Mudança
DO FUNDO da gaveta, numa foto de 1991, minha primeira namorada me sorri. No verso, em tinta rosa, diz que me ama "pra sempre!!!". Eu também a amei para sempre e com muitas exclamações, por seis meses e alguns amassos, na distante oitava série -até um recreio em que, não lembro exatamente por qual motivo, resolvemos "dar um tempo", num canto da quadra poliesportiva. O tempo dura até hoje. (Alguém me disse, outro dia, que ela é procuradora do Estado. Duvido que ainda use canetinhas cor-de-rosa.)
De uma pasta, surge uma prova de história sobre o feudalismo, o cartão-postal de um amigo, de Amsterdã, uma agenda de 92. Dia 23 de maio: "Niver da Ju B.!!! Não vai esquecer, hein?!". Por onde andará aquele amigo? Quem era mesmo a Ju B., hein?
Numa caixa de charuto, papéis e guardanapos cheios de projetos da última década e meia. "Revista de jornalismo literário. Arte: Ciça. Textos: Antonio, Chico, Nirla, Fred, Paulo." "Ideia de romance: paulista toma pé na bunda e cai no carnaval do Rio". "Sitcom: bar frequentado por artistas que não emplacam, tendo que sobreviver de atividades paralelas".
Cercado por aqueles achados arqueológicos, escavados de diferentes camadas sedimentares do meu apartamento, reflito sobre o que levar para a casa nova, o que jogar no saco de lixo azul. Um lado, nostálgico, agarra-se ao conteúdo das gavetas: é minha vida, meu passado, é preciso guardá-lo. Outro lado, o prático, provoca: "guardá-lo por quê? Em que situação você desenterrará as cartas de ex-namoradas, cartões-postais de quem já não vê há 20 anos, projetos que não concretizou, nem concretizará?"
Não interessa a utilidade desses fósseis, digo à minha sanha sanitarista: é dos momentos representados por eles que somos feitos. "Pois o feito, feito está", retruca o pragmático: "todo o conteúdo dessas gavetas não são mais que andaimes de teu edifício. Para que preservá-los?"
Ora -defendo-me-, e do que é feita a vida senão dos andaimes que usamos para construirmo-nos? Aliás, eles nos sobreviverão. Vão-se os dedos, ficam os anéis, eis a triste verdade. O utilitarista insiste, agora com arroubos de sarcasmo: "Exato!
E se mesmo você uma hora será descartado, de que valerão todos esses bricabraques?".
Ah, inclemente faxineiro! Não percebe?! É justamente a certeza de que nos vamos que obriga a nos agarrarmos ao que fomos! "Você está se repetindo", diz o chato. "Já escreveu isso em outra crônica, dia desses." Pouco me importa. A repetição não é necessariamente um defeito. Veja Woody Allen. Nelson Rodrigues. Vonnegut. Rubem Braga.
Só temos duas ou três coisas a dizer sobre a vida e as vamos reconfigurando, polindo, tentando clareá-las ao longo do tempo. Para isso, aliás, servem esses andaimes, cacarecos recolhidos nas andanças: pontuam o caminho, amenizam a falta de sentido da linha de chegada.
Decido: levarei tudo comigo. De madrugada, o caminhão de lixo mastigará apenas os canhotos dos talões de cheque, velhas contas de luz e declarações do imposto de renda. Amores eternos, mesmo os mais fugazes, amigos que perdemos e os sonhos antigos devem permanecer sempre conosco: senão no fundo do coração, ao menos no fundo de uma gaveta.
De uma pasta, surge uma prova de história sobre o feudalismo, o cartão-postal de um amigo, de Amsterdã, uma agenda de 92. Dia 23 de maio: "Niver da Ju B.!!! Não vai esquecer, hein?!". Por onde andará aquele amigo? Quem era mesmo a Ju B., hein?
Numa caixa de charuto, papéis e guardanapos cheios de projetos da última década e meia. "Revista de jornalismo literário. Arte: Ciça. Textos: Antonio, Chico, Nirla, Fred, Paulo." "Ideia de romance: paulista toma pé na bunda e cai no carnaval do Rio". "Sitcom: bar frequentado por artistas que não emplacam, tendo que sobreviver de atividades paralelas".
Cercado por aqueles achados arqueológicos, escavados de diferentes camadas sedimentares do meu apartamento, reflito sobre o que levar para a casa nova, o que jogar no saco de lixo azul. Um lado, nostálgico, agarra-se ao conteúdo das gavetas: é minha vida, meu passado, é preciso guardá-lo. Outro lado, o prático, provoca: "guardá-lo por quê? Em que situação você desenterrará as cartas de ex-namoradas, cartões-postais de quem já não vê há 20 anos, projetos que não concretizou, nem concretizará?"
Não interessa a utilidade desses fósseis, digo à minha sanha sanitarista: é dos momentos representados por eles que somos feitos. "Pois o feito, feito está", retruca o pragmático: "todo o conteúdo dessas gavetas não são mais que andaimes de teu edifício. Para que preservá-los?"
Ora -defendo-me-, e do que é feita a vida senão dos andaimes que usamos para construirmo-nos? Aliás, eles nos sobreviverão. Vão-se os dedos, ficam os anéis, eis a triste verdade. O utilitarista insiste, agora com arroubos de sarcasmo: "Exato!
E se mesmo você uma hora será descartado, de que valerão todos esses bricabraques?".
Ah, inclemente faxineiro! Não percebe?! É justamente a certeza de que nos vamos que obriga a nos agarrarmos ao que fomos! "Você está se repetindo", diz o chato. "Já escreveu isso em outra crônica, dia desses." Pouco me importa. A repetição não é necessariamente um defeito. Veja Woody Allen. Nelson Rodrigues. Vonnegut. Rubem Braga.
Só temos duas ou três coisas a dizer sobre a vida e as vamos reconfigurando, polindo, tentando clareá-las ao longo do tempo. Para isso, aliás, servem esses andaimes, cacarecos recolhidos nas andanças: pontuam o caminho, amenizam a falta de sentido da linha de chegada.
Decido: levarei tudo comigo. De madrugada, o caminhão de lixo mastigará apenas os canhotos dos talões de cheque, velhas contas de luz e declarações do imposto de renda. Amores eternos, mesmo os mais fugazes, amigos que perdemos e os sonhos antigos devem permanecer sempre conosco: senão no fundo do coração, ao menos no fundo de uma gaveta.
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