Outra arte
Chaves, celulares, óculos; não importa. Perca uma coisa por dia, recomenda Elizabeth Bishop (1911-1979) num poema famoso. Existe, diz ela, a "arte de perder", cujo aprendizado não é difícil.
Estamos sempre perdendo. Já perdi uns três celulares, sem contar o carregadorzinho que acompanha cada um, e que é sempre diferente. Nem falo das máquinas fotográficas digitais, dos seus carregadores e dos fios que servem para ligá-las ao computador. Se não as perco, logo se quebram. Como não adianta mandar para o conserto, estão perdidas de qualquer jeito.
As próprias fotos, transferidas para o computador, nem por isso estão guardadas. Perderam-se em alguma pasta de arquivos; se não tenho paciência para procurá-las, perdidas ficarão.
Isso no que se refere à arte de perder. Existe outra arte, todavia, um pouco mais difícil, e outro poeta, um pouco menos direto, se ocupou dela.
É a arte de agradecer. Acho que William Wordsworth (1770-1850) se referia a isso quando escreveu, depois de um passeio campestre: "Tudo o que contemplamos está cheio de bendições".
Claro, quando se tem 28 anos (a idade de Wordsworth quando escreveu "Tintern Abbey") e se está diante de uma paisagem verdejante, não é injustificado reconhecer, com a calma intensidade do poeta, que "all which we behold is full of blessings".
Mas ele sabia do que estava falando. Não ignora, no mesmo poema, "o peso moroso e duro de todo este inexplicável mundo", nem tudo o que já tinha perdido desde sua infância, livre e selvagem, naqueles mesmos campos da Inglaterra.
Ainda assim, ele quer agradecer -e esse aprendizado tem um bocado de religioso. A coisa toda está acima das minhas forças, mas não custa treinar de vez em quando.
No trânsito, na fumaça e na chateação de São Paulo, tenho topado com não sei que tipo de árvore, floridíssima, numa cor clara de rosa quase branca. Não basta, acho, pensar: "Olha aí, bonita essa árvore".
Ajuda imaginar que é um presente. Se não de Deus, que seja da prefeitura, não importa. É bom levar as coisas para o lado pessoal, como fazemos tão facilmente diante de infelicidades diversas. "Essa árvore está aí para mim." Agradeço.
Convém não exagerar. Li outro dia que um cidadão paulistano, acordando feliz para ver a bela figueira centenária que tinha diante da janela do apartamento, teve a ingrata surpresa de vê-la derrubada.
Era cupim; era o vento; até aí, nada de mais, mas o chato é que seu carro tinha ficado embaixo. Por esse tipo de coisa, conheço um colega carioca que, todos os dias, quando acorda, dá graças ao destino por não ter nascido paulista.
Eu estava dizendo que já perdi três celulares, mas (para entrar enfim no tema deste artigo) eis aí uma perda que não lamento. Na verdade, o que desejo agradecer aqui é o fato de não precisar de celular.
Entendo que um médico, um advogado criminal ou um corretor de imóveis não possam viver sem celular. Já pensei em abandonar até o telefone fixo, que me sobressalta a cada chamada (por que não mandaram um e-mail?). Enquanto isso não acontece, o celular fica bem desligadinho, lá onde não sei onde ficou.
Não nego as vantagens do aparelho. Você pode usá-lo em todo lugar. Você também se torna onipresente. É, assim, um multiplicador de espaço.
O telefone móvel, como o automóvel e qualquer outra coisa que termine em "móvel" serve para isso mesmo. Livra-nos da casa, dos fios, das tomadas, do lugar, do terreno, até do computador.
E o próprio computador, observo de passagem, já se livra de si mesmo graças à computação "em nuvem" -seus arquivos e programas vão literalmente para o espaço, ou melhor, para a ausência de lugar, para um espaço invisível, abstrato, nenhum.
Chego então ao paradoxo. Com a onipresença conquistada, com a multiplicação de um lugar em todos os lugares possíveis, com a mobilidade geral de tudo, é o tempo que se reduz.
Cada celular é um roedor de tempo, e o cidadão, para estar acessível e ser acessado em todos os lugares, paga o preço de viver espremido, sem ar, numa cela minúscula de poucos minutos por vez.
Seria o caso, então, de aprender com as árvores, que têm muito tempo para crescer e florir, por estarem fixas no espaço, presas às suas raízes. A menos, claro, que desabem de repente.
Chaves, celulares, óculos; não importa. Perca uma coisa por dia, recomenda Elizabeth Bishop (1911-1979) num poema famoso. Existe, diz ela, a "arte de perder", cujo aprendizado não é difícil.
Estamos sempre perdendo. Já perdi uns três celulares, sem contar o carregadorzinho que acompanha cada um, e que é sempre diferente. Nem falo das máquinas fotográficas digitais, dos seus carregadores e dos fios que servem para ligá-las ao computador. Se não as perco, logo se quebram. Como não adianta mandar para o conserto, estão perdidas de qualquer jeito.
As próprias fotos, transferidas para o computador, nem por isso estão guardadas. Perderam-se em alguma pasta de arquivos; se não tenho paciência para procurá-las, perdidas ficarão.
Isso no que se refere à arte de perder. Existe outra arte, todavia, um pouco mais difícil, e outro poeta, um pouco menos direto, se ocupou dela.
É a arte de agradecer. Acho que William Wordsworth (1770-1850) se referia a isso quando escreveu, depois de um passeio campestre: "Tudo o que contemplamos está cheio de bendições".
Claro, quando se tem 28 anos (a idade de Wordsworth quando escreveu "Tintern Abbey") e se está diante de uma paisagem verdejante, não é injustificado reconhecer, com a calma intensidade do poeta, que "all which we behold is full of blessings".
Mas ele sabia do que estava falando. Não ignora, no mesmo poema, "o peso moroso e duro de todo este inexplicável mundo", nem tudo o que já tinha perdido desde sua infância, livre e selvagem, naqueles mesmos campos da Inglaterra.
Ainda assim, ele quer agradecer -e esse aprendizado tem um bocado de religioso. A coisa toda está acima das minhas forças, mas não custa treinar de vez em quando.
No trânsito, na fumaça e na chateação de São Paulo, tenho topado com não sei que tipo de árvore, floridíssima, numa cor clara de rosa quase branca. Não basta, acho, pensar: "Olha aí, bonita essa árvore".
Ajuda imaginar que é um presente. Se não de Deus, que seja da prefeitura, não importa. É bom levar as coisas para o lado pessoal, como fazemos tão facilmente diante de infelicidades diversas. "Essa árvore está aí para mim." Agradeço.
Convém não exagerar. Li outro dia que um cidadão paulistano, acordando feliz para ver a bela figueira centenária que tinha diante da janela do apartamento, teve a ingrata surpresa de vê-la derrubada.
Era cupim; era o vento; até aí, nada de mais, mas o chato é que seu carro tinha ficado embaixo. Por esse tipo de coisa, conheço um colega carioca que, todos os dias, quando acorda, dá graças ao destino por não ter nascido paulista.
Eu estava dizendo que já perdi três celulares, mas (para entrar enfim no tema deste artigo) eis aí uma perda que não lamento. Na verdade, o que desejo agradecer aqui é o fato de não precisar de celular.
Entendo que um médico, um advogado criminal ou um corretor de imóveis não possam viver sem celular. Já pensei em abandonar até o telefone fixo, que me sobressalta a cada chamada (por que não mandaram um e-mail?). Enquanto isso não acontece, o celular fica bem desligadinho, lá onde não sei onde ficou.
Não nego as vantagens do aparelho. Você pode usá-lo em todo lugar. Você também se torna onipresente. É, assim, um multiplicador de espaço.
O telefone móvel, como o automóvel e qualquer outra coisa que termine em "móvel" serve para isso mesmo. Livra-nos da casa, dos fios, das tomadas, do lugar, do terreno, até do computador.
E o próprio computador, observo de passagem, já se livra de si mesmo graças à computação "em nuvem" -seus arquivos e programas vão literalmente para o espaço, ou melhor, para a ausência de lugar, para um espaço invisível, abstrato, nenhum.
Chego então ao paradoxo. Com a onipresença conquistada, com a multiplicação de um lugar em todos os lugares possíveis, com a mobilidade geral de tudo, é o tempo que se reduz.
Cada celular é um roedor de tempo, e o cidadão, para estar acessível e ser acessado em todos os lugares, paga o preço de viver espremido, sem ar, numa cela minúscula de poucos minutos por vez.
Seria o caso, então, de aprender com as árvores, que têm muito tempo para crescer e florir, por estarem fixas no espaço, presas às suas raízes. A menos, claro, que desabem de repente.
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