascendentes, direta ou indiretamente. O suicídio aumentou muito, assim como as mortes por intoxicação por drogas e a doença de fígado crônica causada pelo excesso de bebida alcoólica. Vimos esse tipo de coisa em outros momentos e lugares --por exemplo, na redução da expectativa de vida que afetou a Rússia após a queda do comunismo. Mas é um choque vê-la nos EUA, mesmo de forma atenuada.
As conclusões de Deaton-Case, porém, se encaixam em um padrão bem estabelecido. Diversos estudos mostraram que a expectativa de vida dos brancos com baixo nível educacional está caindo em grande parte do país. O aumento dos suicídios e o uso excessivo de opioides são problemas conhecidos. E enquanto a cultura popular pode se concentrar mais na metanfetamina do que em analgésicos vendidos sob prescrição ou no bom e velho álcool, não é realmente novidade que existe um problema de drogas no país.
Mas o que está causando essa epidemia de comportamento autodestrutivo?
A se acreditar nos suspeitos de sempre à direita, é tudo culpa dos liberais. Os programas sociais generosos, eles insistem, criaram uma cultura de dependência e desespero, enquanto os humanistas seculares minaram os valores tradicionais. Mas (surpresa!) essa opinião é muito discordante das evidências.
Por um lado, o aumento da mortalidade é um fenômeno unicamente americano --mas os EUA têm ao mesmo tempo um Estado assistencialista muito mais fraco e um papel muito mais forte da religião e dos valores tradicionais do que qualquer outro país avançado. A Suécia dá a seus pobres muito mais que nós, e a maioria das crianças suecas hoje nasce fora do casamento legal, mas o índice de mortalidade dos suecos de meia-idade é apenas a metade do dos americanos brancos.
Vemos um padrão um tanto parecido em todas as regiões dos EUA. A expectativa de vida é alta e está aumentando na região nordeste e na Califórnia, onde os benefícios sociais são mais altos e os valores tradicionais, mais fracos. Enquanto isso, a expectativa de vida baixa e estagnada ou em declínio se concentra no Cinturão da Bíblia [partes do sul e centro-oeste dos EUA onde predomina o protestantismo fundamentalista].
Que tal uma explicação materialista? O aumento da mortalidade é uma consequência do aumento da desigualdade social e do esvaziamento da classe média?
Bem, não é tão simples. Afinal, estamos falando sobre as consequências do comportamento, e a cultura claramente importa muito. Mais notavelmente, os americanos hispânicos são bem mais pobres que os brancos, mas têm uma mortalidade muito mais baixa. Provavelmente é válido notar, nesse contexto, que as comparações internacionais consistentemente revelam que os latino-americanos têm um bem-estar subjetivo maior do que se esperaria, dada a sua renda.
Então o que está acontecendo? Em uma entrevista recente, Deaton sugeriu que os brancos de meia-idade "perderam a narrativa de suas vidas". Isto é, seus problemas econômicos os atingiram com força porque eles esperavam coisa melhor. Ou, para colocar de outro modo, estamos vendo pessoas que foram criadas para acreditar no Sonho Americano e enfrentam mal o fato de que este não se realiza.
Esta me parece uma hipótese plausível, mas a verdade é que não sabemos realmente por que o desespero parece estar se espalhando pela América média. Mas claramente está, com consequências perturbadoras para nossa sociedade como um todo.
Em particular, sei que não sou o único observador que vê uma ligação entre o desespero refletido nesses números de mortalidade e a volatilidade da política de direita. Algumas pessoas que se sentem abandonadas pela história americana se tornam autodestrutivas; outras voltam-se contra as elites que elas acham que as traíram. Não, deportar imigrantes e usar bonés de beisebol com slogans não vai resolver seus problemas, mas cortar os impostos sobre ganhos de capital também não. Então você pode compreender por que alguns eleitores se uniram em torno de políticos que pelo menos parecem sentir sua dor.
Nesta altura, você provavelmente espera que eu ofereça uma solução. Mas enquanto o atendimento de saúde universal, os salários mínimos mais altos, a ajuda à educação etc. fariam muito para ajudar os americanos em dificuldades, não tenho certeza se são suficientes para curar o desespero existencial.

Texto de Paul Krugman, no UOL. Tradutor: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

Parlamento da Catalunha aprova declaração de início do processo de separação

O Parlamento da Catalunha, com maioria absoluta dos independentistas, aprovou nesta segunda-feira uma resolução para iniciar o processo de separação da região do nordeste da Espanha, com o objetivo de proclamar em 2017 uma
república independente.

Os dois grupos independentistas da Câmara aprovaram, com 72 votos a favor e 63 contrários, uma resolução na qual "declaram o início do processo de criação do Estado catalão", que não ficará condicionada às decisões do Estado espanhol".

Reprodução de notícia da AFP no Correio do Povo.

O Brasil dos jatos e o Brasil da Lava Jato

Para o Brasil da Lava Jato, do impeachment, da mídia seletiva e conservadora, o que defende a volta da ditadura, a tortura e a quebra do Estado de Direito, este é um país podre, quebrado, mergulhado até o talo na corrupção, política e economicamente inviável até não poder mais. Para o Brasil dos jatos Gripen, cuja transferência de tecnologia a presidenta Dilma Rousseff foi negociar em outubro na Suécia, o Brasil da Força Aérea, da Aeronáutica, do Exército, da engenharia, da indústria bélica, da indústria pesada, da indústria naval, da indústria de energia, do petróleo e do gás, do agronegócio, da mineração, este é o país que, mesmo com todos os seus problemas, depois de anos e anos de abandono e estagnação, pagou a dívida com o FMI; voltou a pavimentar e a duplicar rodovias; retomou obras ferroviárias e hidroviárias; retomou a produção de navios e passou a fabricar plataformas de petróleo, armas, satélites, sistemas eólicos, mergulhando, na última década, em dos maiores programas de desenvolvimento de sua história.
Seria bom se o Brasil da Lava Jato se concentrasse em prender os corruptos, aqueles com milhões de dólares em contas na Suíça, e não em libertá-los – como está fazendo com o Sr. Paulo Roberto Costa, dispensado até mesmo de sua prisão domiciliar –, no lugar de manter aprisionados, arbitrariamente, quase que indefinidamente, dirigentes de partido sem nenhum sinal ou prova de enriquecimento ilícito e executivos de nossas maiores empresas.
A maioria delas ligada, direta ou indiretamente, a um amplo e diversificado programa de rearmamento e infraestrutura que engloba a construção de nossos novos submarinos convencionais e atômicos; de nossos novos caças Gripen NG BR; do nosso novo avião cargueiro militar multiuso KC-390 – a maior aeronave já fabricada no Brasil; de 1.050 novos tanques blindados Guarani; de nossos novos rifles de assalto IA-2; de nossos novos sistemas de mísseis de saturação e de cruzeiro, como o Astros 2020 e o AVTM-300 da Avibras – com alcance de 300 quilômetros; de nossos novos mísseis ar-ar como o A-Darter; de nossos novos radares como os Saber; de nossos novos e gigantescos complexos petroquímicos e refinarias de petróleo, como Abreu e Lima e Comperj; de nossas novas plataformas de petróleo com capacidade para produção de centenas de milhares de barris de óleo por dia; de nossas novas e gigantescas usinas hidrelétricas, como Jirau, Santo Antônio e Belo Monte – a terceira maior do mundo; de nossa nova frota de navios da Transpetro, do tipo Panamax, com capacidade de transporte de 650 mil barris de combustíveis cada um; de nossas novas embarcações de guerra, que voltamos até mesmo a exportar; de nossos novos satélites de comunicações; ou de portentosas obras de engenharia como a ponte sobre o Rio Negro, em Manaus, e a ponte Anita Garibaldi, em Laguna, Santa Catarina.
Esse é o Brasil da estratégia, do longo prazo, que a mídia conservadora nacional optou, há muito tempo, como fazem os ilusionistas das festas infantis, por esconder com uma mão, enquanto mostra como uma grande novidade, com a outra mão, o Brasil de uma “crise” e de uma “corrupção” seletiva e repetidamente exageradas e multiplicadas ao extremo.
Há um Brasil que deveria estar acima das disputas político-partidárias, que cabe preservar e defender. Quem quiser fazer oposição precisa, se quiser chegar ao poder, mostrar, com um tripé baseado no nacionalismo, na unidade, e no desenvolvimentismo, que estará comprometido com o prosseguimento desses programas, fundamentais para o futuro da Nação. Com todos os seus eventuais problemas, que podem ser solucionados sem dificuldades, eles conformam um projeto de Nação que não pode ser interrompido, cuja sabotagem e destruição só interessa aos nossos inimigos, muitos dos quais, do exterior, se regozijam com o atual quadro de fragmentação e esgarçamento da sociedade, antevendo o momento em que retomarão o controle de nosso destino e o de nossas riquezas.
Seria bom que o Brasil da Lava Jato – considerando-se os que comandam a operação homônima – trabalhasse com responsabilidade e cidadania em sua missão, separando o joio do trigo, prendendo quem tiver de prender, mas evitando, no lugar de incentivar, os danos colaterais para empresas e projetos estratégicos que empregam milhares de pessoas, nos quais já foram investidos bilhões e bilhões de dólares – protegendo e não arrasando, como já está ocorrendo, parte da indústria pesada e da 
engenharia nacionais.
Seria bom se o Brasil da Lava Jato – considerando-se os que torcem pela “operação” – tratasse a questão da corrupção sem partidarismo e seletividade, preparando-se para o pleito do próximo ano, já que não há melhor lugar do que uma urna para que o desejo e a determinação – e até mesmo a eventual indignação – de um povo livre, civilizado e democrático possam se manifestar.
Seria bom, muito bom, se o Brasil da Lava Jato, o do impeachment, o de quem defende uma guerra civil e o “quanto pior, melhor” permitisse, em benefício do futuro, da soberania e da economia nacional, que o Brasil dos jatos Gripen, da oitava economia do mundo, dos US$ 370 bilhões de reservas internacionais, de uma safra agrícola de 200 milhões de toneladas, o terceiro maior credor individual externo dos Estados Unidos – e que pertence não a um ou a outro partido, mas a todos os brasileiros – pudesse continuar a trabalhar.

Texto de Mauro Santayana, na Rede Brasil Atual, via Jornal GGN.

domingo, 8 de novembro de 2015

Jatos desiguais

Uma busca preliminar no que sucedeu desde a "Operação Juízo Final", criada há um ano para a prisão de dirigentes de empreiteiras, faz mais do que surpreender. E, dadas as indagações que suscita, clama por uma reflexão sobre as características não difundidas da Lava Jato e seus efeitos presentes e futuros.
Menos de uma semana depois daquela decisão que elevou o juiz Sergio Moro às culminâncias do prestígio, dava-se outro fato determinante na Lava Jato. Ex-gerente da Petrobras, Pedro Barusco assinava, em 19 de novembro, o acordo de delação premiada. Sua advogada era Beatriz Catta Preta, que mais tarde abandonaria os seus clientes, invocando ameaças recebidas. Ela e um batalhão de 14 procuradores e delegados da Polícia Federal assinaram o acordo.
Catta Preta já conduzira acordo semelhante para Julio Camargo. Sem vínculo com a Petrobras, esse lobista chegou a uma posição de destaque no noticiário da Lava Jato a partir da confissão de que ganhou muito dinheiro fazendo, em transações com dirigentes da estatal, a intermediação para as contratações da coreana Samsung e da japonesa Mitsui.
Mas Barusco foi o mais prolífico. Aqui mesmo, e quando seu nome mal fora citado, saiu a informação de que era o mais temido não só pelos já implicados, por estar com a vida pendente de um câncer. Foi dele a promessa de devolver quase U$ 100 milhões. Dinheiro de suborno recebido das maiores empreiteiras brasileiras. Mas não só. Além do que recebeu como gerente da Petrobras, depois Barusco foi subornado como diretor de uma empresa, a Sete Brasil, constituída para a produção de sondas destinadas ao pré-sal. Os estaleiros Jurong e Keppel Fels, de Cingapura, lhe pagaram alto pela obtenção e pelo valor das respectivas contratações.
Para não ficar só nas empreiteiras do Brasil e em grupos asiáticos, uma subornadora europeia enfeita a lista: um dos mais recentes delatores premiados, João Antonio Bernardi, descreveu subornos milionários de dirigentes da Petrobras para a contratação da italiana Saipem.
Decorrido um ano da Juízo Final, Ricardo Pessoa, dono da UTC, foi o mais noticiado dos dirigentes de empreiteiras brasileiras presos pela PF, com suas idas e vindas em torno da delação premiada. Dentre esses executivos, já há condenados a penas altas, como Sergio Mendes, da Mendes Júnior, com recente sentença de 19 anos. Em síntese, quem dentre eles não se dobrou à delação premiada, ou já está condenado, ou aguarda sentença em processo criminal por corrupção ativa, via suborno —e outras possíveis acusações em cada caso.
Nenhum dos dirigentes das empresas estrangeiras que pagaram suborno foi preso. Nem teve sua casa visitada pela PF para busca e apreensão de documentos. Nenhum está ou foi submetido a processo por suborno. Só os intermediários passaram por busca e apreensão. Como nos crimes de morte em que o matador e o intermediário são presos, mas o mandante não é incomodado. O Brasil conhece bem este tipo de critério.
As empreiteiras brasileiras acusadas de prática de suborno estão proibidas de firmar contrato com a Petrobras. O que tem implicações múltiplas também para a própria Petrobras.
As empresas estrangeiras Jurong, Keppel Fels, Saipem, Samsung e Mitsui não receberam visitas policiais para busca e apreensão nas filiais que todas têm no Brasil. Nem sofreram medida alguma por serem, como as brasileiras, acionadoras de corrupção e pagadoras de subornos. E continuam liberadas para fazer contratos com a Petrobras.
A diferenciação de tratamentos suscita inúmeras indagações, das quais a primeira pode ser esta: o objetivo da Lava Jato, e tudo o que a partir daí se irradia para o país todo, não era a corrupção, e só a corrupção?
Ah, sim, uma das cinco estrangeiras praticantes de corrupção, a Mitsui, ficou liberada para se tornar até sócia da Petrobras na Gaspetro. É o que acaba de fazer. 


Reprodução de texto de Jânio de Freitas, na Folha de São Paulo. Destaques do blogueiro. 

O que realmente entrou em crise?

Dentro da narrativa hegemônica construída para explicar a crise brasileira encontra-se a tentativa de afirmar que o grande vilão é o Estado. Conta-se, em todos os meandros dos cadernos de economia dos jornais e na boca de seus analistas, que o primeiro governo Dilma teria "feições estatistas e intervencionistas" responsáveis pelo descalabro final das contas públicas e orçamentos com previsão de deficit. A crise que hoje vivemos seria assim a prova do fracasso gerencial do capitalismo de Estado brasileiro, não restando outra coisa do que aceitar, de vez, a boa e sã cartilha do liberalismo.
Há, no entanto, várias ilusões de ótica neste raciocínio.
Primeiro, chamar o governo Dilma de estatista e intervencionista é dificilmente defensável. Até onde consta nos anais destes últimos anos, seu governo privatizou (com o estratagema da "privatização branca" das concessões) aeroportos, rodovias, portos e ferrovias. Ele ainda abriu a exploração do pré-sal para empresas estrangeiras, entregando 60% da maior reserva de petróleo da camada salina para quatro empresas estrangeiras e contrariando, com isto (para variar), promessas de campanha.
Acrescente ao bolo uma política de desoneração e redução de impostos que produziu uma renúncia fiscal de R$ 327,16 bilhões entre 2011 e 2015. Gostaria de saber em que lugar do mundo um conjunto de políticas desta natureza seria chamado de estatista e intervencionista.
Na verdade, este debate procura esconder o que realmente entrou em crise atualmente.
A dicotomia liberalismo X estatismo que parece comandar boa parte do nosso debate é uma falácia. O capitalismo nunca foi liberal. Ele simplesmente oscila em sua história, respondendo a pressões de conflitos sociais e da força de interesses setoriais sobre como regular e mediar demandas.
Não lembro de nenhum destes economistas com Adam Smith no coração reclamar de o governo norte-americano, em plena crise de 2008, usar dinheiro público para salvar bancos privados como o Citibank. Também não consta que algum deles tenha reclamado da Comunidade Europeia despejar dinheiro público em seu combalido sistema financeiro, permitindo que tal dinheiro fosse usado até para pagar "stock options" de executivos cujo maior feito de suas capacidades gerenciais fora quebrar bancos. O que não é de se estranhar, já que a questão liberal nunca foi "como diminuir o Estado", mas "como privatizar o Estado, colocando-o a serviço dos interesses dos empresariados nacionais ou da classe de financistas".
Nós já vimos isto ocorrer milhares de vezes em terras brasileiras. Basta lembrar como o "liberal" governo FHC usou dinheiro do contribuinte para salvar bancos falidos através do Proer. Ou, se quisermos ser mais estruturais, basta se perguntar sobre a origem da dívida pública brasileira, cuja parte substancial é resultado da transformação de dívidas privadas de empresas e bancos em dívidas públicas.
Quer dizer, no capitalismo, o Estado sempre intervém. A única questão real é: "A favor de quem?".
Neste sentido, mais honesto seria lembrar que o modelo em crise atualmente no Brasil é outro.
O que entrou em crise foi a crença de ser possível "gerenciar" o capitalismo brasileiro com ajustes pontuais que permitiriam recuperar um modelo de "pacto no interior do Estado" entre empresários, sistema financeiro e sindicatos. Modelo cujas raízes encontram-se no sistema de equilíbrio de moldes getulistas.
Se a bomba explodiu na mão da esquerda nacional é por seus setores hegemônicos terem acreditado que era seu destino ressuscitar tal modelo, com direito até a foto com mão suja de petróleo em poço da Petrobras. Melhor teria sido escapar da falsa dicotomia entre capitalismo estatista e capitalismo liberal.
Nestes últimos meses, o Banco Itaú anunciou o maior lucro líquido na sua história entre abril e junho, a saber: R$ 5,9 bilhões só em um trimestre. Cifra praticamente igual ao seu lucro do terceiro trimestre. O Bradesco teve R$ 4,12 bilhões de lucro líquido no terceiro trimestre.
Quem quiser entender a crise brasileira deveria se perguntar como um país com economia em contração pode ter lucros bancários tão exorbitantes.
Longe de um contradição, temos atualmente uma relação de causalidade necessária. Pois não é difícil perceber quem realmente comanda o Estado. 


Texto de Vladimir Safatle, na Folha de São Paulo