sexta-feira, 12 de agosto de 2011

41


Paris, 27 de agosto de 1955
Meu caro Eduardo:
Ontem fiz 41 anos. Je viens d’avoir trente ans, dizia Jean, o da estrela, num belo poema do qual deves se lembrar, e ele dizia isso com tanta tristeza quanto eu. Quarenta e um é um número horrível para quem acredita que o mundo é belo, mas alheio, alheio aos meus sentidos que só conhecem uma parte ínfima, à minha inteligência, incapaz de apreendê-lo em suas estruturas mais elementares. Agora começa verdadeiramente o declive, a década que nos leva aos 50. E eu, que me sinto sempre com 20 anos, tão bobo, tão crédulo, tão entusiasta, tão esperançoso como naqueles tempos! Mas os sinais físicos me trazem de volta à realidade. Fico doente mais seguidamente, me canso muito mais rápido. Até cinco anos atrás podia passar uma noite em branco e continuar perfeitamente no dia seguinte; agora, se vou me deitar depois da meia-noite, pago o preço no dia seguinte. Não posso beber tanto vinho, não posso comer tantas coisas, não posso ler tantas horas. Coisas profundamente materiais começam a minguar, a afinar sutilmente, como se o mundo iniciasse, sigiloso, sua retirada, deixando-me cada vez mais suas imagens em troca de suas matérias... Imagino que essa melancolia (acompanhada, ao mesmo tempo, de uma exaltação extraordinária, de uma vontade, como nunca antes, de fazer coisas, de conhecer, de amar) deve-se a uma vistosa transformação de minha fórmula sanguínea, derivada de um danado de um vírus filtrável que me pegou durante uma parte deste mês, que passei me levantando e caindo. Nunca tenhas mononucleose infecciosa, porque incomoda muito. (Deves estar sorrindo ironicamente, pobre velho, também versado em achaques...) Agora estou melhor e respondo a tua carta que chegou há pouco, e que li tomando um vinhozinho perto da place de Ternes, cheias de castanheiros que já começavam a ficar com esse amarelo propício ao outono... Ma foi, tua carta me deixou triste vários dias, e estou quase contente de não tê-la respondido em seguida. Agora eu a vejo – te vejo – com mais perspectiva. Agora consigo ser um pouco mais desapiedado, embora não seja piedade, muito pelo contrário, o que tu esperas de mim. (Hoje me saem “tu” por todo lado: devem ser os galegos da Unesco se infiltrando em meu sangue. Não estou disposto a renunciar ao “você” por nada neste mundo. No máximo, um ponto intermediário como os uruguaios, que dizem “tu diz”...) De tudo o que me conta, de tudo o que confia a mim, o pior é esse sentimento de solidão, de estar isolado entre todos os que o cercam. Conheço um pouco esse sentimento porque fui quase um camarada de juventude e você sabe disso muito bem. As causa e os matizes eram outros, mas não os efeitos. Por isso me dói – e como lhe dizer com as palavras certas tudo isto, se a única coisa possível seria olhá-lo nos olhos e dar umas palmadinhas em seu ombro para que você soubesse que seu amigo está perto? –, me dói ver você metido num labirinto tão sutil, tão feito de nadas que são tudos, com paredes que se franqueiam com o corpo mas que nem assim o deixam em liberdade. E me dói – e me dá raiva, não vou esconder isso, e tenho vontade de gritar que assim você não pode continuar –, me dói ver se agravar o que não foi difícil de suspeitar durante todo o verão passado em Buenos Aires. Naquela época pensei que seu estado físico somava desassossego a sua inquietação moral, mas agora acho que entendo que esta pode mais que qualquer outro fator momentâneo. Não retiro o que disse naquela noite em que conversamos sobre seu diário. Acho que seu defeito – para lhe dar um nome francamente, embora talvez fosse melhor dizer sua maneira de ser, pura e simplesmente – é uma soma de incapacidades e inadaptações que eu gostaria de conhecer bem para poder enumerá-las e ajudá-lo – se isso fosse possível.
Você me escreve num tom que me autoriza, creio, a empregar o tom daquela noite e completar, talvez, o que eu lhe disse um pouco intimidado pela presença muito próxima de María e pelo fato de entrar com você num terreno tão pessoal, no qual não tocávamos há pelo menos quinze anos. Deixe que eu empregue outra vez o termo “egotista”. Não é pejorativo, você sabe. Você tem um interior rico demais para não ser um pouco bumerangue e retornar a si mesmo toda vez que sai para o mundo. Seu egotismo me parece uma barricada, um muro de defesa. Não me parece seu verdadeiro ser, o profundo; insisto em vê-lo como um método de vida, um meio que ameaça tomar o lugar de um fim. Se me perguntar por que penso isto, vou lhe responder francamente: acho que sua infância e sua primeira adolescência são culpadas, e que não existe nenhuma razão verdadeira para continuar mantendo uma fachada (porque no fundo é só uma fachada), quando você está beirando os 40 e já não tem os problemas do menino. Me desculpe por essa psicanálise barata (e absolutamente desprovida de rigor) que, aliás, você já deve ter praticado sozinho mais de uma vez. Se me perguntasse no que me baseio para dizer tudo isso, eu mencionaria o quadro oferecido por todo homem que passa sua infância sem o pai, rodeado de uma mãe bondosa, mas severa, e de três irmãs bem mais velhas, que triplicam a imagem materna e acabam lhe dando uma dimensão esmagadora. (Quando fui visitá-lo um dia em sua casa de Banfield, por vezes não sabia quem era sua mãe, se a verdadeira ou a Quica... E você vivia assim noite e dia.) O mecanismo de defesa viril, de rebeldia necessária, é claramente visível em sua conduta daqueles anos. Você já era “difícil” e, mil vezes, em conversas com Paco – o único amigo em quem eu confiava plenamente, além de você –, nós ríamos lembrando suas reações petulantes, seus acessos de entusiasmo seguidos de depressões brutais que o deixavam arrasado e atormentado. Depois fiquei um longo tempo sem vê-lo, mas foi então que você fez o que correspondia exatamente a seu mecanismo de rebelião: foi para a Europa numa viagem bastante insensata e, ao fazer isso, fez o que Freud chama de “matar a mãe” (matava vários outros, de quebra). Não sei muito bem como você viveu quando voltou, embora imagine que tenha sido uma pequena boemia honorável, viveu sozinho – um dia me mostrou seu ateliê –,mas tudo isso encobria, receio, o começo da derrota, a volta ao rincão natal, o ingresso na ordem. Talvez tenha sido nessa época que teve medo (inconscientemente, sem confessá-lo) de escolher um caminho absoluto, ser um artista, como Van Gogh escolheu ser, ou um poeta, como Vallejo escolheu ser. Tudo reside, creio, no fato de você ter vocação para o que não faz, ou para o que faz insatisfatoriamente (não estou aludindo aos resultados, mas a sua satisfação ao fazê-lo). A única maneira de se realizar teria sido, naquele momento, quando você não era casado nem tinha filhos, fazer a viagem verdadeiramente. Entendo por viagem qualquer roteiro interior ou exterior que o teria levado até o extremo de si mesmo. Porque – e será o melhor elogio já feito a você – você não é homem de termos médios, acomodado. Tem uma espécie de sede de absoluto, que se reflete em toda a sua conduta. Sua vida, porém, foi montada sobre uma série de compromissos, e até irrisoriamente você caiu num tipo de trabalho fundamentalmente impuro e cheio de concessões, arranjos e compromissos (como o que eu tive um tempo na Câmara, e do qual me libertei porque eu ia acabar na rua). Você tem de sair de carro com geólogos e voar para Córdoba com médicos, tem de fazer coisas que acha repugnantes, e paga caro por isso. Paga especialmente caro porque quando era menino não quis se entregar e se rebelou contra seu meio familiar, e continua atrás de sua barricada, como se nota em muitos detalhes de sua conduta; ao mesmo tempo o inimigo está infiltrado em sua cidadela, todos os dias da meia-noite às seis, e tem outros inimigos mais doces e mais sutis nas horas restantes. Desses últimos “inimigos” não quero falar porque gosto muito deles e porque eles não têm a menor culpa do que acontece com você; aliás, você é o primeiro a reconhecer isso. Não são inimigos, você é que se rebela contra a ordem que eles representam, e assim os transforma no que são, em inimigos. E por que você se rebela contra a ordem burguesa que aceitou há dez anos? A rebelião aos 15 anos tudo bem; esta rebelião aos 40 dá o que pensar; tem muito de absurdo, tem muito de cópia irrisória da primeira, da autêntica. Entre as duas há uma derrota, a de seu ingresso numa ordem que você não queria. É aí que você tem de procurar uma solução possível, aí e em seu próprio caráter, alterado por fossos, barricadas e pontes levadiças que não são seu verdadeiro eu.
Vou lhe falar com toda a franqueza: neste verão tive a impressão de que você perdeu um dom que antes tinha, embora nunca em grandes proporções: o da alteridade, o de saber se debruçar e escutar, o de se colocar um pouco no lugar de seu interlocutor, de seu amigo, de quem estiver com você nesse momento. Eu me surpreendia, por exemplo, que numa reunião incoerente, onde circulavam diversas pessoas, você se empenhasse em encontrar cinco minutos para me mostrar poemas e esperar minha opinião, ou me fazer ver quadros em circunstâncias nada propícias. Eu ficava comovido com seu desejo evidente de se vincular ao interlocutor por meio do que fazia, mas ao mesmo tempo percebia em você certo desprezo (agora não consigo encontrar outra palavra, e esta está longe de dar conta do que quero dizer) dirigido a seu interlocutor, fosse eu, Aurora, Sakai ou qualquer dos presentes. Não gostaria que me entendesse mal nesta passagem. Minha impressão é que você estava ansioso por testemunhas, por pessoas que o amam e que você ama, mas que procurava essas testemunhas de uma forma perigosamente egoísta, sem dar nada de você e mesmo assim esperando tudo do outro. Achei que você tinha perdido a capacidade para o diálogo, um pouco porque era continuamente rodeado e amavelmente fustigado por seus filhos e por tantos que continuamente o acompanhavam; mas mesmo aceitando essa justificativa, insisto em dizer que o achei um pouco rígido, um pouco cristalizado, ansioso por oferecer tudo espiritualmente e ao mesmo tempo se negando a fazê-lo, encerrando-se rapidamente na anedota fácil, na conversa anódina, no papo-furado social. Tome tudo isso a conta-gotas; provavelmente eu esperava de nosso diálogo um encontro em profundidade e que cada quadro ou cada poema fosse como um ponto de partida para conversas muito mais profundas do que as que tivemos.
Como as circunstâncias não o permitiram, a não ser por raras vezes e por breves minutos, posso estar atribuindo a seu caráter algo que era apenas exterior. No entanto, algo em mim insiste em dizer que não estou totalmente equivocado. Há em você um fundo invariável de ternura, de confiança e entusiasmo adolescentes; sei que continua encarando a amizade como um sentimento muito mais exigente que o que pode ter, por exemplo, Jorge. Suas reações frequentes e bastante violentas diante da conduta displicente e desapegada do Jorge me provam isso. Sei também que, se eu morasse em Buenos Aires, já teríamos alcançado o plano que eu esperava encontrar neste verão (tanto em você quanto em María, pois também com ela eu esperava dialogar a fundo, já que sei como é sensível, inteligente e carinhosa). Não pense que ignoro o fundo de bondade até excessiva que há em você; o que me espanta um pouco é sua tendência resoluta a disfarçá-la, a se mostrar muito menos espontâneo do que poderia ser. Acho que só no final – tinha de ser assim – eu o medi de novo em toda a sua admirável qualidade humana. Estou falando da noite anterior a sua viagem a Córdoba, quando jantou com Aurora e comigo, e conversamos durante horas. Naquele momento você foi como talvez devesse ser sempre com os outros; agora deixe que eu me ponha de lado e o defronte com os outros. Se me escolhi como interlocutor nesses “exemplos” foi porque só assim podia lhe dar uma ideia de minhas reações. Agora penso em você diante das outras pessoas. Que razão fundamental você tem para estar divorciado de sua mulher ou de seus amigos, ou de seus filhos, ou do papa? Que razão pode haver senão esse encastelamento obstinado, essa resistência ferrenha às ofensivas do mundo? Não é necessário resistir ao mundo de hoje, o que é preciso é escolher bem o mundo que se prefere e ao qual é preciso se dar; e a esse, ah, a esse é preciso se dar profundamente, como quando se nada, ou se dorme, ou se ama. E eu temo (me diga se estou enganado, porque tudo isso pode ser falso) que sua velha rebeldia de menino contra sua mãe e suas irmãs está envenenando seu presente sem uma razão legítima.
Veja que não estou aludindo, não quero aludir à razão central de sua infelicidade, que é, na verdade, o tema de boa parte de sua carta. Não quero porque, ainda que admita sua existência, e isso me dói tanto, entendo que essa razão não é a última e que sua única saída consiste, se for para sair do poço, em voltar para trás, refazer sua vida analisando-a longamente, descobrir sem engano possível os erros, e depois, instalado em seu presente, e sem renunciar a ele, travar a batalha. E essa batalha irá se travar dentro e fora de você, que poderá vencê-la. As soluções extremas e românticas (a pobreza, a travessia do Atlântico, a renúncia às obrigações sociais), você deve descartar de cara. Se não pode ser Van Gogh, quem o impede de ser como Picasso? Se não pode ser Vallejo, por que não viver como Valéry? Não insista em viajar para Marrakech, como aos 17 anos. A vida já provou que você não foi feito para isso. Em compensação, foi feito para tantas outras coisas igualmente valiosas, igualmente belas! Se você achar que deve tomar algum outro rumo, seja inflexível nisso: ninguém deve impedi-lo. Se entender que precisa de seis horas por dia para pintar, é necessário, absolutamente necessário que as encontre.Não diga já de saída que é impossível, tampouco exija que sejam doze ou dezoito horas. Conforme-se com seis, mas ganhe essas horas. Recuse as pequenas coisas parasitas que vão nos roubando as grandes. Procure outro trabalho, sem se apressar e sem ficar frenético, se não aparecer alguma coisa logo. Será que você procurou de verdade? Digamos que você realmente chegue à conclusão de que só saindo da embaixada terá condições de alcançar certa paz; no mesmo instante tem de começar a procurar, e sei que encontrará. E não me diga que a embaixada não é, nesse momento, a razão de sua infelicidade. Já sei, e insisto em que não quero tocar no assunto de sua situação com sua mulher. Só acho que, se você conseguir uma base material de tranquilidade (outro emprego, tempo para seu próprio trabalho, certa satisfação diante do espelho quando estiver vivendo como quer e fazendo o que quer), há mais possibilidades de o outro se acertar, de os fantasmas irem embora, de haver paz. Receio que você esteja combatendo no campo errado; tem que procurar os inimigos em outro lugar, a começar por você mesmo. Vou lhe dizer algo muito duro: acho que até agora você brinca de não ter pena de si mesmo (escrevendo, por exemplo, um longuíssimo diário onde não demonstra ter a menor pena de si mesmo, embora o próprio fato de escrevê-lo mostre de sobra que você tem, e quanta); penso que chegou a hora de você realmente começar a não sentir pena de si mesmo, ou seja, hora de renunciar a esse narcisismo às avessas que consiste em cuspir na água onde seu rosto está refletido. Aceite seu rosto, no dia em que ele for como você o deseja.
Eduardo, acho que me excedi na mesma tecla, e me pergunto o que você vai pensar desta carta. Claro que vou mandá-la mesmo assim, como uma simples prova de amizade, de um antigo afeto que só vai acabar junto comigo. Eu também me pergunto o que María vai pensar se a ler. Acho que entenderá. Acho que vai me perdoar por me intrometer num espaço tão privado, para o qual, no fundo, não fui chamado por ninguém. Teria sido mais fácil ignorar sua última carta e responder, como tantas vezes, com notícias sobre as exposições e a literatura. María sabe, também, que gosto muito dela, e que tenho profunda admiração por sua sensibilidade, seu contínuo dom de poesia, sua graça. Não me desculpo com você, nem com ela. Mas gostaria tanto de estar com os dois quando receberem esta carta, e dar um empurrão em vocês, meio na louca, e que nós três caíssemos na risada, na água-furtada da rua Ocampo onde fui tão feliz com vocês, e para onde eu quero tanto voltar um dia.
Com um abraço,
Julio

Carta do escritor argentino Julio Cortázar a seu amigo Eduardo Jonquiéres – uma de algumas publicadas na edição de julho/2011 da revista Piauí. Esta e algumas mais podem ser conferidos no sítio da revista Piauí.

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