O mundo não acabou outro dia, mas vários mundos acabam todos os dias, sempre que morre um escritor -ou um ator, um sambista, um arquiteto, um cientista, um gari, até mesmo um político. Hierarquias são perigosas, mas a morte de um escritor parece atingir fundo as pessoas, inclusive as que nunca o leram. Supõe a perda de um ou mais mundos organizados, que ainda não foram e não serão cristalizados em palavras.
Pior ainda quando são escritores populares, como Dickens, Zola, Hemingway, Jorge Amado, Saramago -porque muitos de seus contemporâneos sentiam-se parte de tais mundos. É como se a morte deles os privasse de seu chão. Claro que nem sempre é assim, e há escritores cujos mundos têm a profundidade que Nelson Rodrigues lhes atribuía -aquela que uma formiguinha atravessa a pé, com água pelas canelas.
Em 2012, morreram -até agora, e apenas entre os que nos falavam mais de perto- o mexicano Carlos Fuentes, os americanos Gore Vidal, Ray Bradbury e Nora Ephron, o britânico Eric Hobsbawm e os brasileiros Millôr Fernandes, Ivan Lessa, Décio Pignatari, Chico Anysio e Lêdo Ivo. Eles eram romancistas, poetas, ensaístas, críticos, cronistas -Hobsbawm, historiador. Nenhum se limitou ao livro. Todos escreveram em jornais, alguns para teatro, cinema ou TV, e vários eram bons de briga.
Chico ficou famoso pela televisão, mas quase todos eram "performáticos", tinham alma de ator. Na vida real, Chico, Millôr, Décio e Lêdo eram sérios, categóricos, falavam alto. Gore e Ivan eram mais debochados, gostavam de imitar, ridicularizando, o jeito de falar de seus desafetos. Fuentes namorou a atriz
Jean Seberg. E nunca estive com Nora e Bradbury, mas deviam se parecer com o Hobsbawm que conheci em Paraty -coroas boas-praças.
O mundo deles nenhuma formiga atravessa com água pelas canelas.
Texto de Ruy Castro, na Folha de São Paulo.
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